O que acontece quando a empresa não tem sindicato

1. A Coordenadora-Geral de Relações do Trabalho do Ministério da Economia expediu no final de junho o Ofício Circular 2339/2021 ME.

O documento resolve impasse que empresas e trabalhadores enfrentam no registro de acordos coletivos sem participação sindical, especialmente porque essa modalidade não é prevista no sistema Mediador e as soluções dependiam da opinião de cada agente público1.

O problema se agravou após a pandemia da COVID-19 pela dificuldade de atendimento físico nas Superintendências Regionais do Trabalho.

Doravante, o registro poderá ser requerido pelo sistema SEI2, mecanismo de comunicação eletrônica com diversos órgãos do governo.

2. Em face de regra constitucional, é dever do sindicato participar da negociação coletiva mediante os procedimentos e limites aprovados em assembleia.

A recusa à negociação configura conduta antissindical, pois não lhe é dado negar-se a representar os trabalhadores interessados ou da categoria profissional.

A CLT trata expressamente dessa recusa, permitindo a empresas e empregados a negociação direta, como se extrai do artigo 617, § 1º:

"Art. 617. Os empregados de uma ou mais empresas que decidirem celebrar Acordo Coletivo de Trabalho com as respectivas empresas darão ciência de sua resolução, por escrito, ao Sindicato representativo da categoria profissional, que terá o prazo de 8 (oito) dias para assumir a direção dos entendimentos entre os interessados, devendo igual procedimento ser observado pelas empresas interessadas com relação ao Sindicato da respectiva categoria econômica.

§ 1º. Expirado o prazo de 8 (oito) dias sem que o Sindicato tenha se desincumbido do encargo recebido, poderão os interessados dar conhecimento do fato à Federação a que estiver vinculado o Sindicato e, em falta dessa, à correspondente Confederação, para que, no mesmo prazo, assuma a direção dos entendimentos. Esgotado esse prazo, poderão os interessados prosseguir diretamente na negociação coletiva até final.

§ 2º. Para o fim de deliberar sobre o Acordo, a entidade sindical convocará assembléia geral dos diretamente interessados, sindicalizados ou não, nos termos do artigo 612."

3. Discute-se se essa regra foi – ou não – recepcionada pela Constituição, tendo em conta o artigo 8º, VI (...é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho...).

LUIZ EDUARDO GUNTHER e CRISTINA MARIA NAVARRO ZORNIG3 entre diversas correntes, citam SÉRGIO PINTO MARTINS, para quem, "apesar de a participação do sindicato dos empregados ser obrigatória nas negociações coletivas de trabalho (art. 8º, VI, da CF), (...) os dispositivos anteriormente elencados não foram revogados pela Constituição, pois se o sindicato tem interesse na negociação, os interessados não poderão ficar esperando indefinidamente, daí porque podem promover diretamente as negociações"4.

4. Infelizmente, em muitos casos a falta de ânimo para negociar se deve a motivos menos nobres, nem sempre ajustados à vontade coletiva dos representados. Outras vezes são razões puramente ideológicas que perturbam a negociação coletiva.

É comum ver dirigentes sindicais condicionando a negociação a contribuições sem autorização individual do trabalhador,   em clara afronta à decisão do Supremo Tribunal Federal  (ADI 5.794), mas  com aprovação de alguns tribunais trabalhistas.

Soma-se a isto a dificuldade de negociar em tempos de isolamento social, apesar da tendência à negociação virtual, inclusive prevista em recentes medidas provisórias,  havendo exemplos bem sucedidos de ampla participação.

5. O Tribunal Superior do Trabalho admite frequentemente a constitucionaliddade do artigo 617 da CLT, dando plena validade a acordos coletivos diretos com os empregados, se provada a recusa do sindicato.

Mas é bom lembrar que há decisões de tribunais regionais em sentido contrário5.

A nosso ver, o artigo 617, § 1º, da CLT é plenamente constitucional na medida em que protege direitos individuais e coletivos contra sindicatos que se recusam a respeitar a vontade do grupo de interessados.

Incidem aqui as técnicas de hermenêutica, como a teoria da lacuna oculta6, o princípio da concordância prática7 (conciliando a regra do artigo 8º, VI, com a liberdade de associação prevista no artigo 5º da CF), a lógica do razoável8 e a hemenêutica dos princípios9.

Trata-se de regra excepcional, exigindo prova inequívoca de recusa.

O procedimento previsto no Ofício Circular 2339/2021 ME disciplina o registro do acordo coletivo mediante as seguintes providências:

a) documento escrito que comprove a resolução e iniciativa dos empregados de uma ou mais empresas em celebrar Acordo Coletivo de Trabalho, dirigido ao respectivo sindicato representante da categoria;

b) documento que comprove a inequívoca ciência da entidade sindical acerca da resolução dos empregados, e sua posterior inércia ou efetiva e injustificada recusa em assumir as negociações;

c) documento que comprove a inequívoca ciência da Federação a que estiver vinculado o Sindicato acerca da resolução supramencionada e, em falta dessa, da correspondente Confederação, e sua posterior inércia ou efetiva e injustificada recusa em assumir as negociações, conforme o caso;

d) requerimento de registro do Instrumento Coletivo de Trabalho, onde deve ser descrito todo o histórico de tratativas envolvendo as entidades sindicais às quais as partes estiverem vinculadas;

e) ato constitutivo da empresa e/ou procuração ou carta de preposto de quem a represente;

f) cópia do Acordo Coletivo de Trabalho cujo registro se pleiteia; e

g) cópia da ata da assembleia dos trabalhadores que aprovou o referido instrumento.

5. Em alguns países, a negociação coletiva sem participação sindical é admitida até com mais largueza, como ocorre na Espanha10, Alemanha11 e França12. Nesses países a negociação direta convive com a efetiva liberdade sindical. 

A origem de nosso déficit de representatividade (os sindicatos têm o monopólio da representação, mas não são representativos) está no modelo de unicidade, contrário à liberdade sindical prevista na Convenção 87 da OIT, que constitui direito fundamental do trabalho (Declaração de 1998 da OIT13). Na doutrina do direito internacional do trabalho, a CV 87 tem vigência em todos os países-membros da OIT, independentemente de ratificação.

Por isto é urgente a reforma sindical. Empresas e trabalhadores devem ser livres para criar suas autênticas representações coletivas, sem limitações territoriais ou de categoria.

Enquanto isto não ocorre, é de lamentar que, mesmo após a Reforma de 2017, a criação de sindicatos continue a ser um bom negócio no Brasil.

__________

1 Sistema eletrônico de registro de instrumentos coletivos no Ministério da Economia.

2 A utilização do SEI no âmbito do Ministério da Economia decorre da Portaria ME 294, de 04.08.2020.

3 GUNTHER, Luiz Eduardo; ZORNIG, Cristina Maria Navarro. Negociação coletiva sem sindicato – O problema da recepção do § 1º do art. 617 da CLT, Jornal Trabalhista, nº 997, Brasília: Consulex, 22 de dezembro de 2003. pp. 4-5.

4 Apud op. cit., p. 4.

5 "ARTIGO 617 DA CLT – RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – Não foi recepcionado o artigo 617 da CLT, ante a disposição constitucional impondo a participação obrigatória do sindicatos nas negociações coletivas não prevendo exceção ao monopólio da legitimidade sindical." (TRT 4ª R. – RO 00359.761/00-3 – 1ª T. – Relª Juíza Maria Guilhermina Miranda – J. 12.09.2002).

6 LARENZ, Karl. Metodologia e ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 525.

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1188.

8 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 57-75.

9 LIMA, Francisco Gerson Marques de. Interpretação axiológica da Constituição sob o signo da Justiça. In: SOARES, José Ronald Cavalcante (org). Estudos de Direito Constitucional – Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: LTr, 2001, p. 56-58.

10 Veja-se NÉSTOR DE BUEN ao questionar se a negociação coletiva é "derecho de los trabajadores o derecho de los sindicatos":

"Un tema preocupante del contrato colectivo de trabajo es si debe ser celebrado por los trabajadores o por sus organizaciones sindicales.

Hay, por supuesto, muestras de sobra de cada una de las soluciones. En el Estatuto de los Trabajadores de España, por ejemplo, cuando se trata de empresas o establecimientos los convenios los celebran los delegados de personal o los comités de empresa. Estos pueden esta integrados, de manera total o parcial, por representantes sindicales aunque es más frecuente que lo integren fundamentalmente trabajadores sin afiliación sindical junto com otros, muchas veces en minoría, que forman parte de alguna confederación de sindicatos. En el caso de convenios de rama, sin embargo, se requiere la intervención de una central sindical.

Por el contrário, en la LFT los contratos colectivos de trabajo tienen que celebrarse, necesariamente, por sindicatos debidamente registrados ante las autoridades y com reconocimiento de sus mesas directivas, los trabajadores, por sí mismos, no están legitimados para hacerlo." (DE BUEN, Néstor. Evolución del pensamiento Iuslaboralista – Descripción de la regulación colectiva de las relaciones de trabajo y construcción de una teoria de los convenios colectivos y de la autonomia colectiva. In ACKERMAN, Mario E. et allii. Evolución del pensamiento juslaboralista – Estudios en homaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo: FCU, 1997. p. 147).

11 O direito alemão, como revela OCTAVIO BUENO MAGANO, também admite acordos coletivos sem participação sindical:

"(...) o acordo coletivo brasileiro não se confunde com o acordo de empresa, previsto na legislação alemã, mormente porque o último exclui a participação do Sindicato, implicando a atuação dos conselhos de empresa, inexistentes entre nós.

Esse seu aspecto, contudo, o aproxima do acordo coletivo direto, entre empregados e empresa, regulado no art. 617 da CLT. Em tal tipo de acordo, não há participação do Sindicato, senão para o efeito de assistir a empregados que desejem celebrar acordo coletivo. Deixando a entidade sindical de assumir a direção dos entendimentos em nome dos empregados, os últimos podem prosseguir diretamente nos entendimentos, até o final. Marca-se, assim, esse acordo de característica eminentemente empresarial. Diferencia-se, no entanto, do acordo de empresa alemão, porque no último, o conselho de empresa atua em nome próprio. O acordo resultante dos entendimentos será ajuste entre a empresa e o conselho respectivo, enquanto o nosso será ajuste entre empresa e seus empregados, podendo estes estar assistidos de entidade sindical." (MAGANO, Octavio Bueno. Convenção coletiva do trabalho. São Paulo: LTr, 1972. p. 132).

12 GIORGIO ROMANO SCHUTTE, MARIA SÍLVIA PORTELLA DE CASTRO e KJELD AAGAARD JACOBSEN informam que em 1996 entrou em vigor na França "uma nova lei que quebrou o monopólio dos sindicatos na negociação coletiva. Essa nova lei é fruto de um acordo firmado pela CFDT, mas rejeitada pela CGT e a FO. Nas empresas onde não houver delegados sindicais, e sempre que o contrato nacional do setor o permitir, pode-se negociar com uma comissão eleita pelos trabalhadores”. Ponderam que “isso deve permitir maior espaço de negociação nas pequenas e médias empresas". (O sindicalismo na Europa, Mercosul e Nafta. S. Paulo: LTr, 2000. p. 68).

13 Disponível aqui.