Prazeres, práticas sexuais e abjeção: travestis, transexuais e os limites em ser “gente” formas adequadas, e não por acaso associadas a valores apropriados dos regimes morais, são vistas como expres- são de uma natureza humana. As formas dissidentes são consideradas perversões ao modelo natural. As vidas que se encaixam nesta descri- ção não são convidadas a participar do banquete da hu- manidade. Não recebem o mesmo tratamento destinado aos humanos, sendo submetidas a formas de desquali- cação, discriminação, estigmatização, negação de direi- tos, violências e, inclusive, à morte. Os crimes contra a vida de motivação transfóbica geralmente apresentam traços de crueldade – além da violência própria de tirar a vida de outrem. Em muitos casos, as vítimas têm os olhos perfurados ou os membros decepados, ou são enterradas de cabeça para baixo,9 ou quaisquer marcas físicas que revelam ódio aos corpos que ousaram atravessar as fron- teiras da natureza. Para as pessoas: direitos desviantes e subjetividades impossíveis As tecnologias corporais utilizadas, muitas vezes, por travestis e transexuais, como aplicação de próteses, sili- cone, hormônios, entre outras alterações, assim como as tecnologias sexuais que geram subversão ao modelo do sexo procriativo, conguram-se como parte das idealiza- ções “míticas” dessas identidades rotuladas e estigmati- zadas. Em diálogo com Preciado (2014), signicamos as tecnologias sexuais e corporais acompanhadas pelas his- tórias das sexualidades, desde suas versões mais naturali- zadas. Neste caso, é importante tomar estas expressões a partir dos efeitos de questionamento que apresentam aos regimes de verdade que reiteram marginalidades a que são submetidas travestis e transexuais: A partir de nociones de diferencia y margen, se reiventa lo que entendemos por naturaleza. Se producen narrativas de resistencia con posiciones de sujetos híbridas, contradicto- rias, encarnadas, exibles, parciales, fragmentadas, provisio- nales, nómadas, heterogéneas, atentas a sus efectos esencia- lizantes y excluyentes (RODRIGO; TORRES, 2005, p. 206). Aqui, a crítica ao sujeito10 universal e essencialista, que contém uma natureza humana, é colocada. É tão “natural” a concepção de humano quanto antinatural a relação anal, para humanas e humanos – se tomarmos esta ótica. De fato, são questionáveis as noções de hu- manidade que podem ser encontradas nas relações que constroem as vidas de travestis e transexuais. Paradoxal- mente, muitos espaços de militância, onde são conside- radas as reivindicações dessa população, levam o título de Direitos Humanos. Secretarias, Comissões, Grupos de Trabalho, Departamentos, entre outros espaços de Di- reitos Humanos, se encarregam de pautas advindas das ditas “minorias”, dentre elas a população LGBT11 e, mais especicamente, as travestis e os transexuais. Sobre a ca- tegoria “humano”, arma Braidotti (2013, p. 11): 9 Estas três situações de homicídio transfóbico ocorreram recentemente na cidade de Londrina, Paraná. 10 Aqui, o termo “sujeito” é usado unicamente na exão masculina de gênero gra- matical, dada a estreita relação que a concepção moderna de sujeito tem com o gênero masculino, no caso com a categoria Homem. 11 Pessoas lésbicas, bissexuais, gays, travestis e transexuais. Este término disfruta de un amplo consenso y conserva la tranquilizadora familiaridad del lugar común. Nosotros armamos nuestro apego a la especie como si fuera um dato de hecho, um presupuesto. Hasta el punto de construir en torno a lo humano la noción fundamental de Derecho. Pero, ¿las cosas son de verdad así? Logo, a frase: “Direitos humanos para humanos direi- tos” traz à tona o incômodo frente às lutas em favor des- tas minorias. Lutas por direitos que seriam privilégios, segundo tal posição binária e universal. Um maior senso crítico e inteligência nos levariam logo a reconhecer que, infelizmente, a frase não representa uma reivindicação, mas a constatação de um sistema injusto no uso dos di- reitos das pessoas. Uma grande quantidade de pessoas que não são direitas (estão “à esquerda”) e, por consequência, estão à margem do acesso aos direitos garantidos aos humanos represen- tam, conforme denomina Preciado (2011), uma multidão dos anormais. Essa noção de humano/humana realmente não abarca todas as multiplicidades de experiências de vi- das, como defende Rosi Braidotti (2013, p. 11): No si por “humano” entendemos esa criatura que se nos há vuelto tan familiar a partir de la Ilustracion y de su herencia: el sujeto cartesiano del cogito, la kantiana comunidad de los seres racionales, o, em términos más sociológicos, el sujeto- -cuidadano, titular de direitos, proprietário, étctera, étctera. Braidotti (2013) coloca como central a problematiza- ção sobre os limites do humano, a partir de críticas an- ti-humanistas, para podermos pensar relações no mundo contemporâneo, marcado pelo que denomina por con- dições pós-humanas. O termo pós-humano, talvez uma brincadeira ontológica (nos termos de Paul B. Preciado), é descrito como um termo útil para indagar os novos mo- dos de se comprometer com o presente. Dentre as considerações que podemos trazer para o nosso diálogo estão, em primeiro lugar, as posições crí- ticas frente ao humanismo. O conceito de Humano tem como imagem principal o Homem, “medida certa de to- das as coisas”. O enunciado de Protágoras, simbolizado por Leonardo Da Vinci no “homem vitruviano”, é res- gatado por Braidotti para referir-se ao sujeito masculino associado ao termo “humano”. O ideal humanista, com essa e outras premissas excludentes, se instaura como um modelo universal que, de maneira hegemônica, tem de- terminado relações binárias entre Identidade e Diferença. Es central, por esta actitud universalista y por su lógica bi- naria, la noción de diferencia, entendida en sentido peyo- rativo. El sujeto equivale a la consciencia, a la racionalida- de universal y al comportamiento ético autodisciplinante, mientras que la alteridad es denida como su contraparte negativa y especular (BRAIDOTTI, 2013, p. 27). Atrelado à produção da diferença, sendo seu outro oposto, encontra-se o conceito de humano como sujeito racional, livre e de direitos. Esta noção produzida numa ordem de relações capitalistas reforça modelos identitá- rios que, por sua vez, instauram séries de violências siste- maticamente dirigidas para as expressões das diferenças. Fractal, Rev. Psicol., v. 32 – n. 3, p. 306-317, 2020 313 |