Não é costume começar uma crónica com uma citação tão grande, mas se quero falar de frases inesquecíveis, tenho de pedir ajuda a quem sabe. Olhemos para o início de um conto de Eça – «Civilização» (que foi a semente de A Cidade e as Serras):
Leia com vagar. Repare nas frases – e nas palavras. Acompanhe a pontuação. Olhe para aquele «preciosamente», um advérbio que torna a frase inesquecível. Não parece ser o amigo que é precioso, mas a posse desse amigo – e o próprio verbo «possuir» associado a um amigo tem muito que se lhe diga…
A preciosidade desta frase está também no inesperado da construção – tal como inesperada será a revelação do nome desse amigo dentro de parêntesis, como se o nome fosse pouco importante. Note agora o ritmo das frases, na composição de parágrafos com frases muito longas e outras curtíssimas, num encadeamento de sons, imagens e ideias que vai trabalhando a nossa imaginação. Vamos desde um sujeito de 32 palavras, em que Eça constrói uma imagem muito detalhada para descrever a boa vida de Jacinto…
… e só a seguir aparece o verbo principal da frase…), até uma seca frase final:
Temos ainda a mistura de palavras de mundos muito diferentes, que abanam o leitor entre sensações de prazer («champagne», «lindo rio») e referências a doenças («lombrigas», «sarampo»). Esta justaposição obriga-nos a sorrir. Ah, e logo a seguir às doenças infantis, temos os padecimentos adolescentes, que se transmitem por leitura de certos autores. Mais um sorriso preciosamente irónico nos nossos lábios, é o que é…
Estas conjunções (em aparente contradição) inflectem o texto e introduzem o mistério: tanta facilidade, é certo, mas tanto pessimismo, tanto aborrecimento. Temos então aqueles bocejos cavos e lentos – Eça quer ser exacto, mas também não quer mentir: não tem bem a certeza se serão três ou quatro. Terminamos com os dedos finos de Jacinto a passar sobre as faces…
É fácil imaginar, como se lá estivéssemos, os dedos a passar pela cara de Jacinto, uma cara que nos aparece com a rigorosa expressão de enfado, ou talvez enfartamento ou algo que me escapa – aquilo que não consigo descrever, mas que Eça recria, nestas frases, dentro da nossa imaginação. Há muito mais – quanto mais! – a dizer sobre estes parágrafos. Então se olharmos para o conto inteiro, teríamos livros a escrever… Voltemos, no entanto, àquele «preciosamente». Há aqui algo diferente do que estaríamos à espera – muita da arte da literatura faz-se dessa fuga ao habitual, em conjugação com um controlo perfeito das frases, da variação vocabular, da repetição… Nem sempre um texto inesquecível, que deixa o coração a palpitar, se caracteriza pelo bom senso, por evitar as repetições, por cumprir o que é habitual na sintaxe portuguesa (embora raramente quebre uma proibição sintáctica). Como exemplo, deixo aqui um exemplo extremo do uso da repetição, um extracto do texto «Revolução e Mulheres», de Maria Velho da Costa:
O parágrafo continua com muitas outras frases começadas por «elas…». Num texto diferente, do dia-a-dia, a repetição de «elas» seria um erro estilístico. Não é isso que temos aqui – o pronome repetido inúmeras vezes, sempre no início da frase, martela-nos o cansaço e a variedade das vidas delas num parágrafo que fica no ouvido durante muito tempo. Muitos outros escritores têm as suas estratégias para conseguir um determinado efeito no leitor. Não temos de gostar – mas convém não cair no erro grosseiro de considerar estas estratégias literárias distracções ou incorrecções. Na literatura, o interessante começa onde termina a gramática. Temos alguns malabarismos verbais, mas temos também a ironia dum narrador divertido, vozes de várias personagens em confronto num só parágrafo, uma palavra que contém em si todo um meio social… É por isso que, para lá de conhecer as regras de gramática e as regras de ortografia, devemos ler, ler muito, ler sem parar, saboreando as palavras e as frases dos bons livros, que são um dos grandes prazeres do mundo. Só assim podemos ter esperança de criar frases inesquecíveis. (Excerto do livro Gramática para Todos.) Ler mais...
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