A cultura popular na idade moderna peter burke pdf

PETER BURKE CULTURA POPULAR NA IDADE MODERNA Europa, 1500-1800 Tradução Denise Bottmann Para Sue Qui dit le peuple dit plus d’une chose: c’est une vaste expression, et l’on s’étonneroit de voir ce qu’elle embrasse, et jusques où elle s’étend. LA BRUYÈRE, Les Caractères, Paris, 1688, “Des Grands” SUMÁRIO Agradecimentos Nota Prólogo Introdução a esta edição PARTE 1 — EM BUSCA DA CULTURA POPULAR 1. A descoberta do povo 2. Unidade e diversidade na cultura popular As classes altas e a “pequena tradição” Variedades da cultura popular: o campo Variedades da cultura popular: as cidades Os andarilhos Variações religiosas e regionais Interação 3. Uma presa esquiva Os mediadores Abordagens indiretas da cultura popular PARTE 2 — ESTRUTURAS DA CULTURA POPULAR 4. A transmissão da cultura popular Os profissionais Os amadores Cenários Tradição e criatividade 5. Formas tradicionais Gêneros Temas e variações O processo de composição 6. Heróis, vilões e bobos Protótipos e transformações Atitudes e valores populares 7. O mundo do Carnaval Mitos e rituais Carnaval O “mundo de cabeça para baixo” O carnavalesco Controle social ou protesto social? PARTE 3 — TRANSFORMAÇÕES NA CULTURA POPULAR 8. A vitória da Quaresma: a reforma da cultura popular A primeira fase da reforma, 1500-1650 A cultura dos devotos A segunda fase da reforma, 1650-1800 9. Cultura popular e transformação social A revolução comercial Os usos da alfabetização A política e o povo A retirada das classes superiores Da retirada à descoberta Apêndice 1: A descoberta do povo: antologias e estudos selecionados, 1760-1846 Apêndice 2: Publicações selecionadas ilustrando a reforma da cultura popular, 1495-1664 Notas Bibliografia Sobre o autor AGRADECIMENTOS Ao escrever este livro contraí ainda mais dívidas do que o usual. Gostaria de agradecer à Academia Britânica por uma bolsa de intercâmbio, que me permitiu visitar pessoas e museus na Noruega e na Suécia, e à Universidade de Sussex pela licença de dois períodos letivos e pelo reembolso das minhas despesas com a datilografia. Ruth Finnegan, da Open University, e meus colegas de Sussex, Peter Abbs, Peter France, Robin Milner--Gulland, John Rosselli e Stephen Yeo, tiveram a gentileza de comentar os rascunhos de parte ou todo o livro. Minha incursão em seus territórios foi ajudada por diversos estudiosos escandinavos, principalmente Maj Nodermann, em Estocolmo, Marta Hoffmann, em Oslo, e Peter Anker, em Bergen. Também agradeço aos diversos historiadores na Grã-Bretanha que me passaram referências ou responderam a dúvidas. Alan Macfarlane deu-me a oportunidade de submeter algumas ideias do capítulo 7 a um animado grupo de historiadores e antropólogos sociais reunidos no King’s College, Cambridge. Um esboço prévio do capítulo 3 foi apresentado numa conferência na Universidade de East Anglia, em 1973, e agora está publicado em C. Bigsby (org.), Approaches to popular culture, 1976; gostaria de agradecer a Edward Arnold Ltd. pela permissão para a sua republicação. Também gostaria de agradecer a Margaret Spufford pelos comentários que chegaram logo antes das provas. NOTA Um livro com esse escopo está inevitavelmente abarrotado de nomes e termos técnicos. Avisa-se o leitor que encontrará no índice remissivo, que também traz um glossário, breves detalhes biográficos sobre pessoas mencionadas no texto. Muitas referências apresentadas nas notas estão abreviadas; vêm citadas na íntegra na bibliografia. Exceto indicação em contrário, as traduções são minhas. PRÓLOGO O objetivo deste livro é descrever e interpretar a cultura popular dos inícios da Europa moderna. “Cultura” é uma palavra imprecisa, com muitas definições concorrentes; a minha definição é a de “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”.1 A cultura nessa acepção faz parte de todo um modo de vida, mas não é idêntica a ele. Quanto à cultura popular, talvez seja melhor de início defini-la negativamente como uma cultura não oficial, a cultura da não elite, das “classes subalternas”, como chamou-as Gramsci.2 No caso dos inícios da Europa moderna, a não elite era todo um conjunto de grupos sociais mais ou menos definidos, entre os quais destacavam-se os artesãos e os camponeses. Portanto uso a expressão “artesãos e camponeses” (ou “povo comum”) para sintetizar o conjunto da não elite, incluindo mulheres, crianças, pastores, marinheiros, mendigos e os demais grupos sociais (as variações culturais dentro desses grupos estão discutidas no capítulo 2). Para descobrir as atitudes e valores dos artesãos e camponeses é necessário alterar as abordagens tradicionais da história da cultura, desenvolvidas por homens como Jacob Burckhardt, Aby Warburg e Johan Huizinga, e recorrer a conceitos e métodos de outras disciplinas. A disciplina a que se recorre naturalmente é a do folclore, visto que os folcloristas estão interessados principalmente no “povo” (the folk), em tradições orais e rituais. Boa parte do material a ser discutido neste livro tem sido estudada há muito tempo por especialistas no folclore europeu.3 Parte tem sido estudada por críticos literários; sua ênfase nas convenções dos gêneros literários e sua sensibilidade à linguagem dão-lhes um discernimento que o historiador da cultura não pode dispensar.4 Apesar das diferenças evidentes entre a cultura dos azandes ou dos bororós e a cultura dos artesãos de Florença ou dos camponeses do Languedoc, o historiador da Europa pré-industrial pode aprender muito com os antropólogos sociais. Em primeiro lugar, os antropólogos dedicam-se a entender o conjunto de uma sociedade estranha a partir de seus próprios termos, ao passo que os historiadores, até recentemente, tendiam a restringir seu interesse às classes superiores. Em segundo lugar, os antropólogos não param quando descobrem a visão do agente sobre o significado de sua ação, mas avançam para estudar as funções sociais dos mitos, imagens e rituais.5 O período abarcado por este livro vai, aproximadamente, de 1500 a 1800. Em outras palavras, corresponde ao que os historiadores muitas vezes chamam de “inícios do período moderno”, mesmo quando negam sua modernidade. A área em discussão é o conjunto da Europa, da Noruega à Sicília, da Irlanda aos Urais. Essas opções necessitam, talvez, de algumas palavras de explicação. Originalmente concebido como um estudo regional, este livro se converteu numa tentativa de síntese. Dadas as dimensões do assunto, é óbvio que não se pretendeu nenhum tipo de cobertura abrangente; o livro é antes uma série de nove ensaios sobre temas centrais, ligados entre si, relativos ao código da cultura popular, e não tanto a mensagens individuais, e apresenta uma descrição simplificada das questões recorrentes e das principais tendências. A escolha de um assunto tão vasto tem sérios inconvenientes, e o mais evidente é o fato de que não se pôde estudar nenhuma região em detalhe e profundidade. Também foi preciso ser impressionista, renunciar a certas abordagens quantitativas promissoras, pois as fontes não eram suficientemente homogêneas ao longo desses grandes períodos de espaço e tempo para poderem ser exploradas dessa maneira.6 Mas há vantagens compensadoras. Na história da cultura popular existem problemas recorrentes que precisam ser discutidos a um nível mais geral do que o da região — problemas de definição, explicações de transformações e, o mais evidente, a importância e os limites da própria variação regional. Enquanto os estudos locais ressaltam acertadamente essas variações, meu propósito é complementá-los, tentando reunir os fragmentos e vê-los como um todo, como um sistema de partes inter-relacionadas. Espero que este pequeno mapa de um imenso território ajude a orientar futuros exploradores, mas também escrevi tendo em mente o leitor comum; um estudo sobre a cultura popular é algo que jamais pode ser esotérico. Os anos entre 1500 e 1800 foram escolhidos por constituírem um período suficientemente longo para revelar as tendências menos visíveis e por serem os séculos com melhor documentação sobre a história da Europa pré-industrial. A longo prazo, a imprensa solapou a cultura oral tradicional; mas, nesse processo, também registrou grande parte dela, tornando conveniente começar quando os primeiros folhetos e brochuras estavam saindo do prelo. O livro termina no final do século XVIII devido às enormes transformações culturais empreendidas pela industrialização, embora tais transformações não tivessem afetado toda a Europa igualmente em 1800. Em consequência da industrialização, temos de fazer um esforço considerável de imaginação antes de conseguirmos penetrar nas atitudes e valores dos artesãos e camponeses dos inícios da Europa moderna (se é que isso é possível). Deixemos de lado a televisão, o rádio e o cinema, que padronizaram os vernáculos da Europa na memória dos vivos, para não citar transformações menos óbvias, mas talvez mais profundas. Deixemos de lado as estradas de ferro, que provavelmente contribuíram até mais do que o serviço militar obrigatório e a propaganda governamental para corroer a cultura específica de cada província e para converter as regiões em nações. Deixemos de lado a educação e alfabetização universais, a consciência de classe e o nacionalismo. Deixemos de lado a moderna confiança (ainda que abalada) no progresso, na ciência e na tecnologia, e deixemos de lado os modos profanos em que as esperanças e os medos são expressões. Tudo isso (e mais) é necessário antes de conseguirmos penetrar no “mundo (cultural) que perdemos”. Como tentativa de síntese, alguns podem julgar esta obra prematura; espero que não o façam antes de consultar a bibliografia. É verdade que a cultura popular só passou da periferia para o centro dos interesses do historiador ao longo dos últimos quinze anos, graças aos estudos de Julio Caro Baroja, na Espanha, Robert Mandrou e Natalie Davis, na França, Carlo Ginzburg, na Itália, Edward Thompson e Keith Thomas, na Inglaterra. Há, no entanto, uma longa tradição de interesse pelo assunto. Houve gerações de folcloristas alemães com perspectivas históricas, como Wolfgang Brückner, Gerhard Heilfurth e Otto Clemen. Nos anos 1920, um importante historiador norueguês, Halvdan Koht, interessou-se pela cultura popular. No começo do século XX, a escola finlandesa de folcloristas interessou-se por história; Kaarle Krohn e Anti Aarne são exemplos dessa tendência. No final do século XIX, destacados estudiosos da cultura popular, como Giuseppe Pitrè, na Sicília, e Teófilo Braga, em Portugal, tinham clara consciência das transformações ao longo do tempo. Mas as obras de Pitrè e Braga fazem parte de uma tradição compilatória que remonta à época em que os intelectuais descobriram o povo, no final do século XVIII e início do século XIX. É para esse movimento que agora me volto. INTRODUÇÃO A ESTA EDIÇÃO Desde quando este volume foi publicado, há uma década, a pesquisa sobre cultura popular cresceu como um riacho que se transforma num caudaloso rio, o que fica muito claro pela leitura da bibliografia suplementar. Contribuições valiosas foram feitas aos tópicos discutidos nos capítulos deste livro.1 Um número considerável de novos estudos foi dedicado a quase todos os países da Europa. No caso da Espanha, por exemplo, esses estudos incluem o trabalho de William Christian sobre as religiões populares, ou “locais”, como ele prefere chamá-las; o de Jaime Contreras, Jean-Pierre Dedieu, Ricardo García Corcel e outros, sobre a investigação levada a cabo pela inquisição das crenças das pessoas comuns, e a reavaliação de Goya feita por Jutta Held, bem como um conjunto de ensaios sobre literatura popular.2 Não apenas monografias, mas algumas densas coleções de artigos foram dedicadas à história da cultura popular na Inglaterra, na França, na Alemanha e na Polônia, bem como no conjunto da Europa.3 Os historiadores de outras partes do mundo descobriram a cultura popular ou, para ser mais preciso, alguns deles decidiram, após uma reação inicial de desconfiança, que o conceito de cultura popular pode ser útil em sua pesquisa.4 Os historiadores americanos da China, por exemplo, realizaram uma conferência sobre a história da cultura popular, enquanto em Cambridge um seminário de historiadores da Ásia meridional focalizava o mesmo tema.5 Não sei de nenhum simpósio similar sobre a história da cultura popular da América Latina, mas há alguns estudos nessa área, especialmente estudos do Brasil.6 O interesse cada vez maior em cultura popular está, certamente, longe de se restringir aos historiadores. É compartilhado — e vem sendo compartilhado há muito tempo — pelos sociólogos, folcloristas e estudantes de literatura, aos quais vieram juntar-se mais recentemente os historiadores da arte e os antropólogos sociais, sem falar nessa área vagamente definida conhecida na Inglaterra como “estudos culturais”.7 Entre si, esses grupos produziram um respeitável corpo de trabalhos. Como resultado de todo esse esforço, a cultura popular do início da Europa moderna parece hoje, pelo menos a meu ver, um pouco diferente. Foi-me gratificante ver que uma parte substancial desses estudos novos usa meu trabalho e que alguns conceitos de minha autoria, principalmente o de “reforma” e o de “retirada” da cultura popular, passaram a ter uso geral, apesar das discordâncias quanto à duração ou à explicação exata dessas tendências. É bastante óbvio que a multiplicação de monografias sobre temas ou regiões particulares modificará um quadro geral da Europa como o que tracei, mas vale a pena enfatizar que os estudos sobre a China, a Índia e a América Latina (e, esperemos, estudos futuros sobre a África e o Oriente Médio) também são relevantes para uma tal síntese. Eles definem por contraste o que é especificamente europeu e revelam os pontos fortes e fracos de conceitos fundamentais, ao testá-los em situações para as quais não foram originalmente criados (tais como sociedades nas quais tribos ou castas perpassam divisões entre “elite” e “povo”). É impossível resumir em uma fórmula única todas as sugestões feitas no decorrer de dez anos de debate sobre cultura popular, mas ele tendeu a concentrar-se em dois temas ou questões principais. A primeira questão é “O que é ‘popular’?”, a segunda, “O que é ‘cultura’?”. O PROBLEMA DO “POPULAR” A noção do “popular” foi há muito reconhecida como problemática, e como tal discutida na primeira edição deste livro. Assim mesmo, as discussões recentes revelaram mais problemas, ou chamaram a atenção mais diretamente para algumas dificuldades. Uma questão hoje levantada frequentemente é que o termo “cultura popular” dá uma falsa impressão de homogeneidade e que seria melhor usá-lo no plural, ou substituí-lo por uma expressão como “a cultura das classes populares” (Mandor 1977, Ginzburg 1979). Como o capítulo 2 deste livro foi dedicado a esse problema, parece desnecessário falar mais sobre ele aqui. Outra objeção, ao que se chama às vezes de “modelo de duas camadas” de cultura de elite e popular, é a seguinte.8 A fronteira entre as várias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram tão variadas quanto aquelas) é vaga e por isso a atenção dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na interação e não na divisão entre elas. O interesse cada vez maior no trabalho do grande crítico russo Mikhail Bakhtin, cuja maior parte está agora traduzida para as línguas ocidentais, revela ao mesmo tempo que estimula essa mudança de ênfase.9 O destaque dado por ele à importância da “transgressão” dos limites é aqui obviamente relevante. Sua definição de Carnaval e do carnavalesco pela oposição não às elites, mas à cultura oficial, assinala uma mudança de ênfase que chega quase a redefinir o popular como o rebelde que existe em todos nós, e não a propriedade de algum grupo social.10 As interações entre as duas culturas (em suas múltiplas variedades) foram discutidas em vários momentos na primeira edição deste livro, mais especialmente nas seções que tratavam do que chamei de “biculturalidade” das elites, suas tentativas de “reformar” a cultura popular, sua “retirada” dela e finalmente sua “descoberta”, ou mais exatamente “redescoberta” da cultura do povo, especialmente os camponeses. Não obstante, aprendi muito das discussões recentes dessas interações, inclusive das críticas explícitas às minhas próprias formulações, e embora eu não veja ainda nenhuma razão para abandonar qualquer uma delas, gostaria de acrescentar algumas nuances. Concordo, por exemplo, que o termo “cultura popular” tem um sentido diferente quando usado por historiadores para referir-se: (1) à Europa por volta do ano de 1500, quando a elite geralmente participava das culturas do povo, e (2) ao final do século XVIII, quando a elite tinha geralmente se retirado.11 Em outras palavras, o assunto deste livro não é no final do período o mesmo que era no início, dificuldade com a qual têm de se haver os historiadores das tendências de longa duração. Outra objeção diz respeito a meu uso do termo “bicultural”. Cunhei esse termo seguindo o modelo de “bilíngue”, para descrever a situação de membros da elite que aprenderam o que hoje chamamos de canções e contos populares na infância, como todo mundo aprende, mas que também participaram de uma cultura “alta”, ensinada em escolas secundárias, universidades, cortes etc., às quais as pessoas comuns não tiveram acesso. Um paralelo linguístico mais exato poderia ser “diglossia”, ou seja, a competência em duas variedades da mesma língua (árabe clássico e coloquial, por exemplo), com um mesmo orador passando de uma variedade a outra de acordo com a situação, o assunto da conversação e assim por diante.12 A sugestão de que a cultura popular tem um significado diferente para quem também tem acesso à cultura da elite me parece razoável, mas não é uma objeção séria ao uso do termo “bicultural”.13 É provável, afinal de contas, que os bilíngues e os monolíngues tenham atitudes de algum modo diferentes em relação à língua. Outra sugestão, ou crítica, deixa-me em dúvida. Um historiador de diversões “populares” na Paris do século XVIII argumenta que membros da elite participavam dos espetáculos apresentados nas feiras e nas ruas com tal frequência que é possível falar de “convergência entre cultura popular e cultura de elite”.14 Considerando que a análise da situação local esteja certa, permanecem problemas. Essa “convergência” era um fenômeno comum na Europa de então? Se sim, era o resultado da comercialização da cultura popular? E de novo nos defrontamos com o problema da significação. Uma apresentação em uma feira de Paris tem o mesmo significado para as elites que participavam e para as “classes populares”? Algumas dificuldades estão associadas ao termo “participação”, que é mais vago do que pode parecer, pois é usado geralmente para referir-se a um leque de atitudes que variam da total imersão à observação desinteressada. As ideias e iniciativas das pessoas comuns também foram reexaminadas, e fui gentilmente repreendido por alguns historiadores ingleses por sugerir no capítulo sobre a “Vitória da Quaresma” que houve um movimento liderado pela elite que visava à reforma da cultura popular.15 Talvez seja elucidativo abordar ou enfatizar dois aspectos. O primeiro é que a cultura popular não foi o único objeto do ataque dos reformadores. Eles tendiam a opor-se à cultura “profana” ou mundana indiscriminadamente. Contudo, eles frequentemente escolhiam ideias e práticas que atribuíam ao “povo”. O segundo aspecto a ser enfatizado é que esse movimento reformista não se restringia a uma elite social ou cultural; “os artesãos piedosos existiram”. Não pretendo sugerir que a reforma era imposta de cima no sentido de que as pessoas comuns nunca a apoiavam espontaneamente. Nem toda a elite apoiava as reformas e nem todo o povo se opunha a elas. A questão que levantei era e é simplesmente a de que “a liderança do movimento estava nas mãos dos cultos, normalmente o clero”, Andreas Osiander, João Calvino, Carlos Borromeu e outros. Por mais espontâneas que fossem, as ações de um artesão piedoso eram resposta a uma iniciativa que vinha originalmente de cima. Alguns estudiosos descreveriam tais ações como um exemplo da hegemonia cultural do clero. Uso essa frase para chamar a atenção para uma ausência notável do quadro de referência deste livro; a noção de Gramsci de “hegemonia cultural”, noção esta que foi muito empregada nos últimos anos em discussões das interações entre cultura de elite e cultura popular, notadamente por Edward Thompson.16 Essas discussões fizeram-me perceber que meu próprio estudo não era suficientemente político e que muito mais poderia ter sido dito sobre o Estado em meus capítulos sobre a mudança.17 Mesmo assim, fico um pouco apreensivo sobre o constante apelo à “hegemonia cultural” em estudos recentes, e sobre o modo como um conceito usado pelo próprio Gramsci para analisar problemas particulares (tais como a influência da Igreja na Itália meridional) foi retirado de seu contexto original e usado mais ou menos indiscriminadamente para tratar de uma série mais ampla de situações. Gostaria de sugerir, como um antídoto contra essa inflação ou diluição do conceito, que os que o usam tivessem em mente as três seguintes questões. 1) A hegemonia cultural deve ser considerada um fator constante ou ela só tem operado em certos lugares e épocas? Nesse caso, quais as condições e os indicadores de sua existência? 2) O termo é descritivo ou explicativo? Nesse caso, refere-se a estratégias conscientes da classe dominante (ou de grupos em seu interior) ou à racionalidade inconsciente ou latente de suas ações? 3) Como devemos considerar a realização dessa hegemonia? Ela pode estabelecer-se sem o conluio ou a conivência de pelo menos alguns dos dominados (como no caso dos artesãos piedosos)? Pode-se opor-lhe resistência com sucesso? Se sim, quais são as principais “estratégias contra-hegemônicas”?18 A classe dominante impõe seus valores às classes subalternas ou há algum tipo de compromisso, com definições alternativas da situação? O conceito de “negociação”, como é usado correntemente pelos sociólogos e historiadores sociais, podia ser muito útil nesta análise.19 Todas as objeções à ideia de cultura popular discutidas até aqui são relativamente brandas no sentido de que envolvem qualificações ou mudanças de ênfase. Outras objeções são mais radicais e envolvem tentativas de substituir inteiramente o conceito. Duas dessas objeções merecem, particularmente, ser discutidas; a de William Christian e a de Roger Chartier.20 Em seu estudo de votos, relíquias e santuários na Espanha do século XVI, Christian argumenta que o tipo de prática religiosa que está descrevendo “era uma característica tanto da família real quanto dos camponeses analfabetos”, e recusa-se, consequentemente, a usar o termo “popular”. Em seu lugar ele usa o termo “local”, argumentando que “a grande maioria dos lugares e monumentos sagrados tinha significado apenas para os habitantes locais”.21 Essa ênfase nas características locais do que geralmente se chama de religião “popular” é importante, apesar de não ser exatamente nova. O que é novo é a sugestão de que abandonemos um modelo binário, o de elite e povo, e o substituamos por outro, o de centro e periferia. Esses modelos centro-periferia têm sido usados cada vez mais por historiadores nos últimos anos, em história econômica, história política e mesmo na história da arte. Eles têm seu valor, e certamente eu mesmo os considero úteis na análise das reações de “Roma” às pressões locais por canonização.22 Entretanto, não estão livres de problemas e ambiguidades. A noção de “centro”, por exemplo, é difícil de definir, pois os centros espaciais e os centros de poder nem sempre coincidem (pensamos em Londres, Paris, Pequim...). No caso do Catolicismo, podemos razoavelmente assumir que Roma seja o centro, mas é bastante claro que as devoções não oficiais eram tão comuns naquela cidade santa quanto em qualquer outro lugar. Ao se tentar eliminar uma dificuldade conceitual, criou-se outra. O problema básico é que uma “cultura” é um sistema com limites muito indefinidos. O grande valor dos ensaios recentes de Roger Chartier sobre “hábitos culturais populares” é que ele tem essa indefinição sempre em mente. Ele argumenta que “não faz sentido tentar identificar cultura popular por alguma distribuição supostamente específica de objetos culturais”, tais como ex-votos ou a literatura de cordel, porque esses objetos eram na prática usados ou “apropriados” para suas próprias finalidades por diferentes grupos sociais, nobres e clérigos assim como artesãos e camponeses.23 Seguindo Michel De Cerceau e Pierre Bourdieu, ele sugere que o consumo cotidiano é um tipo de produção ou criação, pois envolve as pessoas imprimindo significado aos objetos. Nesse sentido todos nós nos engajamos em bricolage.24 Chartier prossegue sugerindo que os historiadores estudem “não conjuntos culturais definidos como ‘populares’ mas sim os modos específicos pelos quais esses conjuntos culturais são apropriados”. Aceito esses argumentos, e admiro a análise da Bibliothèque Bleue francesa que Chartier fez nessa direção, mas não acho que deva, em consequência, alterar muita coisa deste livro. O que Chartier está fazendo, ao enfocar os objetos, é complementar e não contraditório com o que fiz ao focalizar grupos sociais, quando escrevi sobre as elites do começo da Europa moderna como “biculturais”, participando da cultura popular mas preservando sua própria cultura; ou efetivamente quando defini cultura com ênfase na mentalidade como “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas simbólicas (apresentações, artefatos) nas quais eles se expressam ou se incorporam”. Ainda assim, a noção de cultura precisa ser reexaminada. A NOÇÃO DE “CULTURA” Os problemas suscitados pela utilização do conceito de “cultura” são no mínimo ainda maiores que os suscitados pelo termo “popular”. Uma razão para esses problemas é que o significado do conceito foi ampliado na última geração à medida que os historiadores e outros intelectuais ampliaram seus interesses. Na era da chamada “descoberta” do povo, o termo “cultura” tendia a referir-se a arte, literatura e música, e não seria incorreto descrever os folcloristas do século XIX como buscando equivalentes populares da música clássica, da arte acadêmica e assim por diante. Hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo “cultura” muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser aprendido em uma dada sociedade — como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante. Em outras palavras, a história da cultura inclui agora a história das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava considerar garantido, óbvio, normal ou “senso comum” agora é visto como algo que varia de sociedade a sociedade e muda de um século a outro, que é “construído” socialmente e portanto requer explicação e interpretação social e histórica. Essa nova história cultural é às vezes chamada história “sociocultural” para distingui-la das histórias mais tradicionais da arte, da literatura e da música. Minha definição original de cultura levou em conta o cotidiano. Eu pretendia que os termos-chave “artefatos” e “apresentações” fossem compreendidos num sentido amplo, estendendo a noção de “artefato” para incluir construções culturais tais como as categorias de doença, sujeira, gênero ou política, e a de “apresentação” para abarcar formas de comportamento culturalmente estereotipadas, tais como festas ou violência. Na prática, devo admitir, o livro concentra-se numa série mais estreita de objetos (principalmente imagens, material impresso e casas) e atividades (especialmente canto, dança, representação teatral e participação em rituais), a despeito da tentativa de colocar esses objetos e atividades em um contexto social, econômico e político mais amplo. A revolta popular foi discutida com algum detalhe, mas pode-se dizer que sexo, casamento e vida familiar, por exemplo, foram virtualmente omitidos.25 Foi acertada essa decisão de optar na prática por uma definição mais restrita de cultura? No início dos anos 1970, quando comecei a pesquisa para este estudo, poucos exemplos do novo tipo de história sociocultural haviam já sido publicados, de modo que não havia amadurecimento para uma síntese. Pode-se dizer que o preço pago pelas ambições geográficas mais amplas do livro, por sua tentativa de pesquisar a Europa da Irlanda e Portugal até os Urais, foi limitar nesse sentido suas ambições temáticas e concentrar-se no que podia ser comparado e contrastado com algum grau de precisão, como baladas e chap-books. Se estivesse começando a pesquisa agora, não estou certo do que faria. A ideia de escrever uma história sociocultural geral do início da Europa moderna é por certo atraente. Por outro lado, ainda me parece que há lugar para um livro que se concentra nos artefatos e apresentações em sentido estrito, porque esse tema mais limitado permite um estudo comparativo mais rigoroso do que o tema mais amplo. Certamente é impossível traçar um limite preciso entre o sentido estrito e o amplo de “cultura”, e pode ser útil concluir essa introdução pela discussão de alguns exemplos de pesquisa recente que se situam entre os dois. Tomemos, por exemplo, o caso dos insultos, que podem ser considerados, pelo menos em algumas culturas, tanto como uma forma de arte ou gênero literário, quanto como uma expressão de hostilidade genuína. Na Roma do século XVIII, por exemplo, eles assumiram tanto forma escrita e pictórica quanto oral, usaram tanto o verso quanto a prosa, e fizeram alusão a, ou parodiaram, epitáfios e comunicados oficiais.26 Alguém pode, novamente, to...