Segundo o conceito de imaginação sociológica o indivíduo só pode compreender sua própria experiência

Acreditamos que até aqui tenhamos conseguido elucidar a nossa intenção de explorar a diferença entre a Sociologia e o chamado “senso comum”. Ao menos, já podemos conversar acerca do sentido prático de conhecimentos sociológicos, que não se resumem a “achismos” ou meras “opiniões”, mas a uma “responsabilidade discursiva” sobre os temas do cotidiano. Essa responsabilidade fica ainda mais complexa quando pensamos o ambiente escolar e os diversos elementos que compõem a “produção” de conhecimento sociológico nesse espaço. O(a) professor(a) de Sociologia não apenas possui esse compromisso, como também precisa saber dialogar com as diferentes compreensões sobre o cotidiano que possam existir em tal espaço.

Agora, podemos passar para outro ponto importante da nossa conversa: o exercício da “imaginação sociológica”¹. Raramente os indivíduos têm consciência da complexa relação entre suas vidas e as mudanças mais amplas e de longa duração. Em suma, dificilmente estabelecem uma ligação entre a sua própria trajetória pessoal e os processos históricos a que esta pertence.

Aqui, podemos perceber uma questão que foi apontada no início desta introdução: o fato de que a Sociologia é uma ciência que dialoga diretamente com a experiência histórica. Nesse sentido, a própria expressão “imaginação sociológica” pode ser compreendida sociologicamente; ou seja, sinteticamente, a expressão “imaginação sociológica” implica poder adotar uma qualidade do espírito, do intelecto, que permita às pessoas fazerem uso da informação e desenvolverem a razão para perceber, com lucidez, o que ocorre no mundo e o que acontece em sua própria trajetória pessoal. Trata-se da capacidade de compreender o indivíduo, a história e a relação entre eles, no âmbito de nossa própria sociedade.

Nesse sentido, sabemos que a escola é um espaço privilegiado para o desenvolvimento dessa imaginação sociológica. Você, professor e professora,  já parou para pensar como podemos usar as informações e as possibilidades de comunicação dispostas atualmente pelas TDIC como fomento para essas imaginações? 

Neste módulo, acreditamos que o cancioneiro popular pode ser um meio muito interessante para realizar a tarefa de construção dessa “qualidade de espírito” de que falamos anteriormente. Assim como pudemos observar na experiência retratada no cenário (vídeo "Música e TDIC no ensino de Sociologia"), isso pode acontecer tanto no que se refere à música como objeto de análise sociológica como também à música como uma ferramenta de ensino e criatividade em sala de aula.

Segundo o conceito de imaginação sociológica o indivíduo só pode compreender sua própria experiência

Além disso, há outra habilidade que podemos desenvolver e que está ao nosso alcance: a capacidade de passar de uma perspectiva a outra, de um assunto, um tema ou um objeto para outro. Por exemplo: da percepção das músicas ouvidas pelos(as) jovens de sua escola para a análise da estrutura de classes, renda e grau de instrução da sociedade. Em suma, trata-se da capacidade de ir das mais impessoais e remotas transformações no âmbito das estruturas sociais para as características mais íntimas e cotidianas das pessoas. Muito do que experimentamos em ambientes de pequena escala é, com frequência, causado por modificações estruturais.

Para ficarmos no âmbito do nosso fio condutor – a relação entre Sociologia e as TDIC e, em particular, o cancioneiro popular –, podemos começar a fazer alguns exercícios de imaginação sociológica. Por exemplo, podemos refletir acerca do que os(as) jovens, hoje em dia, ouvem em seus rádios, celulares, iPods, smartphones, entre outros aparelhos; isto é, seus gostos estéticos, muitas vezes concebidos como fruto de suas próprias escolhas e preferências pessoais, e partir para análises mais amplas acerca da estrutura socioeconômica da sociedade brasileira.

¹ 

Cursista, este termo foi cunhado inicialmente pelo sociólogo norte americano Wright Mills, em 1959, quando escreveu The Sociological Imagination. O autor estava tentando responder à aparente contradição entre o sentimento comum de limitação individual e as grandes transformações estruturais, aparentemente impessoais, pelas quais passavam boa parte das sociedades ocidentais.

A imaginação sociológica é um termo criado por Mills para designar aquilo que o pensador acredita ser a melhor maneira para se “fazer” Sociologia. A imaginação sociológica representa a conexão entre os fenômenos para além da experiência individual com as instituições com as quais as pessoas convivem. Ela representa a capacidade que o intelectual tem de analisar aquilo que “vai por trás” em simples acontecimentos da vida cotidiana e que trazem complexas tramas sociais subjacentes. Para conseguir estabelecer essas conexões mais amplas entre indivíduo e sociedade é preciso analisar a sociedade que vivemos de maneira externa, com o maior distanciamento possível. Precisamos diminuir ao máximo as tendências particulares que influenciarão nosso olhar e olharmos as coisas de maneira diferente a que estamos habituados.

A imaginação sociológica é uma prática criativa, uma tomada de consciência sobre as relações entre os indivíduos e a sociedade de que são membros. Com ela podemos enxergar que a sociedade não é fruto do acaso. Essa tomada de consciência não é exclusiva aos sociólogos, mas a todos que entrem em contato com a imaginação sociológica, permitindo que compreendamos as ligações entre a esfera individual e o mundo social que nos rodeia. Com a imaginação sociológica podemos perceber como um ato especialmente particular, como o divórcio, interfere em toda a sociedade. O aumento de divórcios redefiniu a instituição social “família” tornando comum a composição familiar de “pais separados”. É com imaginação sociológica (mesmo sem conceituar o procedimento) que Durkheim consegue abordar um ato tão individual como o suicídio por uma perspectiva social.

A “imaginação sociológica” tem sua utilização fundamentada na necessidade de conhecer o sentido social e histórico do indivíduo na sociedade e no período no qual sua situação e seu ser se manifestam. Podemos, pela imaginação sociológica, perceber o que se dá à nossa volta e o que acontece conosco como pontos de cruzamento entre nossa biografia e a história da sociedade.

Anthony Giddens, comentando a prática na Sociologia, lembra da imaginação sociológica de Wright Mills da seguinte forma:

“A imaginação sociológica nos pede, sobretudo, que sejamos capazes de pensar nos distanciando das rotinas familiares de nossas vidas cotidianas para poder vê-las como se fosse algo novo. Consideremos o simples ato de beber uma xícara de café. Que poderíamos dizer, desde um ponto de vista sociológico, deste feito de comportamento, que parece ter tão pouco interesse? Muitíssimas coisas. Em primeiro lugar, poderíamos apontar que o café não é só uma bebida, já que tem um valor simbólico como parte de uns rituais sociais cotidianos. Com frequência o ritual a que vá unindo o beber café é muito mais importante que o ato em si. Duas pessoas que ficam para tomar um café provavelmente têm mais interesse em encontrar-se e bater papo do que apenas beber. A bebida e a comida dão lugar em todas as sociedades a oportunidades para a interação social e a execução de rituais, e isto constituem um interessantíssimo objeto de estudo sociológico.

Em segundo lugar, o café é uma droga que contém cafeína, a qual tem um efeito estimulante no cérebro. A maioria das pessoas na cultura ocidental não considera que os adeptos ao café consomem drogas. Como o álcool, o café é uma droga aceita socialmente, em outras que a maconha, por exemplo, não é. No entanto, há culturas que toleram o consumo de maconha, e inclusive de cocaína, mas preocupada sobre o café e o álcool. Aos sociólogos lhes interessa saber por que existem estes contrastes.

Em terceiro lugar, um indivíduo, ao beber uma xícara de café, forma parte de uma série extremamente complicada de relações sociais e econômicas que se estendem por todo o mundo. Os processos de produção, transporte e distribuição desta substância requerem transações continuadas entre pessoas que se encontram a milhares de quilômetros de quem o consome. O estudo destas transações globais constitui uma tarefa importante para a Sociologia, posto que muitos aspectos de nossas vidas atuais vêm sendo afetadas por comunicações e influências sociais que têm lugar na escala mundial.

      Finalmente, o ato de beber uma xícara de café supõe que anteriormente se tem produzido um processo de desenvolvimento social e econômico.

      Junto com outros muitos componentes da dieta ocidental agora habituais — como chá, bananas, batatas e açúcar branco, o consumo do café começou a se espalhar no final do século XIX, e embora tenha originado no Oriente Médio, a enorme demanda por este produto desde o período da expansão colonial ocidental meio século atrás. Atualmente, quase todos bebem café nos países ocidentais a partir de áreas (América do Sul e África) que foram colonizados pelos europeus, mas de jeito nenhum é um componente da dieta “natural” do Ocidente.”


Dois elementos são chave para o desenvolvimento da imaginação sociológica, o estranhamento e a desnaturalização.

O estranhamento é, antes de tudo, uma admiração. Quem estranha reconhece nos mais simples fenômenos sociais complexidade e importância. Estranhar é, também, um “reolhar”. Quando estranhamos, observamos a vida social novamente, agora sob uma perspectiva de conhecer o que há de novo, o que passou despercebido, o que se transformou no senso comum. Se, de repente, você se pega perguntando por que dá sinal a um ônibus num ponto específico fazendo um movimento característico com as mãos, você está estranhando.

Já a desnaturalização é a compreensão de que os fenômenos sociais não são dados. Ao analisar fatos no interior das relações sociais, sempre desconfie de argumentos como “isso é assim mesmo” ou “isso é natural”. As sociedades humanas são complexas e voláteis como as pessoas que as compõem e, por isso, não são fundamentadas em fenômenos “naturais”. As relações sociais são fruto de escolhas, limites e trajetórias. Isso significa dizer que a sociedade está em constante transformação e mais, nós produzimos essa transformação, assim como podemos reproduzir o status quo. A partir desses dois conceitos percebemos que o saber sociológico busca superar o senso comum em busca de um saber crítico e científico sobre a sociedade.