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Uploaded at 2021-10-18 05:00 This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Copyright © 2014 by Daniel Levitin Todos os direitos reservados. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original The Organized Mind: Thinking Straight in the Age of Information Overload Capa Rodrigo Maroja Preparação de originais Diogo Henriques Revisão João Sette Camara Tereza da Rocha Ana Kronemberger Coordenação de e-book Marcelo Xavier Conversão para e-book Abreu’s System Ltda. CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L647m Levitin, Daniel J. A mente organizada: Como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação [recurso eletrônico] / Daniel J. Levitin; tradução Roberto Grey. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. 522p. recurso digital Tradução de: The Organized Mind: Thinking Straight in the Age of Information Overload Formato: epub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-390-0700-4 (recurso eletrônico) 1. Organização. 2. Psicologia. 3. Disciplina mental. 4. Neurociência. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 15-24622 CDD: 153.1 CDU: 159.953 [2015] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA. Rua Cosme Velho, 103 22241-090 — Rio de Janeiro — RJ Telefone: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br SUMÁRIO CAPA FOLHA DE ROSTO CRÉDITOS DEDICATÓRIA INTRODUÇÃO PARTE UM 1. INFORMAÇÃO EM EXCESSO, DECISÕES EM EXCESSO 2. AS PRIMEIRAS COISAS PARA ENTENDER PARTE DOIS 3. ORGANIZANDO NOSSAS CASAS 4. ORGANIZANDO NOSSO MUNDO SOCIAL 5. ORGANIZANDO NOSSO TEMPO 6. ORGANIZANDO INFORMAÇÃO PARA AS DECISÕES MAIS DIFÍCEIS 7. ORGANIZANDO O MUNDO DOS NEGÓCIOS PARTE TRÊS 8. O QUE ENSINAR AOS NOSSOS FILHOS 9. TODO O RESTO APÊNDICE NOTAS AGRADECIMENTOS CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES Para minha mãe e meu pai, por tudo que me ensinaram INTRODUÇÃO Informação e organização meticulosa Nós, seres humanos, possuímos uma longa história no que diz respeito ao aprimoramento neuronal — maneiras de melhorar o cérebro que nos foram dadas pela evolução. Treinamos esses neurônios para que se tornem aliados mais eficientes e confiáveis, capazes de nos auxiliar na realização de nossas metas. As faculdades de direito, administração e medicina, assim como os conservatórios de música e programas de atletismo, buscam todos aproveitar o poder latente do cérebro humano para chegar a níveis cada vez mais altos de desempenho e dispor de uma vantagem num mundo cada vez mais competitivo. Pela simples força do engenho humano, criamos sistemas para remover a desordem do cérebro e nos ajudar no monitoramento de detalhes cuja recordação não é possível confiar apenas à memória. Todas essas e outras inovações são projetadas para aperfeiçoar nosso cérebro ou descarregar algumas de suas funções em fontes externas. Um dos maiores progressos em termos de aprimoramento neuronal ocorreu há apenas 5 mil anos, quando os seres humanos descobriram uma maneira revolucionária de aumentar a capacidade da memória e do sistema de indexação do cérebro. Faz muito tempo que a invenção da linguagem escrita é considerada um grande avanço. No entanto, chegou-se a pouca conclusão sobre a natureza exata dos primeiros escritos feitos pelos humanos — simples receitas, recibos de vendas, principalmente inventários de negócios. Foi por volta de 3000 a.C. que nossos antepassados começaram a trocar seus estilos de vida nômades por estilos urbanos, criando centros de comércio e cidades cada vez maiores. O incremento do comércio nessas cidades começou a pesar sobre a memória dos comerciantes individualmente, e por isso essa primeira escrita tornou-se parte importante do registro das transações comerciais. A poesia, as histórias, as táticas militares e as instruções para a construção de projetos complexos de arquitetura vieram depois. Antes da invenção da escrita, nossos ancestrais dependiam da memória, de esboços ou da música para codificar e preservar as informações importantes. A memória é falível, claro, mas não tanto por causa de limitações de armazenamento, e sim pelas limitações de recuperação. Alguns neurocientistas acreditam que quase toda experiência consciente é armazenada em alguma parte do cérebro; o problema é achá-la e trazê-la de volta.1 Às vezes a informação que chega é incompleta, distorcida ou enganosa. Histórias vívidas que abarcam um conjunto muito limitado e improvável de circunstâncias muitas vezes surgem de repente na nossa mente, atropelando informações estatísticas baseadas em grande quantidade de observações que tornariam muito mais precisas e adequadas nossas decisões sobre tratamentos médicos, investimentos ou sobre a confiabilidade das pessoas do nosso mundo social. O apreço pelas histórias é apenas um dos muitos artefatos, efeitos colaterais da maneira como funciona nosso cérebro. É bom compreender que os nossos modos de pensar e tomar decisões foram evoluindo durante as dezenas de milhares de anos em que os seres humanos viveram como coletores-caçadores. Nossos genes não se equipararam completamente às exigências da civilização moderna, mas felizmente o conhecimento humano, sim — hoje compreendemos melhor como superar as limitações da evolução. Esta é a história de como os seres humanos lidaram com a informação e a organização desde os primórdios da civilização. É também a história de como os membros mais bem-sucedidos da sociedade — de artistas a atletas, militares, homens de negócio e profissionais altamente credenciados — aprenderam a maximizar sua criatividade e eficiência organizando suas vidas de modo a gastar menos tempo com o mundano e mais tempo com coisas inspiradoras, agradáveis e gratificantes da vida. Durante os últimos vinte anos, os psicólogos cognitivos forneceram muitas provas de que a memória não é confiável. E, para piorar as coisas, depositamos demasiada confiança em muitas recordações falsas. Não se trata apenas de nos lembrarmos das coisas erroneamente (o que já seria bastante ruim), e sim de nem sequer sabermos que estamos nos recordando de modo errado e insistirmos obstinadamente em que determinadas imprecisões são de fato verdadeiras. Os primeiros seres humanos a descobrir a escrita, por volta de 5 mil anos atrás, estavam, no fundo, tentando aumentar a capacidade de seu hipocampo, uma parte do sistema de memória do cérebro. Eles conseguiram estender os limites da memória humana conservando algumas de suas recordações em tabletes de barro e nas paredes das cavernas, e, mais tarde, em papiros e pergaminhos. Em seguida, desenvolvemos outros mecanismos — como calendários, arquivos, computadores e smartphones — para nos ajudar a organizar e armazenar a informação que registramos. Quando nosso computador ou smartphone lentamente começa a não funcionar, podemos comprar mais memória. Memória que constitui tanto uma metáfora quanto uma realidade concreta. Estamos descarregando grande parte do processamento que em geral nossos neurônios fariam em um dispositivo externo que se torna, então, uma extensão de nosso próprio cérebro, um aperfeiçoador neuronal. Esses mecanismos externos da memória geralmente são de dois tipos: seguem o sistema organizacional do próprio cérebro ou o reinventam, às vezes superando suas limitações. Saber qual é qual pode incrementar a maneira como os utilizamos, melhorando assim nossa capacidade de lidar com a sobrecarga de informação. Depois que as memórias puderam ser exteriorizadas através da linguagem escrita, o cérebro e o sistema de atenção daquele que escrevia ficaram livres para focar outra coisa. Mas junto com essas primeiras palavras escritas surgiram imediatamente os problemas de armazenamento, indexação e acesso: onde armazenar a escrita de modo que ela (e a informação nela contida) não se perdesse? Se a mensagem escrita é ela mesma um lembrete, uma espécie de lista “do que fazer” da Idade da Pedra, quem escreveu precisa se lembrar de consultá-la e de onde a guardou. Imagine que o escrito contenha informação sobre plantas comestíveis. Talvez tenha sido escrito diante da cena mórbida da morte de um tio querido que comeu uma frutinha venenosa — no desejo de conservar informação sobre a aparência dessa planta e como distingui-la de uma planta comestível de aspecto semelhante. O problema da indexação é que há várias possibilidades de armazenar esse registro, com base nas necessidades da pessoa: ele pode ser armazenado com outros casos sobre plantas, ou com escritos sobre a história da família, ou com escritos sobre culinária, ou com escritos sobre como envenenar um inimigo. Aqui topamos com duas das propriedades mais atraentes do cérebro humano e do modo como é projetado: riqueza e acesso associativo. Riqueza tem a ver com a teoria segundo a qual grande parte das coisas que um dia você pensou ou experimentou ainda estão presentes, em algum lugar. Acesso associativo significa que seus pensamentos podem ser acessados de uma série de maneiras diferentes, através de associações semânticas ou perceptivas — as memórias podem ser deflagradas por palavras afins, por categorias de nomes, por um cheiro, uma velha canção ou fotografia, ou até por disparos neuronais aleatórios que as trazem à consciência. Ser capaz de acessar qualquer memória, a despeito de onde esteja armazenada, é o que os cientistas de computação chamam de acesso aleatório. Os DVDs e HDs funcionam assim; os videoteipes, não. Você pode pular para qualquer ponto num filme em DVD ou HD “apontando” para ele. Mas para chegar a determinado ponto num videoteipe, você precisa passar primeiro por todos os pontos anteriores (acesso sequencial). Nossa capacidade de acessar nossa memória a partir de múltiplos estímulos é especialmente forte. Os cientistas da computação chamam isso de memória relacional. Você já deve ter ouvido falar de banco de dados relacional — é isso que constitui, de fato, a memória humana. (Voltaremos a isso no Capítulo 3.) Ter memória relacional significa que se eu quero fazer você pensar num carro de bombeiros, posso induzir a memória de várias maneiras diferentes. Posso imitar o som da sirene ou lhe dar uma descrição verbal (“um grande caminhão com escadas laterais que reage caracteristicamente a determinado tipo de emergência”). Posso tentar deflagrar o conceito por um jogo de associação, pedindo que você nomeie o máximo de coisas vermelhas no decorrer de um minuto (a maioria das pessoas chega a “carro de bombeiros”), ou que nomeie o máximo de veículos de emergência de que é capaz. Todas essas e outras coisas são atributos do carro de bombeiros: sua cor vermelha, o fato de ser um veículo de emergência, sua sirene, seu tamanho e seu formato, o fato de homens e mulheres uniformizados geralmente andarem neles, e de ser apenas um de um pequeno subconjunto de veículos motorizados que carregam escadas. Se você acabou de pensar, ao ler o final da última frase, que há outros veículos que levam escadas (por exemplo, veículos de reparos das companhias telefônicas ou vans de instaladores de janelas, construtores de telhados e limpadores de chaminés), então chegou a uma importante questão: podemos categorizar os objetos de várias maneiras, aparentemente infinitas. E qualquer um desses estímulos possui seu próprio caminho até o nodo neuronal que representa carro de bombeiros no seu cérebro. O conceito de carro de bombeiros é representado na imagem a seguir por um círculo no centro — um nodo que corresponde a um aglomerado de neurônios no cérebro. O aglomerado de neurônios está conectado a outros aglomerados de neurônios que representam os diferentes aspectos ou propriedades de um carro de bombeiros. No desenho, outros conceitos mais intimamente associados a um carro de bombeiros, recuperados mais depressa da memória, são mostrados mais próximos do nodo do carro de bombeiros. (No cérebro, eles talvez não estejam de fato fisicamente próximos, mas as conexões neurais são mais fortes, o que permite a recuperação mais fácil.) Assim, o nodo que contém o fato de o carro de bombeiros ser da cor vermelha está mais próximo daquele que diz que ele às vezes tem um volante separado na parte traseira. Além de redes neurais no cérebro, que representam atributos de coisas, esses atributos estão também conectados associativamente a outras coisas. Um carro de bombeiros é vermelho, mas podemos pensar em muitas outras coisas que também são: cerejas, tomates, maçãs e partes da bandeira americana, por exemplo. Você já pensou por que motivo, se alguém lhe pedir que nomeie uma porção de coisas vermelhas, é capaz de responder tão depressa? Ao se concentrar no pensamento vermelho, representado aqui por um nodo neuronal, você está enviando uma ativação eletroquímica através da rede e dos ramos a tudo no seu cérebro também conectado a ele. A seguir, acrescentei informação adicional contida numa típica rede neural que começa com carro de bombeiros — nodos para outras coisas vermelhas, para outras coisas com sirene e assim por diante. Pensar sobre uma memória tende a ativar outras memórias. Isso tanto pode ser uma vantagem quanto uma desvantagem. Se você está tentando recuperar uma determinada memória, o dilúvio de ativações pode causar competição entre diferentes nodos, deixando-o com um engarrafamento de nodos neuronais que tentam chegar à consciência; no final, você acaba sem nada. Os gregos antigos buscavam aperfeiçoar a memória através de métodos de treinamento cerebral, como o palácio da memória ou método de loci. Ao mesmo tempo, eles e os egípcios tornaram-se peritos em exteriorizar informação, inventando a biblioteca moderna, um grande repositório de conhecimento exteriorizado. Não sabemos por que essas explosões simultâneas de atividade intelectual ocorreram nesse momento (talvez a experiência humana cotidiana tenha atingido certo grau de complexidade). Mas a necessidade humana de organizar nossas vidas, nosso ambiente e até mesmo nossos pensamentos continua forte. Essa necessidade não é simplesmente aprendida, ela é um imperativo biológico — os animais organizam seus ambientes por instinto. A maioria dos mamíferos é biologicamente programada para deixar seus dejetos afastados do lugar onde comem e dormem. Sabe-se que os cachorros muitas vezes juntam seus brinquedos e os guardam em cestas; as formigas carregam os integrantes da colônia mortos até seus cemitérios; certos pássaros e roedores constroem barreiras simetricamente organizadas em volta de seus ninhos para detectar intrusos com mais facilidade. Uma chave para entender a mente organizada é reconhecer que sozinha ela não organiza as coisas da maneira que você gostaria que fizesse. Ela é pré-configurada, e, apesar de ter enorme flexibilidade, foi construída sobre um sistema que evoluiu durante centenas de milhares de anos para lidar com tipos e volumes diferentes de informação de que hoje dispomos. Para ser mais específico: o cérebro não é organizado da maneira que você talvez arrumaria seu escritório em casa ou o armário de remédios do banheiro. Você não pode simplesmente botar as coisas onde quer. A maneira como a arquitetura do cérebro acabou evoluindo é aleatória e desconjuntada, incorporando múltiplos sistemas, cada qual tendo sua própria mente (por assim dizer). A evolução não projeta coisas e não constrói sistemas — ela se assenta em sistemas que historicamente forneceram vantagens para a sobrevivência (e se aparecer um jeito melhor, ela haverá de adotá-lo). Não existe nenhum superplanejador que construa sistemas de modo que funcionem harmoniosamente em conjunto. O cérebro é mais como uma grande casa antiga, com renovações improvisadas em cada andar, e menos como uma construção recente. Pensem nisto como uma analogia: você tem uma casa antiga e tudo está um pouco antiquado, mas você está satisfeito. Você acrescenta um ar-condicionado no quarto durante um verão especialmente quente. Alguns anos depois, quando está com mais dinheiro, resolve instalar um sistema de ar-condicionado central. Mas você não tira aquele ar-condicionado do quarto — por que tiraria? Pode vir a servir, e já está ali, instalado na parede. Então, alguns anos mais tarde, você tem um problema catastrófico de encanamento — os canos dentro das paredes começam a vazar. Os encanadores precisam abrir as paredes e colocar canos novos, mas seu sistema central de arcondicionado agora atrapalha, porque seria ideal que os novos canos passassem por onde ele está. Assim, os operários passam com os canos pelo sótão, pelo caminho mais longo. Isso funciona bem até um inverno especialmente frio, em que o seu sótão sem isolamento térmico faz os canos congelarem. Esses canos não teriam congelado se você os tivesse instalado dentro das paredes, o que não pôde fazer em razão do arcondicionado central. Se você tivesse planejado tudo isso desde o início, teria feito tudo de modo diferente, mas não planejou — foi acrescentando coisas, uma de cada vez, à medida que precisou. A evolução construiu nosso cérebro praticamente do mesmo modo. É claro que a evolução não tem desejo, nenhum plano. A evolução não decidiu contemplá-lo com uma memória para você guardar as coisas. O seu sistema de memória de locais [place memory] foi surgindo gradativamente, através dos processos de descendência modificada e seleção natural, evoluindo separadamente de sua memória de fatos e figuras. Os dois sistemas talvez venham a trabalhar juntos por meio de processos evolucionários por vir, mas não necessariamente farão isso, e, em alguns casos, podem entrar em conflito. Talvez valha a pena aprender como o cérebro organiza a informação de modo que possamos usar o que temos, em vez de lutar contra isso. Ele foi feito como uma miscelânea de sistemas diferentes, cada um para resolver algum problema adaptativo especial. Às vezes eles trabalham em conjunto, às vezes entram em conflito, e às vezes nem sequer se falam. Duas das principais maneiras como podemos controlar e melhorar esses processos é prestar especial atenção aos modos como introduzimos informação na nossa memória — codificação — e como a extraímos — recuperação. Isso será explicado nos Capítulos 2 e 3. A necessidade de assumir o controle de nossos sistemas de atenção e memória nunca foi tão imperativa. Nossos cérebros estão mais ocupados que nunca. Somos bombardeados por fatos, factoides, besteiras e boatos, tudo se apresentando como informação. Tentar descobrir o que você precisa saber e o que pode ignorar é exaustivo, e ao mesmo tempo é o que mais fazemos. Assim, encontrar tempo para agendar nossas diversas atividades tornou-se um tremendo desafio. Há trinta anos, os agentes de viagens faziam nossas reservas de avião e de trem, os vendedores nos ajudavam a encontrar o que precisávamos nas lojas e datilógrafas ou secretárias profissionais ajudavam as pessoas ocupadas com a correspondência. Hoje nós mesmos fazemos a maior parte dessas coisas. A era da informação colocou grande parte do trabalho, que antes teria sido feito pelos chamados especialistas em informação, sobre nós. Estamos fazendo o trabalho de dez pessoas diferentes e ao mesmo tempo lidando com nossas vidas, nossos filhos, pais, amigos, carreiras, hobbies e programas favoritos de TV. Não é de espantar que às vezes uma recordação se confunda com outra, levando-nos a aparecer no lugar certo, mas no dia errado, ou a esquecer algo simples como onde deixamos os óculos ou o controle remoto. Todo dia milhões de pessoas perdem chaves, carteiras de motorista, carteiras ou pedaços de papel com telefones importantes. E não perdemos apenas objetos físicos, mas também esquecemos coisas de que devíamos nos lembrar, coisas importantes como a senha do e-mail ou o login de algum site, ou a senha dos cartões de crédito — o equivalente cognitivo de perder as chaves. Não são coisas triviais; não é como se as pessoas estivessem perdendo coisas relativamente fáceis de serem substituídas, como barras de sabão ou frutas da fruteira. Não tendemos a ter falhas de memória generalizadas; temos falhas de memória temporárias, específicas quanto a uma ou duas coisas. Durante aqueles minutos frenéticos em que procura as chaves que perdeu, você (provavelmente) ainda se lembra de seu nome e endereço, onde fica o aparelho de televisão e o que comeu no café da manhã — apenas uma única memória foi irritantemente perdida. Há provas de que costumamos perder mais certas coisas do que outras: tendemos a perder as chaves do carro, mas não o carro; perdemos a carteira ou o celular com mais frequência que o grampeador na nossa mesa, ou as colheres de sopa na cozinha; não conseguimos lembrar onde deixamos os casacos e suéteres com mais frequência do que as calças. Compreender como os sistemas de atenção e de memória do cérebro interagem pode nos levar a um bom pedaço do caminho para minimizar os lapsos de memória. Esses simples fatos sobre o tipo de coisas que tendemos ou não a perder são capazes de nos dar bastante informação sobre como o cérebro funciona, bem como sobre a ocorrência de falhas. Este livro é sobre essas duas ideias, e espero que seja um guia útil para prevenir essas perdas. Há algo que todos podem fazer para minimizar as chances de perder as coisas, e recuperá-las depressa quando foram perdidas. Podemos seguir melhor as instruções e os planos quanto mais os compreendemos (como diria qualquer psicólogo cognitivo); assim, este livro debate vários aspectos diferentes da mente organizada. Analisaremos com atenção a história dos sistemas organizativos que os seres humanos experimentaram no decorrer dos séculos de modo a ver quais deram certo e quais fracassaram, e por quê. Explicarei primeiro por que perdemos as coisas e o que fazem as pessoas inteligentes e organizadas para não perdê-las. Parte da questão diz respeito ao nosso aprendizado quando crianças, e a boa notícia é que certos aspectos do pensamento infantil podem ser revisitados para nos ajudar quando adultos. Talvez o cerne dessa história seja a melhor organização de nosso tempo, não só para podermos ser mais eficientes, mas para termos mais tempo para a diversão, para o lúdico, para as relações significativas e para a criatividade. Falarei também sobre as organizações empresariais, que não são chamadas de organizações à toa. As empresas são como cérebros expandidos, com os trabalhadores individuais funcionando um pouco como neurônios. Elas tendem a ser um coletivo de indivíduos unidos em torno de um conjunto de objetivos, em que cada trabalhador desempenha uma função especializada. As empresas geralmente se saem melhor que os indivíduos nas tarefas cotidianas em razão do processo de distribuição. Numa grande empresa, existe um departamento para pagar contas em dia (contas a pagar) e outro para monitorar as chaves (planta física ou segurança). Embora os trabalhadores individuais sejam falíveis, os sistemas e as redundâncias geralmente estão ali, ou deveriam estar, para assegurar que a distração momentânea de alguém, ou a falta de organização, não faça tudo parar de repente. É claro que as empresas nem sempre são perfeitamente organizadas e, de vez em quando, por meio dos mesmos bloqueios cognitivos que nos fazem perder as chaves do carro, também perdem algo — lucros, clientes, posições competitivas no mercado. No meu trabalho paralelo de consultor administrativo, já testemunhei como enormes ineficiência e falta de supervisão geral causam vários tipos de problemas. Aprendi muito com a oportunidade de ver por dentro tanto empresas prósperas quanto empresas em crise. Uma mente organizada nos leva sem esforço à boa tomada de decisão. Quando estudante universitário, tive dois professores brilhantes, Amos Tversky e Lee Ross, ambos pioneiros na ciência de juízos sociais e processos decisórios. Eles despertaram em mim um fascínio pela maneira como avaliamos e interagimos com os outros no mundo social, os vários preconceitos e informações distorcidas que trazemos para essas relações, e como superá-los. Amos, com seu colega Daniel Kahneman (que ganhou o prêmio Nobel alguns anos após a morte de Amos), descobriu vários erros sistemáticos no modo como o cérebro humano avalia a evidência e processa a informação. Ensino isso aos estudantes universitários há vinte anos, e meus alunos me ajudaram a descobrir maneiras de explicar esses erros de modo que todos possamos melhorar facilmente nossas tomadas de decisão. Os riscos são altíssimos, sobretudo na tomada de decisão médica, em que a decisão errada tem consequências imediatas muito sérias. É bem sabido agora que a maioria dos médicos não aprende essas regras simples como parte de sua instrução, e não compreende o raciocínio estatístico. O resultado pode ser um aconselhamento confuso, que talvez leve você a tomar remédios e a se submeter a cirurgias com muito poucas chances estatísticas de lhe trazer uma melhora, e uma chance estatística relativamente alta de fazê-lo piorar. (O Capítulo 6 é dedicado a este assunto.) Todos nos defrontamos com uma quantidade inédita de informação que precisamos lembrar, e pequenos objetos que precisamos monitorar. Nesta época de iPods e pen drives, em que seu smartphone pode gravar vídeos, navegar por 200 milhões de sites e lhe dizer quantas calorias tem um biscoito, a maioria de nós ainda tenta monitorar as coisas usando sistemas criados numa época pré-computadorizada. Há definitivamente lugar para aperfeiçoamento. A metáfora dominante para o computador se baseia numa estratégia de organização típica dos anos 1950: uma mesa com pastas em cima, e arquivos dentro delas. Mesmo a palavra computador está hoje obsoleta, já que a maioria das pessoas não usa seus computadores para computar nada — melhor, ela se tornou como aquela grande gaveta desorganizada na cozinha, que na minha família chamamos gaveta da bagunça. Estive na casa de um amigo outro dia, e vejam só o que encontrei na gaveta da bagunça dele (bastou perguntar: “Você tem uma gaveta onde joga tudo que não sabe onde guardar?”): pilhas elásticos espetos para kebab barbante araminhos de fechar embalagens fotos 37 centavos em moedas um estojo vazio de DVD um DVD sem estojo (infelizmente não era o do estojo vazio) coberturas plásticas na cor laranja para cobrir o detector de fumaça caso ele algum dia resolva pintar a cozinha, porque os vapores da tinta acionam o detector fósforos três parafusos para madeira de vários tamanhos, um com filetes listrados um garfo plástico uma chave inglesa especial que veio junto com o triturador de lixo; ele não sabe direito para que serve dois canhotos de ingresso para um show da Dave Matthews Band no verão passado duas chaves que estão por ali pelo menos há dez anos, e ninguém em casa sabe de onde são (mas têm medo de jogar fora) duas canetas, nenhuma das quais escreve meia dúzia de outras coisas que ele não faz ideia de para que servem, mas tem medo de jogar fora Nossos computadores são exatamente assim, só que mil vezes mais desorganizados. Temos arquivos que não sabemos o que contêm, outros que surgiram misteriosamente por acidente quando lemos um e-mail e várias versões de um mesmo documento; muitas vezes é difícil dizer qual é a mais atual. Nossa “máquina de computação” se tornou uma enorme, vergonhosa gaveta de cozinha desorganizada, cheia de arquivos eletrônicos, alguns de origem ou função indeterminados. Minha assistente me deixou olhar seu computador, e um inventário parcial revelou os seguintes conteúdos típicos — assim descobri — do que muitas pessoas têm nos seus computadores: fotos vídeos música fundos de tela de gatos usando chapéus de festa, ou porcos sorridentes com bocas humanas feitas no Photoshop documentos de impostos documentos de viagens correspondência registros de contas jogos agendas artigos a ler vários formulários relativos ao trabalho: pedido de folga, relatório trimestral, atestado de falta por doença, pedido de dedução na folha de pagamento do fundo de aposentadoria uma cópia arquivada deste livro (caso eu perdesse a minha) dezenas de listas — de restaurantes da vizinhança, hotéis aprovados pela universidade, endereços de escritórios e números de telefone de membros do departamento, telefones de emergência, procedimentos de segurança no caso de várias calamidades, protocolo para o descarte de equipamento obsoleto e assim por diante atualizações de software versões antigas de softwares que não funcionam mais dezenas de arquivos de fontes de línguas estrangeiras e de sua disposição no teclado, caso ela algum dia precise digitar em romeno, tcheco, japonês ou hebraico antigo ou moderno pequenos lembretes eletrônicos de onde estão arquivos importantes, ou de como fazer determinadas coisas (como criar um novo lembrete, deletar um lembrete ou mudar a cor de um lembrete) É de espantar que não percamos mais coisas. Naturalmente, alguns de nós são mais organizados que outros. Das milhares de maneiras como os indivíduos podem diferir entre si, podemos estabelecer um modelo matemático que explica grande parte de variação, organizando as diferenças humanas em cinco categorias: extroversão amabilidade neuroticismo abertura a novas experiências conscienciosidade Dos cinco, o traço da conscienciosidade em ser organizado é o mais altamente associado com a conscienciosidade propriamente dita.2 A conscienciosidade abarca diligência, autocontrole, aderência à realidade e desejo de ordem. E é o melhor arauto de muitos resultados humanos importantes,3 entre os quais mortalidade, longevidade,4 sucesso educacional e vários outros critérios relativos ao sucesso profissional.5,6 A conscienciosidade é associada a uma melhor recuperação de cirurgias e transplantes.7 Na infância, é associada a desfechos positivos décadas mais tarde.8 Em conjunto, as evidências sugerem que à medida que as sociedades se tornam mais ocidentalizadas e complexas, a conscienciosidade torna-se cada vez mais importante.9 A neurociência cognitiva da memória e da atenção — nossa melhor compreensão do cérebro, sua evolução e suas limitações — é capaz de nos ajudar a lidar com um mundo em que cada vez mais pessoas sentem que estão correndo depressa só para permanecer no mesmo lugar. O americano médio sofre de privação de sono, é estressado demais e não tem tempo para fazer o que quer. Acho que podemos fazer melhor do que isso. Alguns estão conseguindo, e tive a oportunidade de conversar com eles. Assistentes pessoais dos quinhentos maiores CEOs americanos, bem como de outras pessoas altamente bem-sucedidas, mantêm seus patrões trabalhando em capacidade máxima enquanto ainda arranjam tempo para que possam se divertir e relaxar. Nem eles nem seus patrões ficam atolados pela sobrecarga de informação, porque se beneficiam da tecnologia da organização, que contam com algumas coisas novas e outras bem antigas. Alguns de seus sistemas parecerão familiares; alguns, não; e outros são ainda incrivelmente sutis e cheios de nuances; contudo, todos eles podem fazer uma profunda diferença. Não existe um sistema único que funcione para todo mundo — somos todos singulares. Mas, nos capítulos seguintes, serão apresentados princípios gerais que qualquer um pode aplicar a seu modo para recuperar a sensação de ordem e as horas perdidas tentando vencer a mente desorganizada. PARTE UM 1 INFORMAÇÃO EM EXCESSO, DECISÕES EM EXCESSO A história íntima da sobrecarga cognitiva Uma das melhores alunas que tive a sorte de conhecer nasceu na Romênia comunista, sob o regime brutal e repressor de Nicolae Ceaușescu. Embora o regime tivesse caído quando estava com onze anos, ela ainda lembrava as longas filas para comprar comida, a escassez e a miséria da economia, que persistiram por bastante tempo após a derrocada do regime. Ioana era curiosa e inteligente e, apesar de ainda jovem, tinha todo o ar da verdadeira estudiosa: quando topava com uma nova ideia ou um problema científico, estudava-os sob todos os ângulos e consultava toda a literatura a que podia ter acesso. Conheci-a durante seu primeiro semestre na universidade, recém-chegada à América do Norte, quando frequentava meu curso introdutório sobre a psicologia do pensamento e da argumentação. Embora a turma tivesse setecentos alunos, ela logo se destacou pelas respostas criteriosas às perguntas levantadas em aula, por me crivar de questionamentos durante o expediente na minha sala e por viver propondo novos experimentos. Encontrei com ela um dia na livraria da faculdade, parada no corredor, com as mãos cheias de lápis e canetas. Apoiava-se de maneira hesitante numa prateleira, obviamente perturbada. “Tudo bem?” perguntei. “Viver nos Estados Unidos pode ser realmente terrível” disse Ioana. “Comparado à Romênia soviética?!” “Tudo é tão complicado. Fui procurar um apartamento de estudante. Para aluguel ou concessão? Mobiliado ou não mobiliado? Último andar ou térreo? Acarpetado ou com piso de madeira...” “Conseguiu decidir?” “Sim. Acabei decidindo. Mas é impossível saber qual a melhor opção. Agora... — sua voz foi morrendo.” “Há algum problema com o apartamento?” “Não. O apartamento é ótimo. Mas hoje é o quarto dia que venho à livraria. Olha só! Toda uma fileira de canetas. Na Romênia tínhamos três tipos. E muitas vezes havia escassez: nenhuma caneta. Nos Estados Unidos existem mais de cinquenta tipos diferentes. De qual delas eu preciso para a aula de biologia? E para a de poesia? Será que quero uma de ponta de feltro, de tinta, gel, cartucho, apagável? Esferográfica, ponta fina, rollerball? Estou há uma hora aqui lendo etiquetas.” Todo dia enfrentamos dezenas de decisões, a maioria das quais julgaríamos banais ou insignificantes — calçar o pé esquerdo ou o pé direito da meia primeiro, ir de ônibus ou de metrô para o trabalho, comer o quê, onde fazer compras. Temos um gostinho dessa desorientação de Ioana quando viajamos, não só para outros países, mas até mesmo para outros estados. As lojas são diferentes, os artigos também. A maioria de nós adota a estratégia de vida satisficing [ou seja, aceita aquilo que está disponível como uma opção satisfatória], termo cunhado por Herbert Simon, vencedor do Nobel e um dos fundadores do campo da teoria organizacional e de processamento de informação.1 Simon queria uma palavra que descrevesse não a melhor opção possível, e sim uma que chegasse a ser satisfatória. Quando se trata de coisas que não são de importância crucial, optamos por algo que dê para o gasto. Não sabemos se nossa tinturaria é de fato a melhor — apenas que ela dá para o gasto. E é isso que nos ajuda a ir vivendo. Não temos tempo de experimentar todas as tinturarias num raio de 24 quarteirões de nossa casa. Será que o Dean & DeLuca tem mesmo os melhores pratos gourmet para viagem? Não importa — é bom o bastante. Satisficing é uma das bases do comportamento produtivo do homem; é o que prevalece quando não perdemos tempo com decisões pouco importantes, ou, para ser mais exato, quando não perdemos tempo tentando obter um máximo que não irá fazer grande diferença quanto ao nosso bem-estar ou à nossa satisfação. Todos nós adotamos o satisficing ao limparmos a casa. Se nos ajoelhássemos no chão todo dia com uma escova de dentes para limpar a sujeira, se limpássemos as janelas e paredes diariamente, a casa ficaria impecável. Mas são poucos os que se dariam a tanto trabalho, até mesmo numa base semanal (e, nesse caso, é provável que os rotulassem de obsessivos-compulsivos). A maioria de nós limpa a casa até que ela fique suficientemente limpa, até atingir uma espécie de equilíbrio entre o trabalho e o benefício. É este custobenefício que está no âmago da noção de satisfacing (Simon era também um respeitado economista). Recentes pesquisas de psicologia social demonstram que pessoas felizes não são as que possuem mais coisas; antes, são pessoas satisfeitas com o que já possuem. Pessoas felizes adotam o satisficing o tempo todo, ainda que sem saber. Warren Buffett é uma dessas pessoas que levam ao extremo o satisficing — um dos homens mais ricos do mundo, ele mora em Omaha, a um quarteirão da rodovia, na mesma casa modesta que comprou há cinquenta anos.2 Certa vez, numa entrevista no rádio, ele declarou ter comprado alguns litros de leite e um pacote de biscoitos Oreo para o café da manhã durante a semana que passou em Nova York. Mas Buffett não adota o critério da satisfação relativa, em suas estratégias de investimento; a satisfação relativa é uma boa ferramenta para não se perder tempo com coisas que não têm prioridade máxima. Para os empreendimentos de alta prioridade, a velha busca por excelência ainda é a estratégia certa. Você quer que seu cirurgião, o mecânico do avião ou o diretor de um filme de orçamento de 100 milhões de dólares façam um serviço bom o suficiente ou o melhor de que são capazes? Às vezes queremos algo mais do que Oreo e um copo de leite. Parte do desânimo de minha aluna romena poderia ser atribuída ao choque cultural — à perda do que lhe é familiar e à imersão num ambiente estranho. Mas ela não é um caso único. A geração passada testemunhou uma explosão de opções apresentadas aos consumidores. Em 1976, um supermercado médio tinha 9 mil produtos distintos; hoje esse número inflou para 40 mil, embora uma pessoa comum satisfaça de 80% a 85% de suas necessidades num universo de apenas 150 artigos.3 Isso significa que precisamos ignorar 39 850 artigos em estoque.4 E estamos falando apenas de supermercados — estima-se que exista hoje mais de 1 milhão de produtos nos Estados Unidos (cálculo baseado nas unidades de manutenção de estoque, aqueles pequenos códigos de barras nos produtos que compramos).5 Todo esse processo de ignorar e optar tem um custo. Os neurocientistas descobriram que a falta de produtividade e de motivação pode ser resultado da sobrecarga de decisões. Embora a maioria de nós não tenha dificuldade em relativizar a importância das decisões, o cérebro não faz isso automaticamente. Ioana sabia que era mais importante acompanhar os estudos do que escolher a caneta que compraria, mas a simples situação de lidar com tantas decisões triviais na vida cotidiana criou uma fadiga neuronal que não deixou nenhuma energia de sobra para as decisões importantes. Pesquisas recentes mostraram que pessoas obrigadas a tomar uma série de decisões exatamente deste tipo — por exemplo, escrever com uma caneta de ponta de feltro ou esferográfica — demonstram uma piora no controle dos impulsos e um decréscimo do bom senso em relação a decisões subsequentes.6 É como se nosso cérebro fosse configurado para tomar um determinado número de decisões por dia, e, chegando a este limite, não pudéssemos decidir qualquer outra coisa, a despeito da sua importância. Uma das mais úteis e recentes descobertas da neurociência pode ser assim resumida: no nosso cérebro, a rede de tomada de decisões não determina prioridades. Hoje nos defrontamos com uma quantidade inacreditável de informações, e cada um de nós gera mais informação do que nunca na história da humanidade. O ex-cientista da Boeing e articulista do New York Times Dennis Overbye comenta que esse fluxo de informação contém “cada vez mais informações sobre nossas vidas — onde fazemos compras e o que compramos, e, na verdade, onde nos encontramos neste exato instante —, a economia, os genomas de incontáveis organismos que nem sequer conseguimos nomear, galáxias cheias de incontáveis estrelas, engarrafamentos em Cingapura e o tempo em Marte”. E essas informações “jorram cada vez mais depressa em computadores cada vez mais potentes, chegando até as pontas dos dedos de todas as pessoas, que hoje dispõem de máquinas com poder de processamento maior do que o controle da Missão Apolo”.7 Os cientistas da informação quantificaram tudo isso: em 2011, os americanos receberam cotidianamente cinco vezes mais informação do que em 1986 — o equivalente a 175 jornais.8 Durante nosso tempo ocioso, excluindo o trabalho, cada um de nós processa 34 gigabytes ou 100 mil palavras por dia.9 As 21.274 estações de TV do mundo produzem 85 mil horas de programação original diariamente, enquanto assistimos a uma média de cinco horas de televisão por dia, o equivalente a 20 gigabytes de imagens de áudio-vídeo.10 Isso sem contar o YouTube, que faz um upload de 6 mil horas de vídeo a cada hora.11 E os jogos no computador? Eles consomem mais bytes do que todo o resto da mídia junto, inclusive DVDs, TV, livros, revistas e a internet.12 Só a tentativa de manter organizados os nossos arquivos eletrônicos e de mídia pode ser agoniante. Cada um de nós possui o equivalente a mais de meio milhão de livros armazenado em nossos computadores, sem falar em toda a informação guardada em nossos celulares ou na fita magnética no verso de nossos cartões de crédito. Criamos um mundo que possui 300 exabytes (300 000 000 000 000 000 000 itens) de informação produzida pelo homem. Se cada um desses itens de informação fosse escrito em fichas 3 × 5, postas lado a lado, apenas a parte que cabe a uma pessoa — a sua parte dessa informação — cobriria cada centímetro quadrado de um país como a Suíça. Nossos cérebros possuem, sim, a capacidade de processar a informação que recebemos, mas a um custo: podemos ter dificuldade em separar o trivial do importante, e processar toda essa informação cansa. Os neurônios são células vivas que possuem um metabolismo; precisam de oxigênio e glicose para sobreviver, e, quando muito exigidos, o resultado é que sentimos cansaço. Cada atualização de status que você lê no Facebook, cada tuíte ou mensagem de texto que recebe de um amigo compete no seu cérebro por recursos para lidar com coisas importantes, como resolver se vai investir sua poupança em ações ou títulos, descobrir onde deixou o passaporte ou qual a melhor maneira de se reconciliar com um grande amigo com o qual você acabou de ter um desentendimento. A capacidade de processamento da mente consciente foi calculada em 120 bits por segundo.13 Essa largura de banda, ou janela, é o limite de velocidade para o tráfego de informação ao qual conseguimos prestar atenção conscientemente em um determinado momento. Embora muita coisa se passe sob o limiar da consciência e possua um impacto na maneira como nos sentimos e no desenrolar de nossas vidas, para que algo seja codificado como parte da sua experiência é preciso que você tenha prestado atenção consciente nele. O que significa essa restrição na largura de banda — esse limite de velocidade da informação — em termos de nossa interação com os outros? Para compreendermos alguém que esteja falando conosco, precisamos processar 60 bits de informação por segundo. Sendo o limite de processamento 120 bits por segundo, isso significa que não dá para compreender direito duas pessoas falando conosco ao mesmo tempo. Estamos cercados neste planeta por bilhões de outros seres humanos, mas só podemos, no máximo, compreender dois de cada vez! Não é de admirar que o mundo esteja tão cheio de incompreensão.14 Com essas restrições atencionais, fica claro por que muita gente se sente esmagada pelas iniciativas exigidas por alguns dos aspectos mais básicos da vida. Em parte, isso acontece porque nosso cérebro se desenvolveu para nos auxiliar a viver na fase coletora-caçadora da vida humana, época em que talvez não encontrássemos mais de mil indivíduos durante toda a vida. Ao caminhar pelo centro de Manhattan, em meia hora você passará por essa mesma quantidade de gente. A atenção é o recurso mental mais importante para qualquer organismo. É ela que determina os aspectos do ambiente com os quais lidamos, sendo que na maior parte do tempo vários processos automáticos e subconscientes escolhem de maneira criteriosa o que vai passar para a nossa percepção consciente. Para que isso aconteça, milhões de neurônios vivem monitorando o ambiente a fim de selecionar em que devemos focar. Esses neurônios constituem coletivamente o filtro de atenção. Eles trabalham em grande parte nos bastidores, fora da nossa percepção consciente. É por isso que a maioria dos detritos perceptivos na vida cotidiana não é registrada; é por isso que você não se lembra de grande parte da paisagem que passou voando depois de horas dirigindo pela estrada. Seu sistema de atenção o “protege” de registrá-la porque ela não é tida como importante. Esse filtro inconsciente obedece a determinados critérios sobre aquilo que deixará chegar à sua percepção consciente. O filtro de atenção é uma das maiores conquistas evolutivas. Nos seres não humanos, ele garante que não sejamos distraídos por coisas irrelevantes. Os esquilos se interessam por nozes e predadores, e praticamente por mais nada. Os cães, cujo olfato é um milhão de vezes mais apurado que o nosso, usam o olfato mais do que a audição para colher informações sobre o mundo, e seu filtro de atenção evoluiu para que assim fosse. Se você já tentou chamar seu cachorro enquanto ele fareja algo que despertou seu interesse, sabe que é muito difícil chamar sua atenção através do som — o cheiro triunfa sobre o som no cérebro canino. Ninguém elaborou ainda todas as hierarquias e os fatores prevalentes no filtro de atenção humano, mas descobrimos muita coisa a respeito deles. Quando deixaram as copas das árvores em busca de novas fontes de alimentos, nossos ancestrais proto-humanos inauguraram um vasto campo de novas possibilidades alimentares e se expuseram ao mesmo tempo a um vasto campo de novos predadores. Permanecer alerta e vigilante a ruídos e estímulos visuais ameaçadores garantiu a sobrevivência deles; isso significou a permissão para que uma quantidade crescente de informação passasse pelo filtro de atenção. Os seres humanos são, segundo a maioria dos critérios biológicos, a espécie mais bem-sucedida que o planeta já viu. Conseguimos sobreviver em quase todos os climas até hoje presentes, e a taxa de nossa expansão populacional supera a de qualquer outro organismo conhecido. Há dezenas de milhares de anos, os seres humanos, acrescidos de seus animais de estimação e animais domesticados, constituíam 0,1% da biomassa vertebrada que habitava a Terra; hoje, constituímos 98%.15 Nosso êxito devese em grande parte à nossa capacidade cognitiva, a habilidade que nossos cérebros possuem para lidar com a informação de modo flexível. Mas esses cérebros evoluíram num mundo muito mais simples, do qual recebiam muito menos informação. Pessoas bem-sucedidas — ou quem é capaz de bancar esse custo — empregam outras pessoas cuja tarefa é estreitar o filtro de atenção. Ou seja, diretores de empresas, líderes políticos, astros de cinema mimados e outros cujo tempo e atenção são especialmente valiosos mantêm em torno de si um corpo de funcionários que constituem de fato extensões de seus próprios cérebros, replicando e refinando as funções do filtro de atenção no córtex pré-frontal. Essas pessoas altamente bem-sucedidas — vamos chamá-las de PABS — são isoladas das muitas distrações cotidianas da vida por gente paga para isso, o que lhes permite dedicar toda a sua atenção àquilo que têm imediatamente à sua frente. Elas parecem viver completamente no momento. Dispõem de uma equipe que cuida da correspondência, da agenda de compromissos, que muda esses compromissos quando surge algum mais importante, ajudando-as a planejar os dias em função da máxima eficiência (inclusive cochilos!). Suas contas são pagas em dia, o carro aparece quando é preciso, elas recebem avisos de projetos pendentes, e seus assistentes mandam presentes adequados a seus entes queridos em aniversários e outras datas importantes. Qual a recompensa máxima quando tudo isso funciona? Um foco tipo zen. No decorrer de meu trabalho de pesquisador científico, tive a oportunidade de conhecer governadores, parlamentares, celebridades da música e os CEOs das quinhentas maiores empresas americanas segundo a revista Fortune. Suas habilidades e realizações variam, mas, como grupo, eles possuem algo notavelmente constante. Fiquei impressionado ao ver como se sentem liberados por não terem de se preocupar em estar em outro lugar, ou falando com outra pessoa. Eles não têm pressa, olham nos olhos da outra pessoa, relaxam e ficam realmente presentes diante de qualquer interlocutor. Não precisam se preocupar em saber se deviam estar falando com alguém mais importante naquele instante porque sua equipe — seus filtros de atenção externos — já resolveu que aquela é de fato a melhor maneira de aproveitarem seu tempo. E há uma grande infraestrutura pronta para garantir que eles chegarão na hora do próximo compromisso, o que lhes permite também se livrar dessa preocupação aborrecida. O resto de nós tende a deixar que a mente corra solta durante as reuniões e percorra inúmeros pensamentos sobre o passado e o futuro, destruindo qualquer aspiração de tranquilidade e nos impedindo de estar presentes no aqui e agora. Desliguei o fogão? O que farei na hora do almoço? A que horas preciso sair daqui para poder estar onde terei de estar em seguida? Como seria se você pudesse contar com outras pessoas para cuidar dessas coisas, podendo afunilar seu filtro de atenção para focar apenas o que estivesse bem à sua frente, acontecendo exatamente no momento? Conheci Jimmy Carter durante a campanha presidencial, e ele conversava como se tivesse todo o tempo do mundo. Em certo momento, surgiu um assistente para levá-lo à outra pessoa com quem ele precisava falar. Livre da necessidade de ter de concluir o encontro, ou de qualquer outra preocupação corriqueira, o presidente Carter podia realmente se livrar daquelas vozes íntimas preocupantes e estar ali. Um amigo meu que é músico profissional e vive enchendo os estádios de fãs, e também tem uma falange de assistentes, descreve esse estado como estar “felizmente perdido”. Ele não tem de consultar seu calendário com mais de um dia de antecedência, deixando lugar para a surpresa e as possibilidades de cada dia. Se organizarmos nossas vidas e cabeça segundo a nova neurociência da memória e da atenção, seremos todos capazes de lidar com o mundo de modo a ter a mesma liberdade de que essas PABS desfrutam. Como podemos realmente utilizar essa ciência na vida cotidiana? De início, compreendendo a arquitetura de nosso sistema de atenção. Para organizar nossa cabeça, é preciso saber como ela mesma se organizou. Dois dos princípios mais decisivos utilizados pelo filtro de atenção são os da alteração e da importância. O cérebro é um detector extraordinário de mudanças: se você está dirigindo e sente que a estrada de repente fica cheia de saliências, seu cérebro nota essa mudança de imediato e avisa seu sistema de atenção para focar nela. Como isso acontece? Os circuitos neuronais estão notando a lisura da estrada, o ruído, a sensação que ela provoca nas suas nádegas, nas suas costas, nos seus pés e em outras partes do corpo em contato com o carro, e como o campo visual que você tem é liso e contínuo. Depois de alguns minutos dos mesmos ruídos, sensação e aparência generalizada, seu cérebro consciente relaxa e permite que o filtro de atenção assuma. Isto o deixa livre para fazer outras coisas, como entabular uma conversa, ouvir rádio, ou ambos. Mas diante da menor alteração — um pneu vazio, saliências na estrada — seu sistema de atenção empurra a nova informação até a sua consciência, para que você possa focar a mudança e tomar a providência adequada. Seus olhos podem esquadrinhar a estrada e perceber ranhuras de drenagem no asfalto responsáveis pela turbulência no avanço do carro. Depois de encontrar uma explicação satisfatória, você relaxa de novo, empurrando esse processo sensorial decisório de volta aos estratos inferiores da consciência. Se a estrada parece visualmente lisa e você não consegue entender a razão dos solavancos, talvez resolva parar para examinar os pneus. O detector de mudanças do cérebro funciona sem parar, saiba você ou não. Se um amigo íntimo ou um parente telefona, talvez você detecte alguma diferença na sua voz e pergunte se ele está com coriza ou gripado. Quando o cérebro detecta a mudança, essa informação é enviada à consciência, mas o cérebro não envia explicitamente nenhuma mensagem quando não há mudança. Se sua amiga telefona e sua voz parece normal, você não pensa “ah, a voz dela é a mesma de sempre”. Mais uma vez é o filtro de atenção cumprindo sua tarefa de detectar a mudança, e não a constância. O segundo princípio, da importância, também é capaz de deixar passar informação. Aqui, a importância não é algo apenas objetivamente importante, mas algo que tem uma importância pessoal. Se você está dirigindo, o outdoor da sua banda preferida pode chamar sua atenção, enquanto outros passarão despercebidos. Se você está num ambiente lotado, por exemplo, numa festa, determinadas palavras a que dá muita importância podem chamar subitamente sua atenção, mesmo se faladas do outro lado do lugar. Se alguém diz “fogo” ou “sexo” ou o seu nome, você pode passar a seguir uma conversa distante, sem nenhuma consciência do que falavam aquelas pessoas antes de prenderem sua atenção. O filtro de atenção, portanto, é bastante sofisticado. É capaz de seguir várias conversas diferentes, como também seu conteúdo semântico, permitindo a passagem apenas daquelas que considera interessantes. Graças ao filtro de atenção, acabamos vivenciando boa parte do mundo no piloto automático, sem registrar a complexidade, as nuances e muitas vezes a beleza do que está diante de nossos olhos. Um grande número de falhas de atenção ocorre por não estarmos utilizando esses dois princípios em proveito próprio. Uma questão crucial que vale a pena repetir: a atenção é um recurso de capacidade limitada — há limites precisos para a quantidade de coisas a que podemos prestar atenção ao mesmo tempo. Podemos perceber isso em atividades corriqueiras. Se você está dirigindo, geralmente consegue ouvir rádio ou conversar com outra pessoa no carro. Mas se está procurando determinada rua, instintivamente baixa o rádio ou pede ao amigo que espere um pouco, que pare de falar. Isso porque você atingiu o limite de sua atenção ao tentar fazer essas três coisas. Os limites aparecem sempre que procuramos fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Quantas vezes algo parecido com o que descrevo a seguir já aconteceu com você? Você acabou de chegar em casa com compras, uma sacola em cada mão. Conseguiu equilibrá-las precariamente para destrancar a porta da frente, e quando entra ouve o telefone tocando. Precisa se livrar das sacolas de compras, atender o telefone e talvez tomar cuidado para não deixar o gato ou o cachorro sair pela porta aberta. Terminada a ligação, você percebe que não sabe onde estão suas chaves. Por quê? Porque monitorá-las, com tudo isso, é mais do que o seu sistema de atenção consegue suportar. O cérebro humano evoluiu para esconder de nós as coisas em que não estamos prestando atenção. Em outras palavras, muitas vezes possuímos um ponto cego cognitivo: não sabemos o que estamos perdendo porque nosso cérebro consegue ignorar completamente aquilo que não representa uma prioridade para ele no momento — mesmo que esteja bem diante de nossos olhos. Os psicólogos cognitivos chamam esse ponto cego de vários nomes, inclusive de cegueira por desatenção.16 Uma de suas demonstrações mais espantosas é conhecida como a demonstração do basquete. Se você ainda não a viu, quero que largue este livro e a veja antes de continuar lendo.1 Você deve contar quantos passes são dados pelos jogadores de camiseta branca, ignorando os jogadores de camiseta preta. (Alerta de spoiler: se você ainda não viu o vídeo, ler o próximo parágrafo vai estragar a ilusão.) O vídeo é derivado de um estudo psicológico sobre a atenção feito por Christopher Chabris e Daniel Simons. Em virtude do limite de processamento do sistema de atenção que acabei de descrever, seguir a bola e os passes e contabilizar mentalmente estes últimos esgota a maioria dos recursos de atenção da pessoa comum. O que resta fica comprometido em ignorar os jogadores de camiseta preta e ignorar a bola que eles passam entre si. Em determinado momento do vídeo, um sujeito fantasiado de gorila entra e fica no meio da ação, bate no peito e em seguida sai. A maioria dos espectadores deste vídeo não vê o gorila.17 Qual o motivo? O seu sistema de atenção está simplesmente sobrecarregado. Se eu não tivesse lhe pedido que contasse os passes da bola de basquete, você o teria visto. Muitos casos de perda de chaves do carro, passaportes, dinheiro, recibos e assim por diante ocorre porque nossos sistemas de atenção estão s obrecarregados e simplesmente não conseguem dar conta de tudo. O americano comum possui milhares de vezes mais pertences do que o caçador-coletor comum. Num sentido verdadeiramente biológico, temos de controlar mais coisas do que aquilo que nosso cérebro foi projetado para controlar. Até eminentes intelectuais como Kant e Wordsworth reclamavam do excesso de informação e da absoluta exaustão mental induzidos por absorção sensorial em demasia ou sobrecarga mental.18 Contudo, não há motivo para perder a esperança! Mais do que nunca há sistemas externos eficazes, disponíveis para organizar, categorizar e controlar as coisas. No passado, a única opção era uma série de assistentes humanos. Mas agora, na era da automação, existem outras opções. A primeira parte deste livro é sobre a biologia subjacente ao uso desses sistemas externos. A segunda e terceira parte mostram como podemos utilizá-los para controlar nossas vidas, ser eficientes, produtivos, felizes e menos estressados num mundo interligado, cada vez mais cheio de distrações. A produtividade e a eficiência dependem de sistemas que nos ajudem a organizar as coisas por meio da categorização. O impulso de categorização evoluiu pelas conexões pré-históricas nos nossos cérebros até sistemas neuronais especializados que criam e preservam amálgamas coerentes e significativos de coisas — alimentos, animais, ferramentas, membros da tribo —, enfeixando-as em categorias coerentes. No fundo, a categorização reduz o esforço mental e simplifica o fluxo de informação.19 Não somos a primeira geração de seres humanos a reclamar do excesso de informação. A sobrecarga de informação, antes e hoje Os seres humanos existem há cerca de 200 mil anos. Durante os primeiros 99% de nossa história, não fizemos grande coisa além de procriar e sobreviver.20 Isso em grande parte pelas difíceis condições climáticas globais, que se estabilizaram por volta de 10 mil anos atrás. As pessoas logo descobriram a agricultura e a irrigação, trocando o estilo de vida nômade pelo cultivo agrícola estável. Mas nem todos os terrenos agrícolas são iguais; variáveis regionais de insolação, solo e outras fizeram com que um determinado agricultor colhesse cebolas especialmente boas enquanto outro colhia maçãs extraordinárias. Isso acabou levando à especialização; em vez de cultivar todos os produtos agrícolas para sua própria família, o agricultor podia cultivar apenas aquilo que desse melhor em suas terras, e negociar o excedente em troca de gêneros que não cultivava. Uma vez que o agricultor passou a cultivar apenas um produto, e em quantidade maior do que a necessária, os mercados e o comércio surgiram e se desenvolveram, e com eles veio a fundação de cidades. A cidade suméria de Uruk (c. 5000 a.C.) foi uma das primeiras grandes cidades do mundo. Seu comércio ativo criou um volume jamais visto de transações comerciais, e os comerciantes sumerianos precisavam de um sistema de cálculo para controlar o inventário cotidiano e os recibos; foi esse o berço da escrita.21 Aqui os bacharéis das humanidades precisam pôr de lado suas noções românticas. As primeiras formas de escrita não surgiram voltadas para a arte, a literatura ou a paixão amorosa, nem por objetivos espirituais ou litúrgicos, e sim por causa dos negócios — pode-se dizer que toda a literatura se originou dos recibos das vendas (lamento frustrá-los).22,23 Com o desenvolvimento do comércio, das cidades e da escrita, as pessoas não demoraram a descobrir a arquitetura, o governo e outros refinamentos da vida que irão constituir coletivamente o que nós consideramos civilização.24 O surgimento da escrita cerca de 5 mil atrás não foi recebido com grande entusiasmo; muita gente na época considerou-a um exagero da tecnologia, uma invenção demoníaca que arruinaria a mente e precisava ser impedida. Naquela época, assim como hoje, as palavras impressas eram promíscuas — era impossível controlar onde se aventurariam, ou quem as acolheria, e podiam circular com facilidade sem que o autor soubesse ou pudesse controlá-las. Sem a oportunidade de ouvir as palavras diretamente da boca do falante, o grupo contra a escrita reclamava que seria impossível constatar a veracidade das alegações do escriba ou fazer perguntas. Platão foi um dos que manifestaram esses temores; seu rei Tamuz denunciava que a dependência da palavra escrita “enfraqueceria o caráter dos homens e forjaria o esquecimento em suas almas”.25 Desse modo, a exteriorização de fatos e histórias significaria que as próprias pessoas não precisariam mais reter mentalmente grande quantidade de informação, e acabariam dependendo de fatos e histórias tal como transmitidos de forma escrita pelos outros. Tamuz, rei do Egito, alegava que a palavra escrita contaminaria o povo egípcio com um falso saber.26 O poeta grego Calímaco disse que os livros eram “um grande mal”.27 O filósofo romano Sêneca, o Jovem (tutor de Nero), reclamou que seus pares estavam desperdiçando tempo e dinheiro acumulando livros em demasia, alertando que “a abundância de livros era uma distração”. Em vez disso, Sêneca aconselhava que as pessoas se concentrassem em uma quantidade limitada de bons livros, a serem lidos minuciosa e repetidamente.28 O excesso de informação poderia ser pernicioso à saúde mental. A imprensa foi criada em meados de 1400, permitindo uma proliferação mais rápida da escrita e substituindo a cópia manuscrita trabalhosa (além de sujeita a erros). E novamente muitos reclamaram que a vida intelectual como se conhecia estava acabada. Erasmo, em 1525, fez uma longa crítica ao “enxame de novos livros”, que ele considerava um empecilho ao aprendizado. Ele punha a culpa nos editores, cuja ânsia de lucro os fazia encher o mundo de livros “tolos, ignorantes, malignos, loucos, caluniosos e subversivos”.29 Leibniz reclamava da “terrível massa de livros que não deixa de aumentar” e que acabaria em nada mais que um “retorno à barbárie”.30 Descartes fez uma célebre recomendação para que se ignorasse o estoque acumulado de textos e se fiasse na própria observação. Num presságio do que muitos hoje dizem, Descartes reclamava que “ainda que todo o saber pudesse ser encontrado em livros, onde está tão misturado a tantas coisas inúteis e amontoado de modo confuso em tomos tão grandes, levaríamos mais tempo lendo esses livros do que vivendo a nossa vida, e nos custaria mais esforço selecionar as coisas úteis do que encontrá-las por conta própria”.31 Um fluxo constante de críticas à proliferação dos livros ainda ecoava até o final dos anos 1600. Os intelectuais advertiam que as pessoas acabariam deixando de falar entre si, enterrando-se nos livros, poluindo suas mentes com ideias tolas e inúteis. E, como sabemos, essas advertências foram novamente feitas em nossa própria época, primeiro com a invenção da televisão,32 depois com os computadores,33 iPods,34 iPads,35 e-mail,36 Twitter 37 e Facebook.38 Todos foram criticados como um vício, uma distração desnecessária, sinal de fraqueza de caráter, algo que alimentava a incapacidade de interagir com gente de verdade e com a troca de ideias em tempo real. Até mesmo o telefone de disco enfrentou a crítica ao substituir as ligações feitas por telefonistas, e as pessoas se preocupavam: Como vou me lembrar de todos esses números de telefone? Como vou ordenar e saber onde estão todos eles? Com a Revolução Industrial e o desenvolvimento da ciência, novas descobertas aumentaram bastante. Em 1550, por exemplo, eram conhecidas quinhentas espécies de plantas no mundo. Em 1623, este número aumentara para 6 mil.39 Hoje, conhecemos 9 mil espécies só de grama,40 2700 tipos de palmeiras,41 500 mil diferentes espécies de plantas. E a quantidade não para de crescer.42 Só o aumento de informação científica é impressionante. Há apenas trezentos anos, alguém com um diploma em “ciência” sabia praticamente tanto quanto qualquer pessoa entendida da época. Hoje, alguém com um doutorado em biologia não consegue sequer saber tudo o que há para saber sobre o sistema nervoso do polvo! O Google Scholar informa a existência de 30 mil artigos de pesquisa sobre esse assunto, quantidade que cresce exponencialmente. No momento em que você estiver lendo isto, o número já deve ter crescido pelo menos em 3 mil artigos.43 A quantidade de informação científica que descobrimos nos últimos vinte anos é maior do que todas as descobertas até então, desde o surgimento da linguagem. Só em janeiro de 2012 foram produzidos cinco exabytes (5 × 1018) de novos dados — isso representa 50 mil vezes o número de palavras em toda a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.44,45 Essa explosão informacional nos onera a todos, diariamente, à medida que lutamos para equacionar o que realmente precisamos e o que não precisamos saber. Fazemos anotações, criamos listas de prioridades, deixamos avisos para nós mesmos no e-mail e nos celulares, mas mesmo assim acabamos nos sentindo derrotados. Grande parte dessa sensação de derrota pode remontar à obsolescência evolucionária de nosso sistema de atenção. Já mencionei os dois princípios do filtro de atenção: alteração e importância. Mas existe um terceiro princípio da atenção — inespecífico do filtro de atenção — cuja relevância, agora, é maior do que nunca. Ele tem relação com a troca de atenção. Podemos afirmar este princípio da seguinte maneira: a troca de atenção impõe um alto custo. Nossos cérebros evoluíram para prestar atenção a uma coisa de cada vez. Isso fez com que nossos ancestrais pudessem caçar animais, criar e fabricar ferramentas, proteger seu clã de predadores e da invasão de vizinhos. O filtro de atenção evoluiu para nos ajudar a nos manter presos às nossas tarefas, deixando passar apenas informação importante o bastante para nos tirar dessa concentração. Mas algo curioso aconteceu na virada para o século XXI: a quantidade exagerada de informação e de tecnologias que a sustentam mudaram a maneira como usamos o cérebro. Fazer muita coisa ao mesmo tempo [Multitasking] é o oposto de um sistema de atenção focada. Exigimos cada vez mais que nosso sistema de atenção se concentre em várias coisas ao mesmo tempo, algo que ele não foi programado pela evolução a fazer. Falamos ao telefone enquanto dirigimos, escutamos rádio, procuramos vaga, planejamos o aniversário da mãe, tentamos fugir das placas de aviso de obras na estrada e pensamos no que terá para o almoço. Na verdade, não podemos lidar com tudo isso ao mesmo tempo, de modo que nossos cérebros alternam de uma coisa para outra, a cada vez pagando um preço neurobiológico pela troca. O sistema não funciona bem assim. Depois de se fixar em uma tarefa, nosso cérebro funciona melhor atendo-se a ela. Prestar atenção a uma coisa significa não prestar atenção a outra. A atenção é um recurso de capacidade limitada. Quando você se concentrou nas camisetas brancas no vídeo do basquete, bloqueou as camisetas pretas e, na verdade, a maioria das coisas pretas, inclusive o gorila. Quando nos concentramos numa conversa em curso, nos dessintonizamos de outras conversas. Quando entramos pela porta da frente, ouvimos o telefone tocar e pensamos em quem estará do outro lado da linha, não estamos pensando em onde pusemos as chaves do carro. A atenção é criada por redes de neurônios no córtex pré-frontal (bem atrás da testa), sensíveis apenas à dopamina. Quando a dopamina é liberada, ela os destranca, como acontece com uma chave na porta da frente, e eles começam a disparar pequenos impulsos elétricos que estimulam outros neurônios na sua rede. Mas o que ocasiona a liberação inicial de dopamina? Tipicamente, um de dois gatilhos diferentes: 1. Algo que consegue chamar sua atenção de maneira automática, em geral algo relevante para sua sobrevivência, com origem na evolução. Esse sistema de vigilância que incorpora o filtro de atenção está sempre funcionando, mesmo durante o sono, monitorando o ambiente em busca de acontecimentos importantes.46 Estes podem ser um ruído alto ou uma luz brilhante (o reflexo do susto), algo se mexendo rápido (podendo indicar um predador), uma bebida quando se está com sede, ou uma possível parceira sexual de belas formas. 2. Você exerce uma vontade efetiva de se concentrar só naquilo que é relevante a uma busca ou varredura do ambiente.47 Foi demonstrado em laboratório que essa filtragem proposital altera de fato a sensibilidade dos neurônios no cérebro. Se você está tentando encontrar sua filha que se perdeu no parque de diversões, seu sistema visual é reconfigurado para procurar apenas coisas que tenham altura aproximada à dela, cor de cabelo e silhueta semelhantes, bloqueando todo o resto. Ao mesmo tempo, seu sistema auditivo é ressintonizado para ouvir apenas as frequências de banda sonora em que opera o registro de voz dela. Poderíamos chamar isso de sistema de filtragem Onde está Wally?. Nos livros infantis da série Onde está Wally?, um garoto chamado Wally veste uma camisa de listras horizontais vermelhas e brancas, e se coloca tipicamente numa cena repleta de gente e de objetos desenhados em muitas cores. Na versão para crianças mais jovens, Wally pode ser a única coisa vermelha na cena; o filtro de atenção da criança mais nova é capaz de esquadrinhar depressa a cena e chegar ao objeto vermelho Wally. Os quebra-cabeças de Wally para grupos de idade mais avançada se tornam progressivamente mais difíceis — os objetos de distração são camisas todas vermelhas, ou brancas, ou camisas com listras de cores diferentes, ou listras vermelhas e brancas verticais, em vez de horizontais. Onde está Wally é um quebra-cabeça que explora a neuroarquitetura do sistema visual dos primatas. Dentro do lobo occipital, uma região chamada córtex visual contém uma multidão de neurônios que só reagem a determinadas cores — um coletivo de neurônios dispara um sinal elétrico em reação a objetos vermelhos, outro, a objetos verdes, e assim por diante. Então, um coletivo distinto de neurônios é sensível a listras horizontais, em contraposição às verticais, e, dentre os neurônios das listras horizontais, alguns são reativos ao máximo a listras largas, e outros, a listras estreitas. Como seria bom se você pudesse dar instruções a esses coletivos diferentes de neurônios, dizendo a alguns deles para ficar alertas e obedecer a suas ordens, e a outros para relaxar e ficar em repouso! Bem, você pode — é isso que fazemos quando tentamos encontrar Wally, procuramos um cachecol perdido ou assistimos ao vídeo do basquete. Evocamos uma imagem mental daquilo que procuramos, e os neurônios no córtex visual nos ajudam a imaginar a aparência do objeto. Se ele tiver a cor vermelha, nossos neurônios sensíveis ao vermelho se envolvem nessa imaginação. Eles se sintonizam automaticamente, inibindo outros neurônios (sensíveis a cores que não nos interessam) para facilitar a busca. Onde está Wally? treina as crianças a estabelecer e exercitar seus filtros de atenção a fim de localizar pistas gradativamente mais sutis no ambiente, do mesmo modo que nossos ancestrais treinariam seus filhos a rastrear animais na floresta, começando com animais fáceis de reconhecer e diferenciar, passando depois a animais camuflados, mais difíceis de perceber no ambiente. O sistema também funciona para a filtragem auditiva — se estamos esperando determinado timbre num ruído, nossos neurônios auditivos sintonizam-se seletivamente nessas características. Quando ressintonizamos voluntariamente os neurônios dos sentidos desse modo, nossos cérebros se empenham num processamento descendente, que parte de uma região do cérebro mais elevada e evoluída do que o processamento sensorial. É esse sistema descendente que permite aos peritos alcançar a excelência em suas áreas; que permite aos meio-campistas perceber os jogadores passíveis de receber a bola sem se deixar distrair pelos demais participantes do jogo; que permite que os operadores de sonar mantenham vigilância e possam distinguir facilmente (depois de treinamento adequado) um submarino inimigo de um cargueiro ou uma baleia apenas pelo ruído do ping. É o que permite aos maestros ouvir apenas um instrumento de cada vez, quando há sessenta tocando. É o que permite que você preste atenção a este livro, apesar de provavelmente haver distrações à sua volta neste exato momento: o ruído de um ventilador, do tráfego, de pássaros cantando do lado de fora, conversas distantes, sem falar nas distrações visuais periféricas, fora da moldura do foco visual central dirigido ao local onde está o livro ou a tela. Se temos um filtro de atenção tão eficaz, por que não conseguimos bloquear distrações de maneira mais eficiente? Por que a sobrecarga de informação representa tamanho problema agora? Por um lado, hoje em dia trabalhamos mais do que nunca. A promessa de uma sociedade computadorizada, nos diziam, era a de que todo o trabalho chato e repetitivo seria relegado às máquinas, permitindo que os humanos perseguissem suas metas mais elevadas e gozassem de mais lazer. Mas não funcionou assim. Em vez de dispor de mais tempo, a maioria de nós dispõe de menos. As grandes e pequenas empresas empurraram o trabalho para cima dos consumidores. As coisas que costumavam ser feitas para nós, como parte do benefício de trabalhar com uma empresa, agora somos nós mesmos que temos que fazer. Nas viagens aéreas, hoje exigem que nós mesmos façamos nossas próprias reservas e check-in, tarefas que costumavam ser feitas pelas companhias aéreas ou os agentes de viagens. No supermercado, exigem que nós mesmos empacotemos as compras. Algumas empresas deixaram de nos mandar faturas de serviço — esperam que entremos no site delas, encontremos nossa conta e iniciemos um pagamento eletrônico: na verdade, que façamos o trabalho para a própria empresa. Coletivamente, isso é conhecido como trabalho à sombra — representa uma espécie de economia paralela, na qual boa parte do serviço que esperávamos receber das empresas foi transferida para o cliente.48 Cada um de nós está fazendo o trabalho de outras pessoas, sem ser remunerado. Isso é responsável por tirar de nós muito tempo do lazer que todos achávamos que teríamos no século XXI. Além de trabalhar mais, lidamos com mais mudanças na tecnologia da informação do que nossos pais, e mais como adultos do que quando éramos crianças. O americano comum substitui o celular a cada dois anos, e isso muitas vezes significa ter que lidar com um novo software, novas teclas, novos menus.49 Trocamos o sistema operacional de nossos computadores a cada três anos, e isso requer o aprendizado de novos ícones e procedimentos, e de novas posições para os velhos itens do menu.50 Mas, acima de tudo, como diz Dennis Overbye, “desde os engarrafamentos em Cingapura ao tempo em Marte”, recebemos uma quantidade muito maior de informação. A economia global significa que estamos expostos a uma quantidade enorme de informação a que nossos avós não estavam. Ouvimos falar de revoluções e problemas econômicos de países a meio mundo de distância, no momento em que estão acontecendo; vemos imagens de lugares que jamais visitamos e ouvimos idiomas que nunca ouvimos antes. Nossos cérebros absorvem avidamente tudo isso porque é para isso que foram projetados, mas, ao mesmo tempo, todo esse negócio está competindo por recursos neuronais de atenção dirigidos às coisas que precisamos saber para tocar nossas vidas. Há uma evidência crescente de que abraçar novas ideias e novos aprendizados nos ajuda a viver mais e a evitar o mal de Alzheimer — além das vantagens tradicionalmente associadas à expansão de nosso saber. Por isso o problema não é absorver menos informação, e sim ter sistemas para organizá-la. A informação sempre foi o recurso-chave de nossas vidas. Permitiu-nos aperfeiçoar a sociedade, a assistência médica, as tomadas de decisão, a gozar de crescimento econômico e pessoal, e escolher melhor nossos funcionários públicos eleitos.51 Mas trata-se também de um recurso cuja aquisição e o funcionamento têm um custo bastante alto. À medida que o conhecimento se tornou mais disponível — e descentralizado via internet —, as noções de autenticidade e de autoridade foram se tornando cada vez menos transparentes. Temos acesso mais fácil do que nunca a pontos de vista conflitantes, muitas vezes disseminados por gente despida de qualquer respeito pelos fatos ou pela verdade. Muita gente não sabe mais em que acreditar, o que é verdade, o que foi alterado e o que passou por um crivo criterioso. Não temos tempo nem conhecimento para pesquisar sobre cada pequena decisão. Em vez disso, dependemos de autoridades confiáveis, jornais, rádio, TV, livros, às vezes o cunhado, o vizinho perfeito, o taxista que nos deixou no aeroporto, nossa memória ou alguma experiência do tipo... às vezes essas autoridades merecem confiança, às vezes não. Meu professor, o psicólogo cognitivo Amos Tversky, de Stanford, resume essa questão no “caso do Volvo”. Um colega estava procurando um carro novo para comprar, e havia feito muita pesquisa. A Consumer Reports revelava, através de testes independentes, que o Volvo era um dos carros mais bem-feitos e confiáveis de sua categoria. As pesquisas de satisfação dos clientes revelavam que os proprietários de Volvos continuavam satisfeitos com o carro vários anos depois da compra. Essas pesquisas haviam sido realizadas com dezenas de milhares de clientes. Por si só, a quantidade de gente ouvida significava que qualquer anomalia — como o fato de um determinado veículo ser excepcionalmente bom ou ruim — seria neutralizada pelos demais relatos. Em outras palavras, uma pesquisa assim possuía uma legitimidade científica e estatística que deveria ser levada em conta ao se tomar uma decisão. Isso representa um sumário equilibrado da experiência da média das pessoas, e a previsão mais provável sobre o que será sua própria experiência (se você não dispuser de mais nada em que se basear, a melhor previsão é a de que sua experiência será bem parecida com a da média). Amos encontrou o colega numa festa e perguntou como andava a compra do automóvel. O colega decidira contra o Volvo, em favor de outro carro menos cotado. Amos indagou o motivo da mudança de opinião, depois de toda aquela pesquisa que apontava para o Volvo. Não gostara do preço? Das opções de cores? Do design? Não, nada disso, disse o colega. Ele ficara sabendo que o cunhado teve um Volvo que vivia na oficina. De um ponto de vista estritamente lógico, o colega está sendo irracional. A má experiência do cunhado com o Volvo é um único ponto de informação, engolfado por dezenas de milhares de boas experiências — ponto anômalo, fora da curva. Mas somos criaturas sociais, facilmente convencidas por casos pessoais e relatos vívidos de qualquer experiência singular. Embora essa tendência seja estatisticamente errada e devêssemos aprender a superá-la, a maioria não consegue. Os propagandistas sabem disso, e é por isso que vemos tantos testemunhos pessoais nos anúncios publicitários na TV. “Eu perdi oito quilos em duas semanas comendo este novo iogurte, que além de tudo é delicioso!” Ou: “Eu estava com uma dor de cabeça que não passava. Estava furioso e querendo morder todo mundo perto de mim. Então tomei este novo remédio e voltei ao normal”. Nosso cérebro se concentra mais em relatos vívidos e sociais do que em estatísticas frias e chatas. Cometemos muitos erros de raciocínio devido a vieses cognitivos. Muita gente está bastante familiarizada com ilusões como estas: Na versão de Roger Shepard da famosa “ilusão de Ponzo”, o monstro de cima parece maior que o de baixo, mas uma régua mostrará que são do mesmo tamanho. Na ilusão de Ebbinghaus, abaixo, o círculo branco à esquerda parece maior do que o círculo branco à direita, mas eles são do mesmo tamanho. Dizemos que a visão nos engana, mas na verdade não é ela, e sim o cérebro que o faz. O sistema visual emprega a heurística ou atalhos para costurar uma compreensão do mundo, e às vezes se engana. De modo análogo às ilusões visuais, somos propensos a ilusões cognitivas quando procuramos tomar decisões, e nosso cérebro toma atalhos decisórios. Estes têm maior probabilidade de ocorrer com os tipos de informação maciça que hoje se tornaram norma. Podemos aprender a superar essas ilusões, mas, até lá, elas afetam profundamente ao que prestamos atenção e a maneira como processamos a informação. A pré-história da categorização mental A psicologia cognitiva é o estudo científico de como os seres humanos (e animais e, em alguns casos, computadores) processam informação. Tradicionalmente, os psicólogos cognitivos fizeram uma distinção entre diferentes áreas de estudo: memória, atenção, categorização, aquisição e uso da linguagem, tomada de decisão e um ou dois tópicos a mais. Muitos acreditam que atenção e memória estão intimamente associadas, que não conseguimos nos lembrar de coisas a que não prestamos atenção. Deu-se um relevo relativamente menor à importante relação entre categorização, atenção e memória. Categorizar ajuda-nos a organizar o mundo físico objetivo, mas também organiza o mundo mental, o mundo interno, nas nossas cabeças, e, portanto, aquilo a que podemos prestar atenção e que podemos recordar. Para ilustrar como a categorização é fundamental, pense como seria a vida se não pudéssemos arrumar as coisas em categorias. Ao olhar para um prato de feijão preto, cada feijão não teria nenhuma relação com os demais, seria insubstituível, não seria do mesmo “tipo”. Não seria evidente que cada caroço equivalesse ao outro. Ao sair para cortar a grama, as várias folhas seriam tremendamente diferentes, e não consideradas como parte de um coletivo. No entanto, nesses dois casos, existem semelhanças perceptivas entre todos os caroços de feijão, e todas as folhas em questão. Nosso sistema perceptivo pode ajudar-nos a criar categorias baseadas na aparência. Mas muitas vezes categorizamos com base em semelhanças conceituais, em vez de semelhanças perceptivas. Quando o telefone toca na cozinha e você precisa anotar um recado, é possível que vá até a gaveta da bagunça e pegue a primeira coisa que dê a impressão de poder escrever. Mesmo sabendo que canetas, lápis e creions são distintos e pertencem a categorias diferentes, no momento eles se tornam funcionalmente equivalentes, integrantes de uma categoria de “coisas com que posso escrever no papel”. Talvez você só encontre batom e resolva usá-lo. Assim, não é o seu sistema perceptivo que os está agrupando, mas seu sistema cognitivo. As gavetas de bagunça revelam muita coisa sobre a formação de categorias, e servem a um objetivo importante e útil ao funcionar como válvula de escape para objetos que não cabem direito em nenhum outro lugar. Nossos primeiros ancestrais não tinham muitos pertences — uma pele de animal como vestimenta, um recipiente para água, um saco para colher frutas. Na verdade, todo o mundo natural era seu lar. Acompanhar toda a variedade e a variabilidade do mundo natural era essencial, e também uma tarefa mental extenuante. Como nossos ancestrais faziam para entender o mundo natural? Que tipo de distinções eram fundamentais para eles? Uma vez que os acontecimentos pré-históricos não deixaram, por definição, registros históricos, é preciso nos fiar em fontes indiretas para responder a essas questões. Uma dessas fontes são os coletores-caçadores ágrafos contemporâneos, isolados da civilização industrial. Não sabemos ao certo, mas supomos que levem uma vida bastante parecida com a de nossos ancestrais caçadores-coletores. Os pesquisadores observam como eles vivem e os entrevistam para descobrir o que sabem de como viviam seus próprios ancestrais, através de narrativas familiares e da tradição oral. As línguas constituem evidência parecida. A “hipótese léxica” presume que os objetos mais importantes sobre os quais os seres humanos precisam se comunicar acabam sendo codificados em linguagem. Um dos serviços mais importantes que a linguagem nos presta é ajudar-nos a fazer distinções. Quando dizemos que algo é comestível, nós o distinguimos — de modo implícito e automático — de todas as outras coisas que não são comestíveis. Quando dizemos que algo é uma fruta, nós o distinguimos necessariamente de legumes, derivados do leite e assim por diante. Até as crianças entendem intuitivamente que a natureza das palavras é restritiva. Uma criança que pede um copo d’água talvez diga “Não quero água do banheiro, quero água da cozinha”. Os pequenos estão fazendo discriminações sutis do mundo físico e exercendo seus sistemas de categorização. Os primeiros humanos organizavam seus pensamentos e mentes em torno de distinções básicas que ainda fazemos e achamos úteis. Uma das distinções primordiais era entre agora e não agora; estas coisas estão acontecendo neste momento, essas outras aconteceram no passado e estão agora contidas na minha memória. Nenhuma outra espécie faz essa distinção consciente entre passado, presente e futuro. Nenhuma outra espécie lastima acontecimentos passados, ou planeja-os calculadamente no futuro. É evidente que muitas espécies reagem ao tempo construindo ninhos, voando para o sul, hibernando, se acoplando — mas isso é pré-programado, são comportamentos instintivos, e essas iniciativas não resultam de decisões conscientes, de reflexão ou planejamento. Simultaneamente à compreensão de agora em contraposição a antes, existe a compreensão da permanência do objeto: algo pode não estar diretamente à vista, mas isso não quer dizer que parou de existir. As crianças entre quatro e nove meses já têm noção da permanência do objeto, provando que essa operação cognitiva é inata.52 Por exemplo, vemos um veado e sabemos através de nossos olhos (e de uma porção de módulos cognitivos inatos) que o veado está ali diante de nós. Quando o veado some, podemos recordar sua imagem e representá-la mentalmente, ou mesmo externamente, através de um desenho ou uma escultura. Essa capacidade humana de distinguir o “aqui e agora” do “não aqui e agora” ficou demonstrada há pelo menos 50 mil anos nas pinturas rupestres, que constituem a primeira prova da capacidade de qualquer espécie terrena de representar, de modo explícito, a distinção entre o que está aqui e o que esteve aqui. Em outras palavras, esses Picassos das cavernas estavam fazendo uma distinção, através do próprio ato de pintar, do tempo, do lugar e dos objetos, uma operação mental evoluída que hoje chamamos representação mental. E demonstravam uma noção articulada do tempo: havia um veado lá fora (evidentemente não ali, na parede da caverna). Agora não estava ali, mas esteve antes. Agora e antes há uma diferença; ali (a parede da caverna) representa simplesmente o lá (o prado diante da caverna). Esse passo pré-histórico na organização de nossas mentes foi muito importante. Ao fazer distinções assim, estamos formando implicitamente categorias, algo que muitas vezes escapa às pessoas. A formação de categorias é algo profundamente presente no reino animal. Ao construir ninhos, os pássaros possuem uma categoria implícita de materiais que servem para fazer um bom ninho, entre os quais gravetos, algodão, folhas, tecido e lama, mas não, digamos, pregos, pedaços de arame, casca de melão ou lascas de vidro. A formação de categorias nos seres humanos segue o princípio cognitivo de codificar o máximo de informação possível com o mínimo esforço. Os sistemas de categorização otimizam a liberdade de conceituar e a importância de poder comunicar esses sistemas.53 A categorização também permeia a vida social. Em todas as 6 mil línguas reconhecidamente faladas hoje no planeta, toda cultura demarca, através da linguagem, quem está ligado a quem como “família”.54 Os termos de parentesco nos permitem reduzir um enorme conjunto de relações possíveis a um conjunto menor, mais fácil de utilizar, uma categoria que pode ser usada. A estrutura de parentesco nos permite codificar o máximo de informação possível com o mínimo esforço cognitivo. Todas as línguas codificam o mesmo conjunto básico (biológico) de relações: mãe, pai, filha, filho, irmã, irmão, avó, avô, neta e neto. Daí em diante as línguas diferem. Em inglês, o irmão de sua mãe e o irmão de seu pai são ambos chamados de tios. Os maridos da irmã de sua mãe e da irmã de seu pai são também chamados de tios. Isso não é válido em muitas línguas, em que a categoria “tio” só se aplica a casamentos do lado paterno (em culturas patrilineares), ou somente do lado da mãe (em culturas matrilineares), e pode se estender por duas ou mais gerações.55 Outro ponto em comum é que todas as línguas possuem uma ampla categoria coletiva para parentes que tal cultura julga relativamente distantes de você — semelhante ao nosso termo primo. Embora, em tese, muitos bilhões de sistemas de parentesco sejam possíveis, pesquisas demonstraram que os atuais sistemas existentes em diferentes partes do mundo se formaram para minimizar a complexidade e maximizar a facilidade de comunicação. As categorias de parentesco nos falam sobre fatos de adaptação biológica, que aumentam a probabilidade de termos filhos saudáveis, por exemplo, com quem devemos ou não nos casar. Também representam janelas para a cultura do grupo, suas atitudes diante da responsabilidade; revelam pactos sobre o desvelo mútuo e veiculam normas tais como onde deve morar um jovem casal recém-casado. Eis o exemplo de uma lista utilizada pelos antropólogos justamente para esse fim: Patrilocal: o casal mora com ou próximo à família do noivo Matrilocal: o casal mora com ou próximo à família da noiva Ambilocal: o casal pode escolher se quer morar com ou próximo à família do noivo ou da noiva Neolocal: o casal se muda para uma nova casa em um novo lugar Natolocal: marido e mulher continuam a morar com seus próprios parentes, e não juntos Avunculocal: o casal se muda para a casa ou um local próximo à casa do(s) irmão(s) da mãe do noivo (ou outros tios, cuja definição depende da cultura) Os dois modelos dominantes de comportamento em relação aos laços de parentesco na América do Norte de hoje são o neolocal e o ambilocal: os jovens recémcasados geralmente têm sua própria casa e podem escolher qualquer lugar para morar, até mesmo a centenas ou milhares de quilômetros de distância de seus respectivos pais; no entanto, muitos preferem morar com ou perto da família do marido ou da mulher. Esta última opção ambilocal oferece um importante apoio emocional (e às vezes financeiro), auxílio no cuidado dos filhos, e uma rede já estabelecida de amigos e parentes para ajudar o jovem casal a começar a vida. De acordo com uma pesquisa, os casais (especialmente os mais pobres) que permanecem perto dos parentes de um ou de ambos os membros do casal se dão melhor no casamento e na criação dos filhos. O parentesco além das relações nucleares filho-filha e mãe-pai pode parecer inteiramente arbitrário, apenas uma invenção humana. Mas ele se revela em muitas espécies animais, e podemos quantificá-lo em termos genéticos para demonstrar sua importância. De um ponto de vista estritamente evolucionário, nossa tarefa é propagar nossos genes o máximo possível. Compartilhamos 50% dos nossos genes com nossa mãe ou nosso pai, ou com qualquer filho. Também compartilhamos 50% com nossos irmãos (a não ser que sejamos gêmeos). Se sua irmã tiver filhos, você compartilha 25% dos seus genes com eles. Se não tivermos nenhum filho, a melhor estratégia para propagar nossos genes é ajudar a cuidar dos filhos de nossas irmãs, isto é, nossos sobrinhos. Nossos primos em primeiro grau — filhos de uma tia ou um tio — compartilham 12,5% de nossos genes. Se não tivermos sobrinhos, quaisquer cuidados que tivermos com primos ajudam na transmissão do material genético de que somos feitos. Richard Dawkins e outros, portanto, levantaram sólidos argumentos contra as alegações dos religiosos fundamentalistas e dos conservadores sociais de que a homossexualidade é uma “abominação” contra a natureza. Um homem gay ou uma mulher gay que ajuda a cuidar do filho de um familiar é capaz de dedicar bastante tempo e recursos financeiros para propagar os genes da família. Isso, sem dúvida, tem sido historicamente verdade. Uma consequência natural, como mostra o diagrama acima, é que primos em primeiro grau que se casam entre si e têm filhos aumentam a quantidade de genes que transmitem. Na verdade, muitas culturas promovem casamentos entre primos em primeiro grau como uma maneira de aumentar a unidade familiar, reter as riquezas da família, ou para assegurar a semelhança de pontos de vista religiosos ou culturais dentro da união. Cuidar de sobrinhos não se limita à espécie humana. O rato-toupeira cuida dos sobrinhos, mas não dos jovens que não são parentes, e a codorna japonesa demonstra uma evidente preferência por se acasalar com primos em primeiro grau — uma maneira de aumentar seu próprio material genético a ser transmitido (filhos de primos em primeiro grau compartilham 56,25% de seu DNA com cada progenitor, em vez de 50% — ou seja, os genes da família ganham uma vantagem de 6,25% nos filhos de primos em primeiro grau em relação aos filhos de progenitores não aparentados).56 Classificações como as categorias de parentesco auxiliam na organização, na codificação e na comunicação de um saber complexo. E as classificações têm suas raízes no comportamento animal, de modo que podem ser descritas como pré-cognitivas. O que os seres humanos fizeram foi transportar essas distinções para a linguagem e, assim, explicitamente torná-las informação comunicável. Como os primeiros humanos dividiam e categorizavam o reino animal e vegetal? Os dados se baseiam na hipótese léxica, que diz que as distinções mais importantes para uma dada cultura acabam codificadas na língua dessa cultura. O gradativo aumento da complexidade cognitiva e da categorização é acompanhado de uma maior complexidade de termos linguísticos, e esses termos servem para codificar distinções importantes. O trabalho de sociobiólogos, antropólogos e linguistas revelou padrões de nomeação de plantas e animais que atravessam as culturas e o tempo.57 Uma das primeiras distinções feitas pelos primeiros humanos foi entre humanos e não humanos — o que faz sentido. Distinções mais refinadas se insinuaram gradativa e sistematicamente nas línguas. Pelo estudo de milhares de diferentes línguas, sabemos que se uma língua possui apenas dois substantivos (palavras nomeadoras) para coisas vivas, ela fará distinção entre humano e não humano. À medida que a cultura e a língua evoluem, outros termos passam a ser usados. A próxima distinção a ser feita é entre coisas que voam, nadam ou rastejam — aproximadamente os equivalentes de pássaro, peixe e cobra. De modo geral, dois ou três desses termos passam a ser usados de repente. Assim, é improvável que uma língua possua apenas três termos para formas de vida, mas, se tiver quatro, eles serão humano, não humano e dois referentes a pássaro, peixe e cobra. Dentre estes últimos, os dois que serão acrescentados dependerão, como se pode imaginar, do meio ambiente em que as pessoas vivam e dos animais que tenham mais probabilidade de encontrar. Se a língua possui quatro nomes de animais, ela acrescentará o que faltou dessa trinca. A língua com cinco termos deste tipo para animais acrescenta um termo geral para mamífero, ou um termo para animais rastejantes menores, combinando numa categoria o que chamamos vermes e insetos. Em virtude de tantas línguas ágrafas combinarem vermes e insetos na mesma categoria, os etnobiólogos criaram um termo para essa categoria: wugs (fusão das palavras inglesas worm, verme, e bug, inseto). A maioria das línguas possui um único termo popular para animais rastejantes que provocam arrepios, e o inglês não é exceção. O termo bug representa uma categoria informal e heterogênea que combina formigas, besouros, moscas, aranhas, lagartas, carunchos, gafanhotos, carrapatos e vários outros seres taxonômica e biologicamente bem distintos. O fato de ainda hoje utilizarmos o termo com essa acepção genérica, a despeito de todo nosso conhecimento científico evoluído, frisa a utilidade e o caráter inato das categorias funcionais. “Bug” promove uma economia cognitiva ao combinar em uma única categoria coisas em que geralmente não precisamos pensar com muitos detalhes, além do cuidado de não deixá-las entrar no nosso cardápio nem rastejar na nossa pele. Não é a biologia desses organismos que os une, mas sua função em nossas vidas — e nosso esforço para mantê-los fora de nossos corpos, e não dentro. Os nomes de categorias usados por sociedades ágrafas, tribais, contradizem do mesmo modo nossas categorias científicas modernas. Em muitas línguas, a palavra pássaro inclui morcegos; peixe talvez inclua baleias, golfinhos e tartarugas; cobra pode incluir vermes, lagartos e enguias. Depois desses sete nomes básicos, as sociedades acrescentam outros termos a suas línguas de modo menos sistemático. Algumas acrescentam algum termo idiossincrático para determinada espécie que possua grande significado social, religioso ou prático. Uma língua pode possuir um único termo para águia, além do nome comum pássaro, sem que haja nenhum outro nome para outros pássaros específicos. Ou pode escolher um único termo entre os mamíferos, digamos, urso. Também vemos uma ordem universal que rege o surgimento de termos para o reino vegetal. Línguas relativamente pouco desenvolvidas não têm um nome único que signifique plantas. A falta do termo não significa que elas não percebam as diferenças, que sejam incapazes de distinguir entre espinafre e maconha; apenas que não possuem um termo abrangente para se referir às plantas. Temos casos assim no próprio inglês. Por exemplo, não dispomos de um termo genérico que se refira aos cogumelos comestíveis. Também não temos um termo que descreva todas as pessoas que teríamos de avisar caso fôssemos nos hospitalizar por três semanas. Elas poderiam incluir parentes próximos, amigos, o patrão, o entregador do jornal e qualquer um com quem você tivesse um compromisso nesse período. A falta do termo não significa que não compreendamos o conceito; significa simplesmente que essa categoria não se reflete na nossa língua. Talvez porque não tenha havido nenhuma necessidade premente de cunhar uma palavra para isso. Se uma língua só tiver um termo para seres vivos não animais, não será o nosso termo global, planta, mas uma única palavra que descreva coisas altas, lenhosas, que crescem — o que chamamos de árvores. Quando uma língua introduz um segundo termo, será um termo abrangente para grama e ervas — que os pesquisadores chamam pelo neologismo grerva —, um termo genérico para grama e coisas parecidas com grama. Quando uma língua evolui e acrescenta novos termos para plantas, já dispondo de grerva, o terceiro, quarto e quinto serão mato, grama e trepadeira (não necessariamente nessa ordem; vai depender do meio ambiente). Se a língua já tiver grama, o terceiro, quarto e quinto termos acrescentados serão mato, erva e trepadeira. Grama é uma categoria interessante, porque a maior parte de seus membros constituintes não é nomeada pela maioria dos falantes de inglês. Podemos nomear dezenas de legumes e árvores, mas a maioria de nós diz apenas “grama” para se referir a mais de 9 mil espécies diferentes. Como no caso de “bug” — a maior parte dos animais que integram essa categoria não é nomeada pelos falantes de inglês. Existe uma ordem de surgimento na língua no que se refere a outros conceitos. Um exemplo é a descoberta feita por Brent Berlin e Paul Kay, antropólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley, de uma ordem universal no surgimento dos termos para cores. Muitas línguas pré-industriais do mundo só possuem dois termos para cores, dividindo mais ou menos o globo em cores claras e cores escuras. Rotulei-as de BRANCO e PRETO na figura a seguir, conforme a literatura, mas isso não significa que os falantes dessas línguas estejam literalmente nomeando apenas o preto e o branco; significa, na verdade, que metade das cores vistas por eles são recobertas pelo termo único “cor clara”, e a outra metade, pelo termo único “cor escura”. Agora eis a parte mais interessante. Quando uma língua evolui e acrescenta um terceiro termo a seu léxico referente a cores, ele é sempre vermelho. A respeito disso foram propostas várias teorias, e a dominante é que a importância do vermelho tem a ver com o fato de ser a cor do sangue. Quando uma língua acrescenta um quarto termo, ele é amarelo ou verde. O quinto termo é verde ou amarelo, e o sexto é azul. Essas categorias não têm apenas um interesse acadêmico ou antropológico. São cruciais para um dos objetivos básicos da ciência cognitiva: compreender como se organiza a informação. E essa necessidade de compreender é um traço reforçado e inato que nós, humanos, compartilhamos, porque o conhecimento é algo que nos é útil. Quando nossos primeiros ancestrais abandonaram a proteção da vida em árvores e se aventuraram na savana aberta em busca de novas fontes de alimento, ficaram mais vulneráveis a predadores e ameaças, como ratos e cobras. Os interessados em adquirir conhecimento — cujos cérebros tinham prazer em aprender coisas novas — teriam uma vantagem em termos de sobrevivência, e assim esse amor pelo conhecimento acabaria codificado em seus genes por meio da seleção natural. Como notou o antropólogo Clifford Geertz, não há dúvida de que os humanos ágrafos que sobrevivem em tribos “demonstram um interesse por todo tipo de coisas que sejam úteis para seus contextos, ou para seus estômagos.58 [...] Eles não ficam classificando todas aquelas plantas, distinguindo todas aquelas cobras ou categorizando todos aqueles morcegos por conta de uma paixão esmagadora surgida de estruturas inatas nas profundezas da mente. [...] Num meio ambiente populado por coníferas, ou cobras, ou morcegos herbívoros, é conveniente saber bastante sobre coníferas, cobras e morcegos herbívoros, quer o que a pessoa saiba seja ou não, em qualquer sentido estrito, materialmente útil”. Um ponto de vista oposto é endossado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, que achava que a classificação atende a uma necessidade inata de classificar o mundo natural, porque o cérebro humano possui uma forte propensão cognitiva à ordem. Essa preferência da ordem à desordem pode remontar a milhões de anos na evolução. Como mencionei na Introdução, alguns pássaros e roedores criam limites em volta de seus ninhos, geralmente com pedras ou folhas, de forma ordenada; se a ordem foi perturbada, eles sabem que houve a presença de um intruso. Tive vários cães que percorriam a casa periodicamente para pegar seus brinquedos e guardá-los numa cesta. O anseio dos humanos pela ordem se escora, sem dúvida, nesses antigos sistemas evolutivos. Eleanor Rosch, psicóloga cognitiva da Universidade da Califórnia em Berkeley, sustenta que a categorização humana não é produto de um acidente histórico ou de fatores arbitrários, mas resultado de princípios psicológicos ou inatos de categorização. Os pontos de vista de Lévi-Strauss e Rosch sugerem que existe um desacordo em relação à dicotomia que Geertz esboça entre paixão cognitiva e conhecimento prático. Minha opinião é que a paixão a que Geertz se refere faz parte do benefício prático do conhecimento — são dois lados da mesma moeda. Pode ser útil ter bastante conhecimento do mundo biológico, mas o cérebro humano foi configurado — conectado — para adquirir essa informação e querer adquiri-la. Essa paixão inata por nomear e categorizar fica bem clara quando se percebe que a maior parte da nomenclatura que damos ao mundo vegetal pode ser considerada estritamente desnecessária. Das 30 mil plantas comestíveis que se supõe existir na Terra, apenas onze constituem 93% de todas as que os humanos comem: aveia, milho, arroz, trigo, batata, mandioca, sorgo, painço, feijão, cevada e centeio.59 No entanto, nossos cérebros evoluíram para receber uma dose agradável de dopamina quando aprendemos algo novo, e mais uma vez quando conseguimos classificá-lo sistematicamente numa estrutura ordenada. Em busca da excelência na categorização Nós, humanos, somos fortemente programados para gostar do conhecimento, sobretudo do conhecimento oriundo dos sentidos. E somos programados para impor uma estrutura a esse conhecimento sensorial, virá-lo de um lado para outro, examiná-lo de vários ângulos e tentar encaixá-lo em múltiplos quadros neuronais. Essa é a essência do aprendizado humano. Somos programados para impor estrutura ao mundo. Prova adicional do caráter inato dessa estrutura é a coerência extraordinária das convenções de atribuição de nomes na classificação biológica (plantas e animais), que abarca culturas extremamente diferentes. Todas as línguas e culturas inventaram — de forma independente — princípios de atribuição de nomes tão semelhantes que sugerem uma predisposição inata à classificação. Por exemplo, toda língua contém nomes primários e secundários de animais e plantas. Em português temos pinheiros (de modo geral) e pinheiro-do-paraná (de modo particular). Existem maçãs e maçãs gala, fuji e golden delicious. Há salmões e salmões-pequenos, pica-paus e pica-paus-amarelos. Ao observar o mundo, percebemos que existe um conjunto de coisas que demonstra ter mais semelhança do que dessemelhança, e, contudo, reconhecemos variações menores. Isto também se estende aos artefatos feitos pelo homem. Temos cadeiras e espreguiçadeiras, facas e facões de caça, sapatos e sapatos de camurça. E eis um comentário secundário interessante: quase toda língua também possui termos que imitam essa estrutura linguisticamente, mas que, na realidade, não se referem ao mesmo tipo de coisas. Por exemplo, cachorro-de-padre é um peixe e não um cachorro; jacaré-do-mato é um tipo de planta e não um réptil. Nossa fome de conhecimento pode estar na raiz de nossos fracassos e de nossos êxitos. Pode representar uma distração ou nos engajar numa busca eterna de compreensão e conhecimento profundo. Alguns conhecimentos elevam nossa vida, outros são irrelevantes e simplesmente nos distraem — os livrinhos de banca de jornal provavelmente recaem nesta última categoria (a não ser que você os escreva). As pessoas bem-sucedidas são peritas em categorizar conhecimento útil versus distração. Como fazem isso? É claro que alguns dispõem de uma série de assistentes que os tornam capazes de estar presentes no aqui e agora, o que por sua vez os faz ter sucesso. Os smartphones e arquivos digitais são úteis para organizar a informação, mas categorizar a informação de modo útil — e isso utiliza a maneira como nossos cérebros são organizados — ainda requer uma classificação refinada, feita por um ser humano, por nós. Uma das coisas que as PABS não param de fazer é a seleção ativa, também chamada triagem. Você provavelmente já faz isso, só que sem usar esse nome. A seleção ativa consiste simplesmente em separar agora as coisas que você precisa resolver das que não precisa. Essa seleção ativa e consciente adquire muitas formas em nossas vidas, e não existe apenas uma maneira certa de fazê-la. A quantidade de categorias varia, e quantas vezes por dia também — talvez nem seja preciso fazer isso todo dia. Ainda assim, de um modo ou de outro, é essencial para nos organizarmos, sermos eficientes e produtivos. Trabalhei durante vários anos como assistente pessoal de um executivo bemsucedido, Edmund W. Littlefield. Ele havia sido o CEO da Utah Construction (depois Utah International), empresa que construiu a represa Hoover e muitos outros projetos de engenharia no mundo inteiro, inclusive metade dos túneis e pontes das ferrovias a oeste do Mississippi. Quando trabalhei para ele, ele também integrava a diretoria da General Eletric, Chrysler, Wells Fargo, Del Monte e Hewlett-Packard. Destacava-se pela capacidade intelectual, pelo tino comercial e, sobretudo, por sua genuína modéstia e humildade. Era um mestre generoso. Nossas opiniões nem sempre estavam de acordo, mas ele respeitava os pontos de vista contrários e buscava manter as discussões centradas nos fatos, em vez de em especulações. Uma das primeiras coisas que me ensinou a fazer como seu assistente foi separar sua correspondência em quatro pilhas. 1. Coisas que precisam ser resolvidas imediatamente. Isso podia incluir correspondência de seus sócios de escritório ou de negócios, contas, documentos legais e afins. Depois ele fazia uma espécie de separação fina entre as coisas que precisavam ser resolvidas no mesmo dia e as que podiam esperar até os próximos dias. 2. Coisas que são importantes, mas que podem esperar. Chamávamos isso de pilha de pendências. Podia incluir relatórios de investimento que precisavam ser analisados, artigos que ele poderia querer ler, avisos de revisão periódica do carro, convites para aniversários ou festividades ainda relativamente distantes no futuro, e assim por diante. 3. Coisas que não são importantes e podem esperar, mas que mesmo assim deviam ser guardadas. Geralmente incluíam catálogos de produtos, cartões-postais e revistas. 4. Coisas que deviam ser jogadas fora. Ed vistoriava periodicamente todos os itens dessas categorias e os reclassificava. Outras pessoas têm sistemas mais refinados ou mais toscos. Uma pessoa altamente bemsucedida tem um sistema de duas categorias: coisas para guardar e coisas para jogar fora. Outra PABS estende esse sistema de correspondência para tudo que passar por sua mesa, de itens eletrônicos (e-mails e PDFs) a documentos em papel. Às categorias de Littlefield podem-se acrescentar subcategorias, dependendo do trabalho em andamento, para hobbies, manutenção da casa e assim por diante. Parte do material dessas categorias acaba em pilhas na nossa mesa, outra em pastas, outras no computador. A seleção ativa é uma maneira poderosa de evitar que sejamos distraídos. Ela cria e fomenta grandes capacidades, não apenas práticas, mas também intelectuais. Depois que você estabeleceu prioridades e começou a trabalhar, o fato de saber que aquilo que está fazendo é a coisa mais importante a fazer no momento possui um poder surpreendente. As outras coisas podem esperar — é nisso que você pode se concentrar sem se preocupar em estar esquecendo alguma coisa. Existe um motivo simples e profundo para que a seleção ativa facilite essa situação. O princípio mais fundamental da mente organizada, o mais crucial para nos impedir de esquecer e perder as coisas, é transferir do nosso cérebro para o mundo externo o ônus de organizar. Se for possível transferir alguns — ou todos — os processos de nosso cérebro para o mundo exterior, teremos menos probabilidade de cometer erros; e não por causa da capacidade limitada de nosso cérebro, mas por causa da natureza do armazenamento e da recuperação da memória no nosso cérebro: os processos da memória podem ser facilmente distraídos ou confundidos por outros itens semelhantes. A seleção ativa é apenas uma de muitas maneiras de utilizar o mundo concreto para organizar sua mente. A informação de que você precisa está na pilha física ali, e não entulhando a sua cabeça. As pessoas bem-sucedidas inventaram dezenas de maneiras de transferir de seus cérebros para o ambiente o ônus de recordar: lembretes físicos em casa, no carro, no escritório. Num sentido mais amplo, isso tem relação com o que os psicólogos cognitivos chamam de affordances gibsonianas, em referência ao pesquisador J.J. Gibson. Uma affordance gibsoniana descreve um objeto cujo feitio, de certo modo, indica ou fornece a informação sobre a maneira de utilizá-lo. Don Norman, um outro psicólogo cognitivo, deu um exemplo que ficou famoso: a porta. Quando você se aproxima de uma porta, como saber se ela vai abrir para dentro ou para fora, se deve empurrá-la ou puxá-la? Com portas que usamos com frequência podemos tentar lembrar, mas a maioria de nós não lembra. Quando perguntaram aos participantes de uma experiência se “a porta de seu quarto abre para dentro ou para fora”, a maioria não conseguiu lembrar. Mas determinadas características da porta codificam essa informação para nós. Elas nos mostram como usá-las, por isso não é preciso lembrar, entulhando nossos cérebros com informação que poderia ser estocada com mais eficiência e durabilidade no mundo externo. Ao estender a mão para a maçaneta de uma porta, é possível ver se o batente irá bloqueá-la quando você tentar puxá-la. Provavelmente você não tem consciência disso, mas seu cérebro está registrando a informação e guiando seus atos de modo automático — e isso é muito mais eficiente cognitivamente do que memorizar o padrão de abertura de cada porta que você encontra. Firmas, edifícios de escritórios e outros prédios públicos tornam isso ainda mais evidente por serem usados por um número muito maior de pessoas: as portas que devem ser empurradas tendem a não ter maçaneta, ou então apresentam uma barra para empurrar ao longo da porta. As portas que devem ser puxadas têm maçaneta. Mesmo com essa pista adicional, às vezes a falta de familiaridade com a porta, ou o fato de você estar indo para uma entrevista de trabalho ou algum outro compromisso que o deixa distraído, fará com que hesite por um momento, sem saber se deve puxar ou empurrar. Mas na maior parte do tempo seu cérebro reconhece o modo de funcionamento da porta graças à sua affordance, a indicação proporcionada pelo próprio feitio. Do mesmo modo, o formato do telefone na sua mesa mostra qual é a parte que você precisa pegar. O fone é exatamente do tamanho e do feitio que indica que você deve pegá-lo, e não a outra parte do aparelho. A maioria das tesouras tem dois buracos para os dedos, um maior que o outro, e assim você sabe onde enfiar os dedos e onde enfiar o polegar (geralmente aborrecendo quem é canhoto). O cabo da chaleira mostra como você deve pegá-la. A lista de affordances é longa. É por isso que os ganchos para chaves funcionam. Controlar as coisas que você perde com frequência, como chave do carro, óculos e até carteira, envolve a criação de affordances (formas que proporcionam o uso desejado) que reduzam o fardo de seu cérebro consciente. Nesta época de sobrecarga de informação, é importante conquistarmos o controle do ambiente e alavancarmos nosso conhecimento sobre o funcionamento cerebral. A mente organizada cria affordances e categorias que permitem uma navegação com pouco esforço no mundo de chaves de carro, celulares e centenas de detalhes diários, ajudando-nos também a abrir caminho no mundo das ideias do século XXI. 1 O vídeo pode ser visto aqui: . 2 AS PRIMEIRAS COISAS PARA ENTENDER Como funcionam a atenção e a memória Vivemos num mundo de ilusões. Acreditamos perceber tudo que acontece à nossa volta. Prestamos atenção e vemos uma cena contínua e completa do mundo visual, composta de milhares de pequenas imagens cheias de detalhes. Todos talvez saibam que cada um de nós possui um ponto cego, mas continuamos a viver, um dia após o outro, ignorando alegremente onde ele fica, porque nosso córtex occipital realiza o excelente trabalho de preencher a lacuna e, portanto, de escondê-lo de nós. As demonstrações em laboratório da cegueira provocada pela desatenção (como no vídeo do gorila, no capítulo anterior) frisam quão pouco vemos de fato o mundo, a despeito da sensação esmagadora de que vemos tudo. Prestamos atenção aos objetos do ambiente, em parte, com base na nossa vontade (optamos por dar atenção a algumas coisas), em parte, com base no sistema de alerta que monitora nosso mundo em busca de ameaças e, em parte, com base nas excentricidades de nossos próprios cérebros. Nossos cérebros nascem previamente configurados para criar automaticamente categorias e classificações, sem nossa intervenção consciente. Quando os sistemas que tentamos estabelecer entram em colisão com a maneira como o cérebro categoriza automaticamente as coisas, acabamos perdendo objetos, compromissos, ou esquecendo de realizar tarefas que tínhamos de fazer. Você já ficou sentado em um trem ou um avião, apenas olhando pela janela, sem nada para ler, sem olhar para nada em especial? Talvez tenha achado que o tempo passou de modo muito agradável, sem deixar nenhuma memória real do que você de fato esteve olhando, pensando, ou até mesmo quanto tempo passou. Talvez tenha experimentado uma sensação parecida da última vez que ficou sentado à beira do mar ou de um lago, deixando que sua mente vagasse, sentindo a onda de relaxamento que essa situação provocava. Nesse estado, os pensamentos parecem passar sem barreiras de um a outro, há uma combinação de ideias, imagens visuais e r uído do passado, do presente e do futuro. Os pensamentos se voltam para dentro, em um fluxo de consciência, tão semelhantes aos sonhos noturnos que dizemos que estamos sonhando acordados. Esse estado especial e distinto do cérebro está marcado pelo fluxo de conexões entre ideias e pensamentos díspares e uma ausência relativa de barreiras entre sentidos e conceitos. Pode levar também a uma grande criatividade e à solução de problemas que pareciam insolúveis. Sua descoberta — uma rede especial do cérebro que sustenta um modo de pensamento mais fluido e não linear — foi uma das maiores da neurociência nos últimos vinte anos. Essa rede exerce uma atração sobre a consciência; ela desloca o cérebro para um estado de devaneio quando você não está engajado em alguma tarefa, e sequestra sua consciência se a tarefa a que você está entregue se tornar monótona. Ela assumiu o controle quando você percebe ter lido várias páginas de um livro sem ter registrado seu conteúdo, ou quando percorre uma longa distância numa estrada e de repente se dá conta de que esteve tão distraído que perdeu a saída que devia pegar.1 Essa mesma parte assumiu o controle quando você percebeu que estava com as chaves na mão há um minuto, e agora não sabe onde elas estão. Onde está seu cérebro quando isso acontece? Prever ou planejar nosso futuro, imaginarmo-nos numa situação (especialmente uma situação social), sentir empatia, evocar memórias autobiográficas também envolvem essa rede de devaneio ou sonho acordado.2 Se você já chegou a parar algo que estava fazendo para imaginar a consequência de alguma ação futura, ou se imaginar em determinado encontro futuro, talvez tenha desviado seu olhar para cima ou para baixo, fugindo da direção normal do olhar para a frente, preocupado com o próprio pensamento: esse é o modo de sonhar acordado.3 A descoberta desse modo devaneio não ganhou grandes manchetes na imprensa popular, mas mudou a maneira como os neurocientistas pensam a atenção. Sonhar acordado e devanear, como sabemos agora, são um estado natural do cérebro. Isto explica por que nos sentimos tão descansados depois, e por que as férias e um cochilo podem ser tão restauradores. A tendência para que esse sistema assuma o controle é tão poderosa que seu descobridor, Marcus Raichle, batizou-a de default mode, ou seja, modo padrão.4 Esse é o modo de o cérebro descansar quando não está entregue a nenhuma tarefa objetiva, quando você está sentado na areia da praia, na sua espreguiçadeira, com um copo de uísque na mão, e sua mente devaneia e flui de um assunto para outro. Não é que você não consiga agarrar nenhum pensamento dentre o fluxo que passa, e sim que não há um único pensamento que exija a sua atenção. O modo devaneio contrasta de forma violenta com o estado em que ficamos ao nos concentrarmos intensamente em certo tipo de tarefa, como fazer o imposto de renda, escrever um relatório ou andar por uma cidade desconhecida.5 Esse modo de ater-se à tarefa é o outro modo dominante da atenção, responsável por tantas coisas de alto nível que fazemos, e que os pesquisadores batizaram de “executivo central”. Esses dois estados cerebrais formam uma espécie de yin-yang.6 Quando um está ativo, o outro não está. Durante tarefas exigentes, o executivo central assume o comando. Quanto mais se suprime a rede de devaneio, maior a precisão alcançada no desempenho da tarefa que se está realizando.7 A descoberta do modo devaneio também explica por que é preciso esforço para prestar atenção a algo. O termo prestar atenção é uma expressão figurada bem gasta, mas ainda assim há um significado útil no clichê. A atenção tem um custo. É um jogo de soma zero, de isso-ou-aquilo. Prestamos atenção a algo por meio de uma decisão consciente, ou porque nosso filtro de atenção a considera bastante importante para colocá-la no primeiro plano do foco de atenção.8 Quando prestamos atenção a uma coisa, retiramos necessariamente a atenção de outra coisa. Meu colega Vinod Menon descobriu que o modo devaneio é uma rede, porque não se localiza em nenhuma região específica do cérebro.9 De certa forma, ela amarra grupos distintos de neurônios distribuídos pelo cérebro para formar o equivalente a um circuito elétrico, ou rede. Pensar no funcionamento do cérebro em termos de redes é uma evolução profunda na recente neurociência. Há mais ou menos 25 anos, os campos da psicologia e da neurociência passaram por uma revolução. Até então, a psicologia usava principalmente métodos há décadas empregados para compreender o comportamento humano, através de coisas objetivas e observáveis, tais como aprender listas de palavras ou a habilidade de executar tarefas num estado de distração. A neurociência estudava sobretudo a comunicação entre células e a estrutura biológica do cérebro. Os psicólogos tinham dificuldade de estudar o material biológico, isto é, o hardware que deu origem ao pensamento. Os neurocientistas, empacados no nível dos neurônios individuais, tinham dificuldade de estudar os comportamentos de fato. A revolução se deu com a invenção das técnicas de neuroimagem não invasivas, um conjunto de ferramentas análogas ao raio X, que mostravam não apenas os contornos e a estrutura do cérebro, mas como partes dele se comportavam em tempo real durante pensamentos e comportamentos de fato — imagens do cérebro pensante, trabalhando. As tecnologias — tomografia por emissão de pósitrons, ressonância magnética funcional e magnetoencefalografia — são agora bem conhecidas pelas siglas PET, fMRI e MEG. A primeira leva de pesquisas se concentrou principalmente na localização das funções cerebrais, uma espécie de mapeamento neural. Qual parte do cérebro é ativada quando sacamos no tênis, ouvimos música ou fazemos cálculos matemáticos? Mais recentemente, o interesse se deslocou para a compreensão de como essas regiões funcionam juntas. Os neurocientistas concluíram que as operações mentais talvez nem sempre ocorram em determinada região do cérebro, mas sejam executadas por circuitos, redes de grupos de neurônios relacionados. Se alguém perguntasse “Onde fica armazenada a eletricidade que torna possível o funcionamento da sua geladeira?”, para onde você apontaria? A tomada? Na verdade, só passa corrente ali se outra tomada for plugada. E, depois que isso acontece, não se trata mais do lugar da eletricidade, e sim dos circuitos que alimentam todos os aparelhos da casa e que, em certo sentido, correm por toda a casa. Na verdade, não existe um único lugar onde fica a eletricidade. Trata-se de uma rede distribuída; não vai aparecer numa foto de celular. Do mesmo modo, os neurocientistas estão começando a considerar cada vez mais que a função mental é muitas vezes difusa. A aptidão para a linguagem não reside numa região específica do cérebro; em vez disso, ela encerra uma rede distribuída — como a fiação elétrica na sua casa — que utiliza e recorre a regiões no cérebro. O que levou os primeiros pesquisadores a pensar que a linguagem pudesse ser um fenômeno localizado foi a constatação de que danos a determinadas regiões do cérebro sempre provocavam a perda das funções da linguagem. Pense novamente nos circuitos elétricos de sua casa. Se o seu empreiteiro cortar acidentalmente um fio, você pode perder a eletricidade em todo um setor da casa, mas isso não quer dizer que a fonte da energia estava onde o fio foi cortado — significa simplesmente que uma linha necessária à transmissão foi rompida. Na verdade, há quase uma infinidade de lugares na sua casa em que o corte dos fios provocará a interrupção do serviço, inclusive na fonte, a caixa de disjuntores. De onde você está na cozinha, com um liquidificador que não bate sua vitamina, o efeito é o mesmo. Só começa a parecer diferente quando você se dispõe a consertá-lo. É assim que os neurocientistas consideram hoje o cérebro — um conjunto intricado de redes sobrepostas. O modo devaneio funciona em oposição ao modo executivo central. Quando um é ativado, o outro é desativado; se estamos num modo, não estamos no outro. A tarefa da rede executiva central é impedir que você se distraia quando está engajado numa tarefa, limitando o que entra na sua consciência para que você consiga se concentrar ininterruptamente no que está fazendo. E, mais uma vez, não importa se você está no modo devaneio ou no executivo central, seu filtro de atenção está quase sempre funcionando em silêncio e fora de vista, no seu subconsciente. Para nossos ancestrais, permanecer engajado na tarefa geralmente significava caçar um grande mamífero, fugir de um predador ou lutar. Um lapso de atenção durante essas atividades podia significar um desastre. Hoje, é mais provável que empreguemos o modo executivo central para escrever relatórios, interagir com pessoas e computadores, dirigir, navegar, resolver problemas na nossa cabeça ou realizar projetos artísticos pictóricos e musicais. Um lapso de atenção durante essas atividades não costuma ser um caso de vida ou morte, mas interfere na nossa eficácia quando tentamos realizar algo. No modo devaneio, nossos pensamentos são dirigidos principalmente para dentro, para nossos objetivos, desejos, sentimentos, planos, e também para nossos relacionamentos interpessoais — o modo devaneio está ativo quando as pessoas sentem empatia umas pelas outras. No modo executivo central, os pensamentos são dirigidos tanto para fora quanto para dentro. Há uma evidente vantagem evolutiva em ser capaz de se ater a uma tarefa e se concentrar nela, sem entrar, contudo, num estado irreversível de demasiada concentração, que nos faria esquecer o predador ou o inimigo oculto atrás da moita, ou a aranha venenosa a rastejar pelo nosso pescoço. É aí que entra a rede de atenção; o filtro de atenção monitora de forma constante o ambiente em busca de qualquer coisa que possa ser importante. Além dos modos devaneio e executivo central e do filtro de atenção, existe um quarto componente do sistema de atenção que nos permite passar do modo devaneio ao executivo central. Assim, podemos passar rapidamente de uma tarefa a outra, por exemplo, quando estamos conversando com um amigo numa festa e nossa atenção subitamente se dirige para uma outra conversa sobre um incêndio na cozinha. É uma mesa telefônica neural que dirige sua atenção para o mosquito na testa e lhe permite voltar para seu devaneio de depois do almoço. Num estudo de 2010, Vinod Menon e eu mostramos que a troca é controlada numa parte do cérebro chamado ínsula, uma importante estrutura situada cerca de três centímetros abaixo de onde se unem os lobos temporais e frontais.10 A troca entre dois objetos externos envolve a junção temporalparietal.11 A ínsula possui conexões bidirecionais com uma parte importante do cérebro chamada córtex cingulado anterior. Ponha o dedo na parte de cima da cabeça, logo acima de onde você acha que fica a parte de trás do nariz. Cerca de cinco centímetros mais atrás, e cinco centímetros mais embaixo, fica o córtex cingulado anterior. Na ilustração a seguir, vemos onde ele se situa em relação a outras estruturas cerebrais. A relação entre o sistema executivo central e o sistema devaneio é como uma gangorra, e a ínsula — o comutador da atenção — é como um adulto que força uma das extremidades para baixo para que a outra fique em cima.12 A eficácia da rede ínsulacórtex cingulado anterior varia de pessoa para pessoa, funcionando em algumas como um interruptor bem lubrificado e em outras como um velho portão enferrujado. Mas ela é de fato acionada, e, quando exigida em demasia e com muita frequência, nos sentimos cansados e meio tontos, como se estivéssemos subindo e descendo na gangorra depressa demais. Repare que o córtex cingulado anterior se estende desde o córtex orbital e préfrontal na frente (à esquerda do desenho) até a região motora suplementar em cima. Sua proximidade dessas regiões é interessante porque as áreas orbital e pré-frontal são responsáveis por coisas como planejamento, esquematização e controle dos impulsos, enquanto a área motora suplementar é responsável por iniciar o movimento. Em outras palavras, as partes do cérebro que nos lembram do relatório que devemos entregar e fazem nossos dedos se moverem no teclado para digitar estão biologicamente ligadas às partes do cérebro que nos mantêm concentrados numa tarefa, que nos ajudam a ficar colados na cadeira e terminar o relatório. Esse sistema humano de atenção de quatro circuitos evoluiu no decorrer de dezenas de milhares de anos — redes cerebrais distintas que se tornam mais ou menos ativas dependendo da situação —, e agora está no âmago de nossa habilidade de organizar a informação. Vemos isso todos os dias. Você está sentado à sua mesa e há uma cacofonia sonora e inúmeras distrações visuais à sua volta: o ventilador da unidade de ventilação, o zunido das lâmpadas fluorescentes, o tráfego na rua, os raios de sol ocasionais refletidos num para-brisa lá fora que atingem seu rosto. Depois que você se acomodou, pode parar de reparar nessas coisas e se concentrar na sua tarefa. No entanto, quinze ou vinte minutos depois, você se acha devaneando: será que me lembrei de trancar a porta da frente quando saí de casa? Será que preciso lembrar fulano do nosso almoço de hoje? Será que este projeto no qual estou trabalhando exatamente agora vai ficar pronto a tempo? A maioria das pessoas tem diálogos internos como esse de forma incessante. Isso pode levá-lo a imaginar quem está fazendo as perguntas dentro da sua cabeça, e — o mais intrigante — quem está respondendo. Não existem vários vocês em miniatura dentro da sua cabeça, é claro. Seu cérebro, no entanto, é um conjunto de unidades de processamento semidistintas e especializadas. O diálogo interno é gerado pelos centros de planejamento no córtex pré-frontal, e as perguntas estão sendo respondidas por outras partes do cérebro que possuem a informação. Portanto, redes distintas no cérebro podem abrigar pensamentos completamente diferentes e possuir agendas completamente diferentes. Uma parte do cérebro se preocupa em satisfazer a fome imediata, outra, em planejar e se ater a uma dieta; uma parte presta atenção à estrada enquanto você dirige, outra está cantarolando com o rádio. A rede de atenção precisa monitorar todas essas atividades e alocar recursos para algumas e não para outras. Se isso lhe parecer fantástico, talvez seja mais fácil visualizá-lo se você se der conta de que o cérebro já faz isso o tempo todo com o intuito de manter a ordem em nível celular. Por exemplo, quando você começa a correr, uma parte do cérebro “pergunta”: “Será que as pernas estão sendo alimentadas com oxigênio suficiente para sustentar essa atividade?”, enquanto outra parte, a reboque dessa, manda uma ordem para acelerar a respiração de modo a aumentar a oxigenação do sangue. Uma terceira parte, que monitora a atividade, verifica se a aceleração respiratória foi cumprida segundo as instruções, e relata se não foi. Na maioria das vezes, essas trocas ocorrem abaixo do nível da consciência, isto é, não percebemos o diálogo nem o mecanismo de reação aos sinais. Mas os neurocientistas estão gradativamente acolhendo o fato de que a consciência não é um estado de tudo ou nada, mas um contínuo de diferentes estados. Falamos de maneira coloquial que isto ou aquilo acontece na mente subconsciente como se fosse uma parte geograficamente distinta do cérebro, algum lugar nas suas profundezas, um porão mofado e mal iluminado. A descrição neural mais exata sugere que os neurônios ficam disparando como se fossem uma rede de telefones tocando simultaneamente num escritório muito ocupado. Quando uma rede neural é bastante ativada em relação a outra atividade neural em curso, ela irrompe no processo de atenção, ou seja, é capturada por nossa mente consciente, nosso executivo central, e então nos damos conta dela. Muitos de nós têm uma visão popular da consciência que, embora não seja verdadeira, é instigante, por causa da sensação ligada a ela — sentimos como se existisse uma versão menor de nós mesmos dentro de nossas cabeças dizendo-nos o que está acontecendo no mundo e lembrando-nos de jogar o lixo fora às segundas-feiras. Há uma versão mais elaborada desse mito que corre assim: existe uma miniatura de nós mesmos dentro de nossas cabeças, sentada numa poltrona confortável, olhando para múltiplas telas de televisão. Projetados nas telas estão os conteúdos de nossa consciência — o mundo externo que ouvimos e vemos, suas sensações táteis, seus cheiros e sabores —, e as telas também comunicam nossos estados mentais e corporais: estou com fome, estou com calor, estou cansado. Sentimos que existe um narrador interno de nossas vidas na nossa cabeça mostrando-nos o que se passa no mundo externo, dizendo-nos o que tudo isso significa e integrando essa informação com as notícias de dentro do nosso corpo, sobre nossos estados emocionais internos e físicos. O problema desse relato é que ele leva a uma regressão infinita. Existe uma miniatura sua sentada num teatro dentro de sua cabeça? Essa miniatura de você possui pequenos olhos e ouvidos para assistir a imagens e ouvir telas de TV? E um pequeno cérebro próprio? E, se assim for, existe outra pessoa em miniatura dentro do cérebro dessa pessoa em miniatura? O ciclo jamais se interrompe (Daniel Dennett mostrou que essa explicação era impossível, tanto em termos lógicos quanto neuronais, em Consciousness Explained [A consciência explicada]).13 A seu modo, a realidade é mais maravilhosa. Inúmeras moléculas especializadas estão funcionando no seu cérebro, tentando organizar e dar sentido à experiência. A maioria opera nos bastidores. Quando essa atividade neural atinge um certo limiar, você se torna consciente dela, e chamamos isso de consciência. A consciência não é uma coisa em si mesma, e não é localizável no cérebro; é simplesmente o nome que damos a ideias e percepções que penetram na consciência de nosso executivo central, um sistema de capacidade muito limitada, que geralmente só consegue tratar de no máximo cinco coisas ao mesmo tempo.14 Recapitulando, existem quatro componentes no sistema de atenção humana: o modo devaneio, o modo executivo central, o filtro de atenção e o comutador de atenção, que dirige os recursos neuronais e metabólicos entre os modos devaneio, executivo central e de vigilância.15 O sistema é tão eficaz que raramente sabemos o que estamos excluindo pela filtragem. Em muitos casos, o comutador de atenção funciona nos bastidores de nossa consciência, nos transportando do modo devaneio para o executivo central, enquanto o filtro de atenção acompanha — não percebemos o que está em funcionamento até já estarmos em outro modo. Há exceções, é claro. Podemos usar a vontade para trocar de modos, do mesmo jeito que tiramos os olhos daquilo que estamos lendo para refletir sobre o que foi escrito. Mas a troca permanece sutil: você não diz “estou trocando de modo agora”; você (ou sua ínsula) simplesmente faz isso. A neuroquímica da atenção Durante os últimos vinte anos, a neurociência também revelou muita coisa sobre como funciona o ato de prestar atenção. A rede devaneio recruta neurônios dentro do córtex pré-frontal (bem atrás da testa e dos olhos) e também no cingulado (uns cinco centímetros mais atrás), ligando-os ao hipocampo, o centro da consolidação da memória.16 Faz isso através da atividade de neurônios de noradrenalina no locus coeruleus, uma pequena estrutura perto do tronco cerebral, bem dentro do crânio, que evoluiu para formar uma massa densa de fibras conectadas ao córtex pré-frontal.17 A despeito da semelhança dos nomes, noradrenalina e adrenalina não são a mesma substância química; a noradrenalina é quimicamente mais parecida com a dopamina, a partir da qual é sintetizada no cérebro. Para permanecer no modo devaneio, é preciso manter um equilíbrio exato entre o neurotransmissor excitatório glutamato e o neurotransmissor inibitório GABA (ácido gama-aminobutírico).18 Sabemos que a dopamina e a serotonina são componentes dessa rede cerebral, mas suas interações são complexas e ainda não foram totalmente compreendidas. Há novas e tentadoras evidências de que uma variação genética específica (de um gene chamado COMT) provoca uma alteração no equilíbrio da serotonina, e essa alteração é associada tanto às mudanças de humor quanto à reação positiva aos antidepressivos.19 Descobriu-se que o gene SLC6A4, que transporta a serotonina, tem relação com o comportamento artístico e a espiritualidade, além de uma aparente predileção pelo modo devaneio.20 Assim, parece haver uma ligação entre a genética, os neurotransmissores e o pensamento artístico/espiritual. (A dopamina não é mais importante do que o glutamato, o GABA e muitas outras substâncias químicas; sabemos mais sobre ela apenas porque ela é mais fácil de ser estudada. Dentro de vinte anos teremos uma compreensão muito mais nuançada dela e de outras substâncias químicas.) A rede executiva central recruta neurônios em diversas partes do córtex préfrontal e do cingulado, bem como nos gânglios basais, que ficam no centro do cérebro — essa rede executiva não se localiza exclusivamente no córtex pré-frontal, como tendem a afirmar relatos populares.21 Sua atuação química inclui a modulação dos níveis de dopamina nos lobos frontais. A atenção sustentada também depende da noradrenalina e da acetilcolina, especialmente em ambientes cheios de distrações — esta é a química subjacente à concentração necessária para que foquemos algo.22 E enquanto focamos a atenção na tarefa que estamos realizando, a acetilcolina no córtex pré-frontal direito ajuda a melhorar a qualidade do funcionamento do filtro de atenção.23 A densidade da acetilcolina no cérebro se altera rapidamente — em fração de segundo —, e sua liberação está ligada à detecção de algo que se procura.24 A acetilcolina também desempenha um papel no sono: atinge o pico durante o sono REM, e ajuda a impedir que a entrada de estímulos externos perturbe nossos sonhos.25 Nos últimos anos, aprendemos que a acetilcolina e a noradrenalina parecem se integrar nos circuitos cerebrais via heterorreceptores — receptores químicos dentro do neurônio capazes de aceitar mais de um tipo de gatilho (à diferença dos autorreceptores mais típicos, que funcionam como chave e fechadura, permitindo apenas um neurotransmissor específico dentro da sinapse).26 Através desse mecanismo, a acetilcolina e a noradrenalina podem influenciar sua liberação mútua. O filtro de atenção abrange uma rede nos lobos frontais e córtex sensoriais (córtex auditivo e visual). Quando procuramos algo, o filtro pode ressintonizar os neurônios para que se adaptem àquilo que procuramos, como as listras brancas e vermelhas de Wally, ou o tamanho e o formato das chaves do carro. Isso permite que a procura seja rápida, e que coisas irrelevantes sejam filtradas. Mas, por causa do ruído neural, esse mecanismo nem sempre funciona à perfeição — às vezes olhamos para o que estamos procurando, bem diante dos nossos olhos, sem reconhecê-la. O filtro de atenção (ou a rede Onde está Wally?) é em parte controlado por neurônios com receptores nicotínicos localizados na região do cérebro chamada substância inominada. Os receptores nicotínicos são assim chamados porque reagem à nicotina, fumada ou mascada, e estão espalhados pelo cérebro. Apesar de todos os problemas que a nicotina pode causar à saúde de modo geral, é comprovado que ela pode melhorar o nível da detecção de sinais quando uma pessoa foi instruída de forma incorreta — isto é, a nicotina cria um estado de vigilância que permite que nos tornemos mais sensíveis aos detalhes, e menos dependentes de expectativas criadas de cima para baixo.27 O filtro de atenção também se comunica intimamente com a ínsula, de modo a ativar o comutador ali presente para nos tirar do modo devaneio e nos botar no modo executivo central quando necessário. Além disso, é fortemente ligado ao cingulado, facilitando o acesso rápido ao sistema motor para provocar uma reação comportamental adequada — como se esquivar quando algum objeto perigoso vem em nossa direção.28 Como já vimos, o filtro de atenção incorpora um sistema de alerta que permite a irrupção de sinais importantes, capazes de alterar sua vida, nos modos devaneio e 29 focado. Se você está dirigindo e de repente começa a devanear, esse é o sistema que funciona de estalo quando um grande caminhão surge do nada na sua pista, injetando adrenalina em seu sangue. O sistema de alerta é governado pela noradrenalina nos lobos frontais e parietais. Drogas como a guanfacina (nomes comerciais: Tenex e Intuniv) e a clonidina, receitadas em casos de hipertensão, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e transtornos de ansiedade, são capazes de bloquear a liberação de noradrenalina, bloqueando por sua vez o alerta aos sinais de aviso.30 Se você for operador de sonar num submarino, ou um guarda florestal vigiando indícios de incêndio, vai querer que seu sistema de alerta funcione ao máximo. Mas se sofre de um transtorno que o faz ouvir barulhos inexistentes, vai querer atenuar o sistema de alerta, e a guanfacina é capaz disso. O comutador de atenção que Vinod Menon e eu localizamos na ínsula ajuda a desviar o holofote da atenção de uma coisa para outra, e é governado pela noradrenalina e o cortisol (hormônio do estresse).31 Altos níveis de dopamina ali, e nos tecidos em volta, parecem realçar o funcionamento da rede devaneio.32 O locus coeruleus e o sistema noradrenalínico também modulam esses estados comportamentais. O sistema noradrenalínico é evolucionariamente muito antigo, e pode ser encontrado até nos crustáceos, nos quais, a crer em determinados pesquisadores, desempenha um papel semelhante.33 De onde vem a memória Pela maneira como os neurocientistas falam desses sistemas de atenção, seria de imaginar que se trata de modos que afetam o cérebro inteiro, no estilo tudo ou nada: ou você está no modo executivo central ou oscilando para o modo devaneio. Está desperto ou adormecido. Afinal, nós sabemos quando estamos acordados, não é? Quando adormecidos, ficamos totalmente desligados, e só depois de acordar é que percebemos que estivemos dormindo. Mas não é assim que funciona. Em absoluto contraste com essa falsa ideia, os neurocientistas descobriram recentemente que partes de nosso cérebro podem adormecer por alguns momentos, ou até por mais tempo, sem que o percebamos. Em qualquer momento dado, alguns circuitos do cérebro podem estar desligados, cochilando, recuperando energia, e, desde que não sejam requisitados, não o notamos. Isso se aplica do mesmo modo aos quatro estados do sistema de atenção — qualquer um, ou todos, pode estar funcionando parcialmente. É provável que seja esta a causa de muitas coisas serem postas no lugar errado ou perdidas: a parte do cérebro que deveria estar atenta a onde as pusemos está dormindo ou distraída com alguma outra coisa. Isso acontece quando não notamos algo que estamos procurando ou olhamos bem para ele sem notá-lo; acontece quando devaneamos, e é preciso um susto para voltarmos ao estado alerta. Assim, perdemos muitas coisas quando não prestamos atenção ao instante em que as largamos. O remédio é treinar a atenção e esvaziar a mente, treinar o foco em viver o momento presente, como na filosofia zen, prestar atenção quando largamos ou guardamos alguma coisa. Esse pequeno foco representa um bom avanço em treinar o cérebro (especificamente o hipocampo) para lembrar onde deixamos algo, porque assim estaremos pedindo ajuda ao executivo central para codificar o momento. Ter sistemas como ganchos para chaves, suportes para celulares e um gancho ou gaveta especial para os óculos escuros exterioriza o esforço, fazendo com que não precisemos guardar tudo na cabeça. Exteriorizar a memória é uma ideia que remonta aos gregos, cuja eficácia já foi confirmada muitas vezes pela neurociência contemporânea. O grau em que já o fazemos é espantoso, se pararmos para pensar nisso. Como comentou Dan Wegner, o psicólogo, professor em Harvard, “nossas paredes estão forradas de livros, nossos armários, de documentos, nossos notebooks, de anotações, nossas casas, de artefatos e suvenires”.34 Não é coincidência que suvenir derive de souvenir, a palavra francesa para “lembrar”. Nossos computadores estão cheios de registros de dados, calendários de compromissos e aniversários, e os estudantes rabiscam respostas de provas nas mãos.35 Um ponto de vista corrente entre alguns teóricos da memória é que grande parte do que você já viveu de modo consciente na vida está registrada em código no cérebro — muito do que você já viu, ouviu, cheirou, pensou, todas aquelas conversas, passeios de bicicleta e refeições estão ali em algum lugar, desde que você preste atenção neles. Se está tudo ali, por que esquecemos? Como descreveu de modo um tanto eloquente Patrick Jane, do seriado de TV The Mentalist, “não se pode confiar na memória porque o sistema de arquivamento do cérebro destreinado é uma porcaria. Ele pega tudo que acontece com você e joga de qualquer jeito num grande armário escuro — quando você entra lá procurando algo, só consegue achar as coisas grandes e óbvias, como a morte de sua mãe, ou então coisas de que realmente não precisa. Coisas que você não está procurando, como a letra de ‘Copacabana’. Você não consegue encontrar o que precisa. Mas não entre em pânico, porque ainda está lá”.36 Como é possível? Quando passamos por qualquer acontecimento, uma rede singular de neurônios é ativada de acordo com a natureza do acontecimento. Está contemplando o pôr do sol? Os centros visuais que representam luz e sombra, rosa, laranja e amarelo são ativados. O mesmo pôr do sol meia hora antes ou depois parece diferente, e assim evoca neurônios diferentes para representá-lo. Está assistindo a um jogo de tênis? Neurônios disparam a fim de fazer o reconhecimento facial dos jogadores, de detectar o movimento de seus corpos, da bola, das raquetes, enquanto centros cognitivos mais elevados rastreiam os jogadores para verificar se eles se ativeram às regras e como está o placar. Cada um de nossos pensamentos, percepções e experiências possui um único correlato neural — se não fosse assim, perceberíamos os acontecimentos como idênticos; é a diferença de ativações neuronais que nos permite distinguir os eventos entre si. O ato de recordar algo é um processo de reativar esses neurônios envolvidos na experiência original. Os neurônios representam o mundo para nós enquanto o acontecimento está ocorrendo, e, quando o recordamos, esses mesmos neurônios o reapresentam para nós. Na medida em que conseguimos ativar esses neurônios de modo semelhante a como foram ativados durante o acontecimento original, experimentamos a memória como um replay de resolução mais baixa do acontecimento original. Se pudéssemos ativar cada um dos neurônios originais exatamente como foram ativados da primeira vez, nossas recordações seriam extremamente vívidas e realistas. Mas o processo de recordar é imperfeito; as instruções de como agrupar os neurônios e da maneira exata como devem ser disparados estão corrompidas, levando a uma representação que não passa de uma pálida e muitas vezes inexata cópia da experiência real. A memória é ficção. Pode se apresentar a nós como factual, mas é altamente suscetível à distorção. A memória não é apenas um replay, e sim uma reescrita. Acresce a essa dificuldade o fato de que muitas de nossas experiências compartilham semelhanças entre si, e, por isso, quando procuramos recriá-las na memória, o cérebro pode ser enganado por itens que rivalizam uns com os outros. Portanto, nossa memória tende a ser fraca na maior parte do tempo, não pela capacidade limitada de nosso cérebro para armazenar informação, e sim pela natureza da recuperação feita pela memória, que pode ser facilmente distraída ou confundida por outros itens semelhantes. Há ainda o problema de que as recordações podem se alterar.37 Quando recuperadas, elas estão num estado lábil ou vulnerável, e precisam ser adequadamente reconsolidadas. Se você está compartilhando uma recordação com uma amiga e ela diz “não, o carro era verde, e não azul”, essa informação é transplantada para a recordação. As recordações no estado lábil também podem sumir se algo interfere na sua reconsolidação, como falta de sono, distração, trauma ou mudanças neuroquímicas no cérebro. Talvez o maior problema da memória humana seja que nem sempre sabemos que estamos recordando as coisas de modo inexato. Temos muitas vezes uma forte sensação de certeza ao recordar algo de forma incorreta e distorcida. Essa certeza falha é ampla, e difícil de extinguir. A relevância desse fato para os sistemas organizativos é a seguinte: quanto mais exteriorizamos a memória através de registros físicos presentes no mundo, menos precisamos depender da nossa memória imprecisa e demasiadamente autoconfiante. Existe algum motivo ou dispositivo que explique quais experiências poderemos recordar com exatidão e quais não? As duas regras mais importantes dizem que as experiências mais fáceis de recordar são as especiais/singulares, ou as que possuem um forte componente emocional. Acontecimentos ou experiências fora do normal tendem a ser lembrados com mais facilidade porque nada compete com eles quando o cérebro procura acessá-los no seu armazém de recordações. Em outras palavras, o motivo da dificuldade em recordar o que você comeu no café da manhã duas quintas-feiras atrás é que provavelmente não havia nada de especial naquela quinta-feira nem naquele determinado café da manhã — e, em consequência, todas as suas recordações dos cafés da manhã se fundem numa espécie de impressão genérica do café da manhã. Sua memória funde acontecimentos semelhantes não só porque esse é o procedimento mais eficiente, mas também porque se trata de algo fundamental para a maneira como aprendemos — nossos cérebros extraem regras abstratas que unem as experiências. Isso é especialmente verdade para coisas que constituem uma rotina. Se seu café da manhã é sempre o mesmo — leite e cereal, um copo de suco de laranja e uma xícara de café, por exemplo —, não existe uma maneira fácil de seu cérebro extrair detalhes de um determinado café da manhã. Então, ironicamente, em se tratando de comportamentos rotineiros, você é capaz de recordar o conteúdo genérico do comportamento (tal como o que comeu, já que sempre come o mesmo), mas neste caso terá muita dificuldade em evocar particularidades (como o ruído de um caminhão de lixo passando, ou um pássaro que passou pela janela), exceto se elas forem especialmente diferentes ou emocionais. Por outro lado, se você fez algo singular que quebrou a rotina — talvez tenha comido a sobra da pizza no café da manhã e derramado suco de tomate na camisa —, é mais provável que recorde. Um princípio-chave, então, é que a recuperação feita pela memória exige que o cérebro esquadrinhe múltiplas instâncias competitivas para escolher apenas as que estamos procurando recordar. No caso de haver acontecimentos semelhantes, ela recupera muitos ou todos eles, e geralmente cria uma espécie de combinação, de mistura genérica, sem que saibamos disso conscientemente. É por isso que é difícil lembrar onde deixamos os óculos e as chaves do carro — já os deixamos em tantos lugares diferentes no decorrer dos anos que todas essas memórias passam juntas, e o cérebro tem dificuldade em achar a que é relevante. Por outro lado, se não houver acontecimentos semelhantes, aquele que é singular pode ser facilmente distinguido, e somos capazes de recordá-lo. Isso na proporção direta do caráter distinto do acontecimento. Comer pizza no café da manhã pode ser relativamente incomum; sair para tomar café da manhã com o patrão é mais incomum. Ter o café da manhã servido na cama, no seu aniversário de 21 anos, por uma nova namorada, pelada, é mais incomum ainda. Outras ocorrências incomuns que as pessoas conseguem recordar com facilidade incluem fatos do ciclo vital, como o nascimento do primeiro filho, o casamento ou a morte de um ente querido. Na qualidade de observador de pássaros amador, lembro exatamente onde estava quando vi pela primeira vez um pica- pau da espécie Dryocopus pileatus, muito comum nos Estados Unidos, e lembro detalhadamente o que estava fazendo minutos antes e depois de tê-lo visto. Do mesmo modo, muita gente lembra a primeira vez que viu gêmeos idênticos, montou a cavalo ou enfrentou uma tempestade. Em termos da evolução, faz sentido recordarmos acontecimentos especiais e característicos, porque eles representam uma mudança em potencial do mundo a nossa volta, ou uma mudança na compreensão que temos dele — precisamos registrar esses acontecimentos para maximizar nossas chances de êxito num ambiente mutável. O segundo princípio da memória é relativo às emoções. Se algo nos amedronta extremamente, nos provoca entusiasmo, nos entristece ou nos provoca raiva — quatro das emoções humanas primárias —, é mais provável que o recordemos. Isso porque o cérebro cria marcadores ou etiquetas neuroquímicas que acompanham a experiência e a fazem ser rotulada como importante. É como se o cérebro passasse um marcador amarelo no texto que representa nosso dia, destacando seletivamente os trechos importantes das experiências cotidianas. Isso faz sentido em termos da evolução — os acontecimentos emocionalmente importantes são provavelmente os que precisamos lembrar para sobreviver, coisas como o rosnado de um predador, a localização de uma nova fonte de água potável, o cheiro de comida estragada, o amigo que quebrou uma promessa. Essas etiquetas químicas ligadas a ocorrências emocionais são o motivo de nos lembrarmos tão prontamente de acontecimentos nacionais importantes como o assassinato do presidente Kennedy, a explosão do ônibus espacial do Challenger, os ataques do Onze de Setembro, a eleição e a posse do presidente Obama. Esses foram momentos emocionais para a maioria de nós, imediatamente etiquetados através de componentes químicos cerebrais que, ao lhes atribuir certo status neural, facilitam o acesso a eles e sua recuperação. E essas etiquetas neuroquímicas funcionam tanto para essas lembranças pessoais quanto para as nacionais. Talvez você não se lembre da última vez que lavou suas roupas, mas provavelmente se lembra de quem beijou pela primeira vez e do exato lugar onde isso aconteceu. E ainda que alguns detalhes sejam nebulosos, é provável que você se lembre das emoções associadas a essa memória. Infelizmente, a existência de etiquetas emocionais semelhantes, embora garantam a facilidade e a rapidez da recuperação da memória, não garantem que essa recuperação seja mais exata. Eis um exemplo. Se você for como a maioria dos americanos, recordará exatamente onde estava assim que soube que as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, haviam sido atacadas em 11 de setembro de 2001. Provavelmente se lembra do cômodo onde estava, mais ou menos da hora (manhã, tarde, noite), e talvez até de quem estava com você, ou das pessoas com quem falou naquele dia. Você também deve se lembrar de ter assistido na televisão às imagens terríveis de um avião colidindo com a primeira torre (a Torre Norte), e então, uns vinte minutos depois, a imagem do segundo avião colidindo com a segunda torre (a Torre Sul). Na verdade, segundo uma pesquisa recente, 80% dos americanos compartilham essa recordação. Mas acontece que essa memória é totalmente falsa. A rede de televisão mostrou o vídeo em tempo real da colisão contra a Torre Sul em 11 de setembro, mas o vídeo da colisão contra a Torre Norte só se tornou disponível e passou na televisão no dia seguinte, 12 de setembro. Milhões de americanos viram os vídeos fora de sequência, assistindo ao vídeo do impacto contra a Torre Sul 24 horas antes do vídeo do impacto contra a Torre Norte. Mas o relato que nos contaram e que sabemos ser verdade, de que a Torre Norte foi atingida cerca de vinte minutos antes da Torre Sul, fez com que nossa memória costurasse os acontecimentos na ordem em que ocorreram, e não conforme a experiência que tivemos deles. Isso provocou uma falsa recordação tão forte que até mesmo o presidente George W. Bush recordou equivocadamente ter visto a Torre Norte ser atingida em 11 de setembro, embora os arquivos de televisão provem a impossibilidade disso.38 Como demonstração da falibilidade da memória, experimente fazer o seguinte exercício. Primeiro, pegue um lápis ou uma caneta e um pedaço de papel. Depois, leia as palavras da lista a seguir. Leia cada uma em voz alta à velocidade de uma palavra por segundo. Isto é, não leia com a rapidez de que você é capaz, mas com calma, focando cada palavra enquanto a lê. DESCANSO COCHILO CANSADO SÃO ACORDADO CONFORTO SONHO TRAVESSEIRO RONCO DESPERTAR CAMA NOITE COMER Agora, sem voltar a vê-las, escreva aqui todas as que for capaz de lembrar, em seguida vire a página. Não tem problema, você pode escrever aqui mesmo. Este é um livro científico e você está fazendo um registro empírico. (Se estiver lendo a versão em ebook, empregue a função anotar. Se for o livro de uma biblioteca, bem, use uma folha de papel separada.) Você escreveu descanso? Noite? Aardvark? Sono? Se for parecido com a maioria das pessoas, lembrou algumas palavras. Oitenta e cinco por cento das pessoas escrevem descanso. Descanso foi a primeira palavra que você viu, e isso é coerente com o efeito da primazia da memória: tendemos a recordar melhor o primeiro item de uma lista. Setenta por cento das pessoas lembra a palavra noite. Foi a última palavra que você viu, e isso é coerente com o efeito de recência: tendemos a recordar os últimos itens de uma lista, mas não tão bem quanto o primeiro.39 Quanto a essas listas de itens, os cientistas elaboraram uma curva de posição serial, um gráfico mostrando a probabilidade de um item ser lembrado de acordo com sua posição na lista. Com certeza, você não escreveu aardvark, porque não constava da lista — os pesquisadores sempre incluem perguntas assim para ter certeza de que seus pesquisados estão prestando atenção. Cerca de 60% das pessoas testadas escreveram sono. Mas, se você voltar atrás agora e verificar, verá que sono não estava na lista! Você teve uma falsa recordação, e, se for como a maioria das pessoas, escreveu sono com a certeza de ter visto a palavra. Como isso aconteceu? Trata-se das redes associativas descritas na Introdução — a ideia de que se você pensar em vermelho, isso pode ativar outras recordações (ou nódulos conceituais) por intermédio de um processo chamado propagação de ativação [spreading activation]. É esse mesmo princípio que funciona aqui: ao apresentar algumas palavras relacionadas à ideia de sono, a palavra sono é ativada no cérebro. Na verdade, trata-se de uma falsa recordação, uma recordação de algo que de fato não houve. As implicações disso são de longo alcance. Advogados habilidosos podem usá-las, assim como princípios semelhantes, para dar vantagem a seus clientes, implantando ideias e memórias na mente de testemunhas e até de juízes. Mudar uma única palavra de uma frase pode fazer com que testemunhas recordem falsamente ter visto vidro quebrado numa imagem. A psicóloga Elizabeth Loftus mostrou aos participantes de uma experiência vídeos de acidentes de carro leves. Mais tarde, perguntou a metade deles: “Qual a velocidade dos carros quando bateram?” e, à outra metade, “qual a velocidade dos carros quando eles se despedaçaram?”. Houve uma diferença dramática das estimativas, dependendo daquela única palavra (se despedaçaram em contraposição a bateram). Ela, então, chamou os participantes de volta uma semana depois e perguntou. “Havia vidro quebrado na cena?” (não havia vidro quebrado no vídeo). As pessoas tinham duas vezes mais tendência a responder que sim se, uma semana antes, lhes tivesse sido perguntado sobre os carros que se despedaçaram.40 Para piorar as coisas, o ato de recuperar uma memória a joga num estado de labilidade que possibilita a introdução de novas distorções;41 então, quando a memória volta a ser armazenada, a informação incorreta fica gravada nela como se estivesse ali o tempo todo. Por exemplo, se você recorda uma memória feliz quando está se sentindo triste, seu ânimo na hora da recuperação pode colorir a memória a ponto de ela ser recodificada como ligeiramente triste no momento em que você volta a guardá-la no seu armazém de memórias. O psiquiatra Bruce Perry, da Feinberg School of Medicine, resume assim: “Hoje sabemos que, do mesmo modo que ao abrir um arquivo do Word, quando recuperamos uma memória no cérebro ela é aberta automaticamente no modo de ‘edição’. Talvez você não se dê conta de que seu ânimo atual e seu ambiente possam influenciar o matiz emocional de sua recuperação, a interpretação dos fatos e até mesmo sua crença no que de fato ocorreu. Assim, quando você torna a ‘salvar’ a memória e volta a armazená-la, pode modificá-la inadvertidamente [...] [isso] pode distorcer aquilo que você vai recordar da próxima vez que abrir esse ‘arquivo’”.42 No decorrer do tempo, mudanças adicionais podem levar à criação de memórias de eventos que nunca aconteceram. Tirando o fato de que as memórias podem ser distorcidas e sobrescritas com tanta facilidade — uma questão problemática e potencialmente desagradável —, o cérebro organiza ocorrências passadas de modo engenhoso, com múltiplos pontos de acesso e múltiplas deixas em relação a qualquer memória específica. E se os teóricos mais audazes tiverem razão, tudo por que você já passou está “lá” em algum canto, à espera de ser acessado. Então por que não somos soterrados pela memória? Por que, toda vez que você pensa em batatas fritas, não surgem automaticamente no seu cérebro imagens de todas as vezes que você comeu batatas fritas? Porque o cérebro organiza recordações semelhantes em pacotes de categorias. Por que categorias importam Eleanor Rosch demonstrou que categorizar é um ato de economia cognitiva. Tratamos as coisas como sendo do mesmo tipo para não termos de desperdiçar valiosos ciclos de processamento neuronal com detalhes irrelevantes para o nosso objetivo. Quando olhamos a praia, não vemos grãos de areia individuais, mas um coletivo, e um grão de areia é agrupado com todos os demais. Isso não significa que somos incapazes de perceber diferenças entre grãos individuais, apenas que, visando à máxima praticidade, o cérebro agrupa automaticamente objetos semelhantes. Do mesmo modo, percebemos uma tigela de ervilhas como contendo um agregado de alimentos, como ervilhas. Como disse antes, consideramos as ervilhas praticamente substituíveis — funcionalmente equivalentes porque servem ao mesmo propósito. Uma parte da economia cognitiva consiste em não sermos afogados por todos os termos possíveis que poderíamos usar para nos referir aos objetos do mundo — existe um termo típico e natural que usamos com mais frequência.43 Esse é o termo que se adequa à maioria das situações. Dizemos que um ruído vindo da esquina é de um carro, não de um Pontiac GTO 1970. Falamos do pássaro que fez um ninho na caixa de correio, e não do pipilo-de-barriga-vermelha. Rosch chamou isso de categoria de nível básico. O nível básico é o primeiro termo que os bebês e crianças aprendem, e o primeiro que costumamos aprender numa língua estrangeira. Há exceções, claro. Ao entrar numa loja de móveis, você pode perguntar ao vendedor onde ficam as cadeiras. Mas se entrar numa loja chamada Só Cadeiras e fizer a mesma pergunta, será estranho; nesse contexto, você afunilaria a pergunta até um nível subordinado ao nível básico, e perguntaria onde ficam as cadeiras de escritório, ou as cadeiras de mesa de jantar. À medida que nos especializamos ou adquirimos conhecimentos avançados, tendemos a adotar o nível subordinado na linguagem cotidiana. Um vendedor da Só Cadeiras não vai ligar para o estoque perguntando se eles têm poltronas especiais; perguntará sobre a réplica de mogno da poltrona Queen Anne amarela com o encosto em botonê. Um observador de pássaros mandará uma mensagem para outros observadores dizendo que um pipilo-de-barriga-vermelha está guardando um ninho na sua caixa de correio. Assim, nosso conhecimento conduz nossa formação de categorias e a estrutura que elas adquirem no cérebro. A economia cognitiva ordena que categorizemos as coisas de tal maneira que não sejamos esmagados por detalhes, que, para todos os efeitos, não importam. Obviamente existem determinadas coisas cujos detalhes queremos saber de imediato, mas não precisamos de todos os detalhes o tempo todo. Se você estiver catando feijão-preto, tentando separar os grãos ruins, os verá sob o aspecto individual, não como equivalentes em termos funcionais. A habilidade de transitar entre esses modos de focar, de trocar as lentes do coletivo para o individual, é uma característica do sistema de atenção dos mamíferos, e põe em destaque a natureza hierárquica do executivo central. Embora os pesquisadores tendam a tratar o executivo central como uma entidade unitária, na verdade ele pode ser mais bem compreendido como uma porção de lentes diversas que nos permitem dar zoom e desfazer o zoom durante as atividades em que estamos engajados, para focar o que for mais relevante no momento. Uma pintora precisa perceber a pincelada individual ou o ponto que está pintando, e ser capaz de fazer um movimento de vaivém entre o foco do tipo laser e a pintura como um todo. Os compositores trabalham no nível de tons e ritmos individuais, mas precisam apreender a frase musical mais ampla e a peça inteira, de modo a assegurar o bom encaixe de tudo. Um marceneiro trabalhando numa parte específica da porta precisa ter ainda uma visão geral da porta inteira. Em todos esses casos e ainda em outros — um empresário abrindo uma empresa, um piloto de avião planejando o pouso —, a pessoa que faz o trabalho tem uma imagem ou um ideal na cabeça, e procura manifestá-lo no mundo real, de modo que a aparência da coisa combine com a imagem mental. A distinção entre aparência e imagem mental tem raízes em Aristóteles e Platão, e era uma pedra fundamental da filosofia grega clássica.44 Tanto Aristóteles quanto Platão destacaram a distinção entre a aparência de algo e como esse algo era na realidade. Um marceneiro pode usar um verniz para fazer compensado parecer mogno maciço. O psicólogo cognitivo Roger Shepard, que foi meu mentor e professor (e que desenhou a ilusão do monstro no Capítulo 1), aprofundou esse ponto ainda mais na sua teoria, segundo a qual o comportamento adaptativo depende de que o organismo seja capaz de fazer três distinções entre aparência e realidade. Primeiro, alguns objetos, ainda que tenham aspecto diferente, são inerentemente idênticos. Ou seja, visões diferentes do mesmo objeto que evocam imagens retinianas muito diferentes referem-se, no fundo, ao mesmo objeto. Esse é um ato de categorização — o cérebro precisa integrar diferentes visões de um objeto numa representação coerente e unificada, colocando-as numa única categoria. Fazemos isso o tempo todo quando estamos interagindo com outras pessoas — seus rostos aparecem para nós de perfil, de frente, em outros ângulos, e as emoções que rostos transmitem projetam imagens retinianas muito diferentes. O psicólogo russo A. R. Luria descreveu o caso de um célebre paciente que não conseguia sintetizar essas visões disparatadas, que tinha uma terrível dificuldade em reconhecer os rostos por causa de uma lesão cerebral. Segundo, objetos de aspecto semelhante são inerentemente diferentes. Por exemplo, numa cena de cavalos pastando no campo, cada cavalo pode ser muito parecido com os outros, até mesmo idêntico em termos de sua imagem retiniana, mas o comportamento adaptativo evolucionário exige que compreendamos cada um individualmente. Esse princípio não envolve a categorização; na verdade, ele requer uma espécie de desmonte da categorização, o reconhecimento de que, embora esses objetos sejam funcional e praticamente equivalentes, há situações em que é conveniente compreendermos que eles são entidades distintas (por exemplo, se apenas um deles se aproxima em trote rápido, isso provavelmente apresenta muito menos perigo do que quando toda a manada vem em sua direção). Terceiro, objetos de aspecto diferente podem, ainda assim, pertencer ao mesmo tipo natural. Se você visse um desses animais rastejando em cima da sua perna ou da sua comida, pouco lhe importaria que eles tivessem histórias evolucionárias muito diferentes, hábitos de acasalamento ou DNA diferentes. Eles podem não compartilhar nenhum ancestral evolucionário em um milhão de anos. Você só se importa com o fato de eles pertencerem à categoria de “coisas que não quero que rastejem em cima de mim ou da minha comida”. Portanto, o comportamento adaptativo, segundo Shepard, depende da economia cognitiva, ao tratar objetos como equivalentes quando eles de fato o são. Categorizar um objeto significa considerá-lo equivalente a outras coisas naquela categoria, e diferente — de acordo com alguma dimensão relevante — de coisas que não o são. A informação que recebemos dos sentidos a partir do mundo possui tipicamente uma estrutura e uma ordem, o que não é arbitrário. As coisas vivas — animais e plantas — exibem tipicamente uma estrutura correlativa. Por exemplo, somos capazes de perceber atributos dos animais, como asas, pele, bicos, penas, nadadeiras, guelras e lábios. Mas eles não ocorrem a esmo. As asas são tipicamente cobertas por penas, em vez de pele. Esse é um fato empírico comprovado pelo mundo. Em outras palavras, as combinações não ocorrem de modo uniforme ou a esmo, e algumas parelhas são mais prováveis do que outras. Onde as categorias se encaixam nisso tudo? As categorias muitas vezes refletem essas ocorrências compartilhadas: a categoria pássaro implica a presença de asas e penas no animal (apesar de haver exemplos contrários, como o quivi da Nova Zelândia, que não tem asas, e determinados pássaros já extintos que não tinham penas). Todos nós temos uma compreensão intuitiva do que leva um indivíduo a fazer parte de uma categoria, e com que perfeição ele se encaixa na categoria, desde a mais tenra idade. Usamos ressalvas para indicar integrantes incomuns da categoria. Se alguém lhe pergunta, “o pinguim é um pássaro?”, é correto responder que sim, mas muita gente responderia com uma ressalva, algo como, “em teoria, o pinguim é um pássaro”. Se quiséssemos elaborar mais, diríamos, “ele não voa nada”. Mas não diríamos: “O pardal em teoria é um pássaro”. Ele não é apenas um pássaro em teoria, é um pássaro por excelência, um dos melhores exemplos de pássaros norte-americanos por vários fatores, inclusive sua ubiquidade, sua familiaridade e o fato de possuir a maior quantidade de atributos em comum com os demais integrantes da categoria. Ele voa, canta, possui asas e penas, põe ovos, faz ninho, come insetos, se aproxima de quem o alimenta e assim por diante. Essa compreensão instantânea do que constitui um “bom” integrante de uma categoria se reflete, na nossa conversa do dia a dia, através da nossa habilidade de substituir um integrante da categoria pelo nome da categoria numa frase bem construída e quando esse integrante é bem escolhido, refletindo a estrutura interna da categoria. Vejamos a seguinte frase: Mais ou menos vinte pássaros pousam com frequência no fio do telefone do lado de fora da minha janela e cantam de manhã. Posso retirar a palavra pássaros e substituí-la por tordos, pardais, tentilhões, estorninhos, sem prejudicar a correção da frase. Mas se substituo por pinguins, avestruzes ou perus, parece um absurdo. Do mesmo modo, considere o seguinte: O estudante tirou o pedaço de fruta da merendeira e deu várias mordidas antes de comer o sanduíche. Podemos substituir fruta por maçã, banana ou pera sem perda de correção, mas não podemos substituí-la igualmente por pepino ou abóbora sem que a frase fique estranha. A questão é que quando empregamos categorias preexistentes, ou criamos novas, há objetos exemplares que obviamente pertencem ou são centrais a essa categoria, e outros casos que não se encaixam tão bem. Essa capacidade de reconhecer a diversidade e de organizá-la em categorias é um fato biológico absolutamente essencial para a mente humana organizada. Como se formam as categorias no cérebro? Geralmente, de três maneiras. Primeiro, categorizamos com base no aspecto geral ou no aspecto mais exato. Pelo aspecto geral, colocamos todos os lápis juntos no mesmo pacote. Pelo aspecto mais exato, podemos separar os lápis mais macios dos mais duros, os de grafite dos coloridos, os maiores dos menores. Uma característica de todos os processos de categorização utilizados pelo cérebro humano, inclusive a categorização baseada no aspecto geral, é que eles são flexíveis e expansivos, passíveis de muitos níveis de resolução ou granulação. Por exemplo, se dermos um zoom nos lápis, podemos querer uma separação máxima, como fazem nas papelarias, separando-os tanto pelos fabricantes quanto pela dureza ou maciez: 3H, 2H, H, HB, B. Ou podemos resolver separá-los pelo que lhes resta da borracha, se têm marcas de mordida ou não (!), ou por seu comprimento. Abrindo o zoom, podemos resolver colocar todos os lápis, canetas, marcadores e gizes de cera em uma única e ampla categoria de instrumentos de escrita. Assim que você resolve identificar e nomear uma categoria, o cérebro cria uma representação dessa categoria e separa os objetos que entram dos que ficam de fora. Se eu disser “um mamífero é um animal que dá à luz filhotes vivos e cuida deles”, fica fácil e rápido categorizar a avestruz (não), a baleia (sim), o salmão (não) e o orangotango (sim). E se eu lhe disser que existem cinco espécies de mamíferos que põem ovos (inclusive o ornitorrinco e a equidna), é possível acomodar rapidamente a informação sobre essas exceções, e isso parece perfeitamente comum. A segunda maneira de categorizarmos é baseada na equivalência funcional, quando falta aos objetos aspecto semelhante. Num átimo, somos capazes de usar um giz de cera para escrever um bilhete — ele se torna funcionalmente equivalente a um lápis ou a uma caneta. Podemos usar um clipe retorcido para pregar uma mensagem num quadro de avisos de cortiça, um cabide de arame distorcido para desentupir a pia da cozinha; podemos dobrar um casaco estofado para usá-lo como travesseiro durante um acampamento. Uma equivalência funcional clássica refere-se à comida. Se você está dirigindo na estrada e para num posto de gasolina, com fome, é capaz de aceitar um leque de produtos que são funcionalmente equivalentes para matar a fome, embora não guardem semelhança entre si: fruta, iogurte, uma barra de cereais com nozes, uma barra de granola, um sonho, um pacote de biscoito. Se você já usou a parte de trás de um grampeador ou um sapato para bater um prego, então usou o equivalente funcional de um martelo. O terceiro modo de categorizar é criar categorias conceituais que tratam de situações particulares. Isso às vezes é feito de improviso, levando a categorias ad hoc. Por exemplo: o que sua carteira, fotos de infância, dinheiro vivo, joias e o cão da família têm em comum? Eles não possuem nenhuma semelhança física, e lhes falta semelhança funcional. O que os une é que todos são coisas “que você salvaria no caso de um incêndio”. Você pode nunca ter pensado em juntá-las até o momento em que foi obrigado a tomar uma rápida decisão sobre o que salvar. De outro modo, essas categorias situacionais podem ser planejadas com bastante antecedência. Uma prateleira destinada a emergências (que contenha itens como água, enlatados, abridor de lata, lanterna, chave para fechar o registro de gás natural, fósforos, cobertores) exemplifica isso. Cada um desses três métodos de categorização informa como organizamos nossas casas e locais de trabalho, como alocamos espaço nas prateleiras e gavetas e como podemos arrumar as coisas para achá-las fácil e rapidamente. Cada vez que aprendemos a criar uma nova categoria, existe uma atividade neuronal num circuito que desperta um laço do córtex talâmico pré-frontal, ao lado do núcleo caudado.45 Ele contém mapas de baixa resolução do espaço perceptivo (ligando ao hipocampo); associa um espaço de categorização com um estímulo perceptivo. A liberação de dopamina fortalece as sinapses quando categorizamos corretamente itens segundo uma certa regra. Se mudarmos uma regra de classificação — digamos que decidamos arrumar nossas roupas pela cor e não pela estação —, o córtex cingulado (parte do executivo central) é ativado. É claro que também fazemos classificações cruzadas, pondo as coisas em mais de uma categoria. Em determinada situação, você pode pensar em iogurte como um produto lácteo; em outra, como item do café da manhã. A primeira se baseia numa classificação taxonômica e a segunda, numa categoria funcional.46 Até que ponto as categorias são importantes? Criá-las é algo tão profundo? E se categorias mentais como essas se manifestarem, na verdade, no tecido neuronal? Elas de fato fazem isso. Há mais de 50 mil anos, nossos ancestrais humanos categorizavam o mundo à sua volta fazendo distinções e divisões sobre coisas relevantes para suas vidas: comestível em contraposição a não comestível, predador em contraposição a presa, vivo em contraposição a morto, animado em contraposição a inanimado. Como vimos no Capítulo 1, essas categorias biológicas agrupavam objetos com base em seu aspecto ou suas características. Além disso, eles usavam categorias conceituais ad hoc para coisas que não tivessem semelhança física, mas que compartilhassem características funcionais — por exemplo, “coisas que não queremos encontrar na comida”, categoria heterogênea que incluiria vermes, insetos, torrões de terra, casca de árvores ou os pés fedorentos do irmãozinho. Nos últimos anos aprendemos que a formação e a conservação de categorias possuem raízes em processos biológicos conhecidos do cérebro. Os neurônios são células vivas, que conseguem se interconectar de trilhões de maneiras diferentes. Essas conexões não levam apenas ao conhecimento — as conexões são o conhecimento.47 A quantidade de possíveis estados cerebrais que podemos possuir excede a quantidade de partículas conhecidas no universo. As implicações disso são estarrecedoras: em teoria, deveríamos ser capazes de representar de maneira única em nosso cérebro toda partícula conhecida do universo, e ainda ter capacidade de sobra para organizar essas partículas em categorias finitas. Nosso cérebro é a ferramenta certa para a era da informação. A tecnologia da neuroimagem descobriu os substratos biológicos da categorização. Pediu-se a voluntários colocados dentro de um escâner que criassem ou pensassem em diferentes tipos de categorias. Essas categorias poderiam conter objetos naturais, como plantas e animais, ou artefatos criados pelo homem, como ferramentas e instrumentos musicais. A tecnologia do escaneamento nos permite localizar, geralmente dentro de um milímetro cúbico, onde ocorre determinada atividade neuronal. A pesquisa demonstrou que as categorias que formamos são reais, entidades biológicas, situadas em lugares específicos do cérebro.48 Isto é, regiões específicas e replicáveis do cérebro se tornam ativas quando recordamos categorias formadas previamente, e quando as criamos na hora. Isso é verdade quando as categorias se baseiam em semelhanças físicas (por exemplo, folhas comestíveis) ou apenas conceituais (coisas que eu poderia usar como martelo). Casos clínicos de gente com lesões cerebrais fornecem evidências suplementares da base biológica das categorias. Doenças, derrames, tumores ou outros traumas cerebrais às vezes lesam ou provocam a morte de alguma região específica do cérebro. Já vimos pacientes com lesões cerebrais tão específicas que eles podem perder a capacidade de usar e compreender uma única categoria, como frutas, por exemplo, e reter a capacidade de usar e compreender uma categoria relacionada, como verduras. O fato de uma categoria específica poder ser perdida dessa maneira indica sua base biológica no decorrer de milhões de anos de evolução, e a importância hoje da categorização em nossas vidas. Nossa capacidade de utilizar e criar categorias, de imediato, é uma forma de economia cognitiva. Ela nos ajuda, consolidando coisas iguais, nos livrando de ter de tomar decisões que podem causar perda de energia, centenas de decisões irrelevantes como “será que eu quero essa caneta ou a outra?”, “este é exatamente o par de meias que comprei?”, ou “será que misturei meias quase idênticas na tentativa de formar o par?”. As categorias funcionais no cérebro podem ter limites rígidos (definidos com precisão) ou vagos. Os triângulos são um exemplo de categoria de limites rígidos. Para integrar a categoria, um objeto precisa ser uma figura fechada bidimensional de três lados, cuja soma dos ângulos deve ser exatamente igual a 180 graus. Outro limite rígido é a sentença de um julgamento criminal — com a exceção de julgamentos inconclusivos e anulados, o acusado é condenado ou não condenado, não existe nada do tipo 70% culpado. (Ao proferir a sentença, o juiz pode dispensar punições de grau variável, ou alocar graus de responsabilidade, mas ele geralmente não avalia graus de culpabilidade. No direito civil, entretanto, podem existir graus de culpabilidade.) Um exemplo de limite vago nos é dado pela categoria amizade. Existem casos óbvios e cristalinos de pessoas que você sabe que são suas amigas, e casos evidentes de pessoas que você sabe que não são — estranhos, por exemplo. Mas, para a maioria das pessoas, amigos é uma categoria vaga. Ela depende até certo ponto do contexto. As pessoas que convidamos para um churrasco são diferentes das que convidamos para uma festa de aniversário; saímos para beber com colegas de trabalho, mas não os convidamos à nossa casa. Assim como acontece em muitas categorias, a inclusão depende do contexto. A categoria amigos possui limites vagos, permeáveis, ao contrário da categoria triângulo, na qual os polígonos ou estão incluídos ou não estão. Consideramos as pessoas como amigas para certas coisas, mas não para outras. Os limites rígidos se aplicam sobretudo a categorias formais que, via de regra, encontramos na matemática e no direito. Limites vagos podem ocorrer tanto em categorias naturais quanto nas de artefatos humanos. Os pepinos e as abobrinhas são tecnicamente frutas, mas permitimos que eles invadam o limite vago dos legumes em razão do contexto — tendemos a comê-los no lugar de legumes propriamente ditos, como feijão, vagem e fava. O aspecto contextual e situacional das categorias também se evidencia quando falamos de temperatura — 40ºC é muito calor para o quarto quando estamos tentando dormir, mas é a temperatura perfeita para um banho quente de banheira. Os mesmos 40ºC não seriam suficientes se estivéssemos falando de café. Um caso clássico de categoria vaga é jogo, e o filósofo do século XX Ludwig Wittgenstein, que passou muito tempo pensando nela, concluiu que não havia nenhuma lista de atributos que pudesse definir a categoria sem ambiguidade. Um jogo é algo que se pratica para o lazer? Essa definição excluiria o futebol profissional e os Jogos Olímpicos. Algo que se faz junto a outras pessoas? Isso exclui a paciência. Uma atividade feita para divertir, governada por determinadas regras, às vezes praticada competitivamente para ser assistida por torcedores? Com isso fica excluída a brincadeira de roda, que não é competitiva, nem tem regras, e no entanto parece ser mesmo um jogo. Wittgenstein concluiu que uma coisa é um jogo quando possui uma semelhança familiar com outros jogos.49 Pensem numa família hipotética, os Larson, durante a reunião anual da família. Se você conhecer vários Larson, talvez consiga diferenciá-los com facilidade de seus cônjuges não Larson, com base em certos traços familiares. Talvez os Larson tenham uma covinha no queixo, um nariz aquilino, grandes orelhas de abano, cabelo ruivo, e tendência a passar de um metro e noventa de altura. Mas é possível, até provável, que nenhum dos Larson tenha todos esses atributos. Eles não são características definidoras, são características típicas. A categoria vaga admite qualquer um que se pareça com o Larson prototípico, e, na verdade, o Larson prototípico que possua todas as características citadas talvez não exista de fato, a não ser como uma ideal teórico platônico. O cientista cognitivo William Labov demonstrou o conceito de categoria vaga/semelhança familiar com esta série de desenhos: O objeto no canto superior esquerdo é obviamente uma xícara. Ao nos movermos para a direita na primeira fila, a xícara se alarga gradativamente até, no número 4, parecer mais uma tigela do que uma xícara. E o número 3? Poderia se encaixar tanto na categoria xícara quanto na categoria tigela, dependendo do contexto. Do mesmo modo, à medida que a xícara vai ficando mais alta, ao descermos, parece cada vez menos uma xícara, e mais um jarro ou vaso. Outras variações, como o acréscimo de uma haste (número 17), a tornam mais semelhante a uma taça de vinho ou a um cálice. Mudando o formato (números 18 e 19), no entanto, fica parecendo uma xícara estranha, mas ainda assim uma xícara. Isso ilustra o conceito subjacente de que os limites da categoria são flexíveis, maleáveis e dependentes do contexto. Se eu lhe servir vinho no recipiente número 17 e ele for de vidro, e não de porcelana ou cerâmica, é mais provável que você o aceite como cálice. Mas, mesmo que eu faça o recipiente número 1 de vidro, ele continuará parecendo uma xícara, quer eu o encha de café, suco de laranja, vinho ou sopa. As categorias vagas são concretizadas biologicamente no cérebro, e são tão reais quanto categorias rígidas. Ser capaz de utilizar, criar e compreender os dois tipos de categorias é algo que está inculcado no cérebro — até crianças de dois anos fazem isso. Quando pensamos na organização de nossas vidas e do espaço em que moramos, criar categorias e escaninhos para as coisas é um ato de economia cognitiva. É também um ato de grande criatividade, se o permitirmos, levando a sistemas organizativos que vão da classificação rígida de um paiol militar e da gaveta perfeita de meias a categorias nascidas de caprichos que refletem maneiras divertidas de encarar o mundo e todos os objetos que ele contém. Transferindo parte de sua mente para fora do corpo O cérebro organiza a informação à sua própria maneira idiossincrática, que, a propósito, nos tem sido muito útil. Mas numa era de sobrecarga de informação, para não falar em sobrecarga decisória, precisamos de sistemas que estejam fora de nossas cabeças para nos ajudar. As categorias são capazes de transferir muita coisa do trabalho difícil do cérebro para o ambiente. Se tivermos uma gaveta para guardar apenas artigos de confeitaria, não precisaremos ficar nos lembrando todas as vezes onde devem estar dez itens diferentes — o rolo, as formas de biscoito, a batedeira e assim por diante —; só precisamos lembrar que existe uma categoria para artigos de confeitaria, que fica na terceira gaveta de cima para baixo, debaixo da cafeteira. Se estivermos planejando duas festas de aniversário, uma no escritório e outra em casa, a categoria colegas de trabalho em nossa memória mental, no arquivo do Outlook ou na lista de contatos do smartphone nos ajuda a estimular a memória para saber quem incluir e quem excluir. Os calendários, smartphones e livros de endereço também são extensões do cérebro, exteriorizando no papel e nos chips de computador a mir íade de detalhes que, dessa forma, não precisamos mais manter na cabeça. Historicamente, o máximo a que se chegou como extensão do cérebro foram os livros, com seu registro da sabedoria coletiva secular, que podemos acessar quando necessário. E talvez eles continuem sendo esse ponto culminante. As pessoas no topo de suas profissões, sobretudo aqueles que são conhecidos por sua criatividade e sua eficiência, utilizam ao máximo sistemas de atenção e de memória externos ao cérebro. E uma quantidade surpreendente, mesmo em empregos altamente tecnológicos, utiliza positivamente soluções de baixa tecnologia para permanecer no controle do que estão fazendo. Sim, é possível colocar um chip nas chaves do carro para poder rastreá-las através de um aplicativo de celular, como também é possível criar listas eletrônicas para ter certeza de levar tudo de que se precisa quando for viajar. Mas muitas pessoas ocupadas e eficientes dizem que há algo diferente, visceral, em usar objetos físicos antiquados, em vez de objetos virtuais, para ficar no controle de coisas importantes, desde listas de compras a anotações de ideias para seu próximo grande projeto. Uma das maiores surpresas que tive enquanto trabalhava neste livro foi ver a quantidade de gente que carrega consigo uma caneta, um bloco de anotações ou fichas para tomar notas concretas, insistindo em que são mais eficientes e satisfatórios do que as alternativas eletrônicas em voga.50 Em sua autobiografia, Faça acontecer, Sheryl Sandberg confessa a contragosto que carrega uma caneta para controlar sua lista de coisas a fazer, e também que isso, no Facebook, no qual é diretora de operações, é visto “como carregar um tablete de pedra e um formão”.51 No entanto, ela e muitos outros insistem em usar essa antiga tecnologia. Deve haver alguma coisa boa nisso. Imagine carregar uma pilha de fichas aonde quer que você vá. Quando tem uma ideia sobre algo que está fazendo, você anota numa ficha. Quando lembra algo que precisa fazer depois, anota numa ficha. Você está sentado no ônibus e se lembra de repente de pessoas para quem precisa ligar e de coisas que precisa comprar na loja de ferragens — são várias outras fichas. Você descobriu como resolver aquele problema da sua irmã com o marido dela — isso vai para a ficha. Toda vez que surge uma ideia no seu pensamento, você anota. David Allen, o perito em eficiência e autor de livros como A arte de fazer acontecer, chama esse tipo de anotação de “limpar a mente”. Lembre-se de que os modos devaneio e executivo central funcionam em oposição, e são mutuamente exclusivos; são parecidos com o diabinho e o anjinho pousados em cada um dos seus ombros, procurando tentá-lo. Enquanto você trabalha num projeto, o diabo do devaneio começa a pensar em todas as outras coisas que se passam na sua vida, e tenta distraí-lo. Tamanho é o poder dessa rede antitarefa que esses pensamentos vão ficar girando no seu cérebro até você dar um jeito de lidar com eles. Anotá-los os tira da sua cabeça, limpando o cérebro do entulho que interfere na sua capacidade de focar aquilo que você deseja focar. Como diz Allen, “a sua mente vai lembrá-lo de uma porção de coisas na hora em que você nada pode fazer para resolvê-las, e o simples fato de pensar nas suas preocupações não é absolutamente igual a fazer progressos para a solução delas”.52 Allen notou que quando fazia uma grande lista de tudo que o preocupava sentiase mais relaxado e capaz de focar o trabalho. Essa observação baseia-se na neurologia. Quando temos algo importante na cabeça — especialmente algo a fazer —, ficamos com medo de esquecer, por isso nosso cérebro fica ruminando, girando e girando a coisa em algo que os psicólogos cognitivos chamam de loop de ensaio [rehearsal loop], uma rede de regiões cerebrais que liga o córtex frontal, logo atrás de seus globos oculares, e o hipocampo, no centro do cérebro. Esse loop de ensaio evoluiu num mundo em que não havia caneta nem papel, smartphones ou outras extensões físicas do cérebro humano; durante dezenas de milhares de anos isso era tudo o que tínhamos, e, no decorrer desse período, o mecanismo se tornou muito eficaz para recordar coisas. O problema é que ele funciona bem demais, ruminando coisas até que prestemos atenção nelas. Anotar permite, tanto implícita quanto explicitamente, que o loop de ensaio abra mão dessas coisas, relaxando os circuitos neuronais de modo que possamos nos concentrar em algo diferente. “Se uma obrigação ficasse gravada apenas na minha mente”, diz Allen, “uma parte de mim não parava de se preocupar, achando que devia dar atenção a ela, e isso criava uma situação inerentemente estressante e improdutiva.”53 Anotar as coisas conserva a energia mental que gastamos com a preocupação de possivelmente esquecê-las e com o esforço de não esquecer. A explicação da neurociência para isso é que a rede devaneio compete com a rede executiva central, e, geralmente, numa batalha desse tipo, é o modo padrão do devaneio que costuma ganhar. Às vezes é como se o seu cérebro tivesse vontade própria. Se quisermos analisar a questão do ponto de vista zen, o Mestre diria que a preocupação constante de sua mente com as coisas a fazer o retira do presente — amarrando-o a um projeto mental futuro, de modo que você nunca está totalmente presente no momento e gozando o que existe agora. David Allen observa que muitos de seus clientes invertem as coisas no trabalho, preocupando-se com o que precisam fazer em casa, e, em casa, preocupando-se com o trabalho. O problema é que você nunca está de fato em nenhum dos dois lugares. “Seu cérebro precisa partir de alguma base consistente para se dedicar a todos os seus compromissos e atividades”, diz Allen. “Você precisa ter certeza de que está fazendo o que precisa ser feito, e de que não há mal nenhum em não estar fazendo o que deixou de fazer.54 Se isso o estiver preocupando, então sua cabeça não está clara. Qualquer coisa que você acha que ainda deva ser feita precisa ser alocada a algum sistema confiável fora da sua cabeça.” O sistema confiável é a anotação. Para que o sistema funcione da melhor maneira, a regra é uma ideia ou tarefa para cada ficha — isso assegura que você possa achá-la com facilidade e eliminá-la depois de a providência ter sido tomada. Uma informação por ficha permite uma rápida arrumação e rearrumação, e acesso aleatório, o que significa que você pode acessar qualquer ideia por si só, tirá-la da pilha sem deslocar outra ideia, e colocá-la ao lado de outras ideias na pilha. Com o passar do tempo, sua noção do que é semelhante e do que une ideias diversas pode mudar, e este sistema — uma vez que é aleatório e não sequencial — permite essa flexibilidade. Robert Pirsig inspirou reflexões filosóficas — e a organização mental — a uma geração através de seu romance extremamente popular, Zen e a arte da manutenção de motocicletas, publicado em 1974. Num livro posterior não tão conhecido (indicado para o prêmio Pulitzer), Lila: Uma investigação sobre a moral, ele procura estabelecer uma maneira de pensar a metafísica. Fedro, o alter ego do autor e protagonista da trama, usa o sistema de fichas de arquivo para organizar suas noções filosóficas. O tamanho das fichas, diz ele, torna-as preferíveis a folhas inteiras de papel, porque possibilitam o acesso aleatório e cabem no bolso da camisa ou dentro de uma bolsa. Por serem todas do mesmo tamanho, são fáceis de carregar e de organizar. (Leibniz reclamava de perder pedaços de papel em que escrevia suas ideias porque eram todos de formatos e tamanhos diferentes.) E, o que é importante, “quando é organizada em pequenas partes que podem ser acessadas e arrumadas em sequência aleatória, a informação torna-se muito mais valiosa do que quando você precisa utilizá-la de forma serial [...] Elas [as fichas] garantiam que, ao manter sua cabeça livre, conservando apenas o mínimo de formatação sequencial, nenhuma ideia nova ou inexplorada seria deixada de fora ou esquecida”.55 É evidente que nossa cabeça jamais pode ser verdadeiramente esvaziada, mas essa ideia é poderosa. Devemos transferir o máximo possível de informação para o mundo externo. Depois que você dispõe de uma pilha de fichas, é preciso organizá-las regularmente. Quando há uma pequena quantidade, você simplesmente as arruma na ordem em que terá de usá-las. Com uma quantidade maior, você aloca as fichas a categorias. Uma versão modificada do sistema que Ed Littlefield me fazia usar com sua correspondência funciona da seguinte maneira: Coisas para fazer hoje Coisas para fazer esta semana Coisas que podem esperar Gaveta da bagunça Não são os nomes das categorias que são importantes, e sim o processo de categorização externa. Talvez suas categorias sejam mais parecidas com estas: Listas de compras Recados Coisas para fazer em casa Coisas para fazer no trabalho Vida social Coisas que devo pedir a Pat para fazer Coisas relativas ao plano de saúde da mamãe Telefonemas a dar David Allen recomenda o seguinte sistema mnemônico para organizar melhor sua lista de pendências em quatro categorias factíveis: Faça Delegue Adie Abandone Allen sugere a regra dos dois minutos: se você consegue resolver uma das coisas na sua lista em menos de dois minutos, faça-a agora (ele recomenda que se separe um período de tempo todo dia, trinta minutos, por exemplo, só para fazer essas pequenas tarefas, porque elas podem se acumular rapidamente a ponto de criar uma sobrecarga). Se a tarefa puder ser feita por alguém, delegue-a. Qualquer coisa que leve mais de dois minutos para fazer, adie. Você pode adiar só até mais tarde no mesmo dia, mas adie o suficiente para que possa cumprir sua lista de tarefas de dois minutos. E existem coisas com as quais não vale mais a pena perder tempo — as prioridades mudam. Ao fazer a inspeção diária das suas fichas, você pode resolver abandoná-las. De início pode parecer um trabalho dispensável. Você consegue guardar todas essas coisas na cabeça, certo? Sim, é capaz disso, mas o fato é que a anatomia de seu cérebro torna menos eficaz fazê-lo. E o “trabalho dispensável” não é tão oneroso. É um período para reflexão e saudável devaneio. Para distinguir as fichas que formam uma categoria em contraposição a outra, pode-se colocar uma ficha-cabeçalho como primeira ficha da nova categoria. Se suas fichas forem brancas, a ficha-cabeçalho pode ser azul, por exemplo, para ser mais fácil de achar. Algumas pessoas ficam doidas pelo sistema de fichas e o estendem a esse sistema de cabeçalho, usando fichas de cor diferente para cada categoria. Mas isso torna mais difícil transferir uma ficha de uma categoria para outra, e toda a vantagem do sistema de fichas é maximizar a flexibilidade — qualquer ficha deve poder ser colocada em qualquer lugar da pilha. À medida que suas prioridades mudam, você simplesmente rearruma as fichas e as coloca na ordem e na categoria que quiser. Cada pedacinho de informação ganha sua própria ficha. Fedro escreveu todo um livro colocando ideias, citações, fontes e outros resultados de pesquisa em fichas, que ele chamava tiras. O que começa como uma tarefa exaustiva de descobrir onde colocar cada item de um relatório acaba sendo simplesmente uma questão de arrumar as tiras. Em vez de perguntar “onde começa essa metafísica do universo?” — que era uma pergunta virtualmente impossível —, bastava-lhe erguer duas tiras e perguntar “qual vem primeiro?”. Era fácil e ele sempre parecia obter uma resposta. Em seguida, ele pegava uma terceira tira, comparava com a primeira e perguntava de novo “qual vem primeiro?”. Se a nova tira viesse depois da primeira, ele a comparava com a segunda. Assim, ele tinha uma organização de três tiras. E não parou de repetir o processo, tira após tira.56 As pessoas que utilizam fichas acham esse sistema libertador. Os gravadores exigem que você escute, e, mesmo aumentando a velocidade da gravação, leva-se mais tempo ouvindo do que lendo. Não é lá muito eficiente. E não é fácil arrumar as fichas gravadas. Já as fichas escritas, você pode arrumá-las e rearrumá-las à vontade.57 Pirsig continua descrevendo as experiências organizativas de Fedro. “Por várias vezes ele já experimentara coisas diferentes: tiras plásticas coloridas para indicar subtópicos e subsubtópicos; asteriscos para indicar a importância relativa; tiras divididas por uma linha para indicar tanto os aspectos racionais quanto emocionais do assunto; mas todas só haviam servido para aumentar e não diminuir a confusão, e ele achou mais claro colocar a informação em outro lugar.” Uma categoria que Fedro adotava era a de inassimilado. “Isso continha ideias novas que interrompiam o que ele estava fazendo. Surgiam de chofre enquanto ele organizava outras tiras, navegando, ou trabalhando no barco, ou fazendo qualquer outra coisa que ele não queria que fosse perturbada. Normalmente a mente diz a essas ideias: ‘Vão embora, estou ocupado’, mas essa atitude é mortal para a Qualidade.” Pirsig reconhece que algumas das melhores ideias que temos surgem quando estamos fazendo algo totalmente diferente. Você não tem tempo de descobrir como utilizar a ideia porque está ocupado com outra coisa, e gastar tempo contemplando todos os seus ângulos e ramificações vai interromper a tarefa que está fazendo. Para Fedro, uma pilha de inassimilados ajudava a resolver o problema. “Ele simplesmente botava as tiras lá, à espera, até que tivesse tempo e vontade de consultá-las.” Em outras palavras, trata-se da gaveta da bagunça, lugar para coisas que não pertencem a nenhum outro lugar. Você não precisa carregar todas as fichas aonde quer que vá, claro — as pendentes, que são orientadas para o futuro, podem ficar numa pilha sobre sua mesa. Para maximizar a eficácia do sistema, os peritos passam os olhos pelas fichas toda manhã, rearrumando-as quando necessário, e acrescentando outras quando têm novas ideias depois de analisar a pilha. As prioridades mudam, e a natureza das fichas, que permite o acesso aleatório, significa que você pode botá-las onde quer que sejam mais úteis. Para muita gente, certa quantidade de itens da lista de coisas a fazer exige uma iniciativa que, em razão da pouca informação que possuímos, sentimos não poder tomar. Digamos que um item de sua lista de coisas a fazer seja “decidir sobre uma moradia assistida para tia Rose”. Você já visitou alguns lugares e reuniu informações, mas ainda não tomou uma decisão. Num exame matutino de suas fichas, você percebe que ainda não está pronto para decidir. Então, dedique dois minutos a pensar no que falta para você tomar essa decisão. Daniel Kahneman e Amos Tversky dizem que o problema da tomada de decisão é que muitas vezes fazemos isso em condições de incerteza. Você não tem certeza do resultado de botar Rose numa moradia assistida, e isso torna difícil a decisão. Você também teme se arrepender caso tome a decisão errada. Se mais informação é capaz de eliminar essa incerteza, então descubra qual a informação e como obtê-la, e então — para fazer com que o sistema continue trabalhando para você — coloque-a numa ficha. Talvez seja uma questão de visitar alguns outros asilos, talvez conversar com outros membros da família. Ou talvez você precise apenas de tempo para absorver a informação. Nesse caso, dê-se um prazo para a decisão, digamos quatro dias, e procure então decidir. A questão essencial aqui é que, na inspeção cotidiana das fichas, você seja obrigado a fazer algo com a ficha — faça alguma coisa com ela agora, ponha-a na pilha pendente ou crie uma nova tarefa que ajude a fazer esse projeto evoluir. O sistema de fichas é apenas um entre possivelmente uma infinidade de dispositivos de extensão cerebral, e não é indicado para qualquer um. Paul Simon carrega um livrinho de anotações a todo canto que vai, para anotar versos ou frases que possa usar mais tarde em canções,58 e John R. Pierce, o inventor das comunicações por satélite, carregava um caderno de laboratório com tudo que precisava fazer, além de ideias para pesquisas e o nome das pessoas que havia conhecido.59 Um bom número de inovadores carregava bloquinhos para registrar observações, lembretes e todo tipo de coisas a fazer; a lista inclui George S. Patton (para explorar ideias sobre liderança e estratégia militar, além de registrar afirmações diárias), Mark Twain, Thomas Jefferson e George Lucas.60 Essas são formas de armazenamento serial de informação, e não de acesso aleatório; tudo nelas é cronológico. Implica folhear muitas páginas, mas satisfaz seus usuários. Por mais modesto e de baixa tecnologia que possa parecer, o sistema de fichas 3 × 5 é poderoso. Isso porque ele se apoia na neurociência da atenção, memória e categorização. O modo devaneio, antitarefa, é responsável por muita informação útil, mas grande parte dela chega no momento errado. Exteriorizamos nossa memória colocandoa nas fichas. Assim, aproveitamos o poder do antigo desejo intrínseco e evolucionário do cérebro de categorizar e criamos pequenos escaninhos para essas memórias exteriorizadas, escaninhos em que podemos olhar toda vez que a rede do executivo central assim o desejar. Pode-se dizer que categorizar e exteriorizar nossa memória nos permite equilibrar o yin do devaneio com o yang da execução. PARTE DOIS 3 ORGANIZANDO NOSSAS CASAS Onde podemos começar a melhorar as coisas Pouca gente considera que suas casas e ambientes de trabalho estejam organizados com perfeição. Perdemos as chaves, uma correspondência importante; vamos fazer compras e esquecemos algo que precisávamos comprar. Esquecemos um compromisso do qual tínhamos certeza de que nos lembraríamos. Nos melhores casos, a casa é limpa e arrumada, mas com armários e gavetas entulhados. Alguns de nós têm caixas que permanecem fechadas desde a última mudança (ainda que tenha sido há cinco anos), e o escritório acumula papelada mais rápido do que podemos dar conta. Nossos sótãos, garagens, porões e gavetas da bagunça na cozinha estão em tal estado que torcemos para que nenhum conhecido resolva dar uma olhada neles, e tememos o dia em que for preciso encontrar algo ali. Evidentemente, não são problemas que nossos ancestrais tinham. Quando pensamos no modo de vida de nossos ancestrais mil anos atrás, é fácil frisar as diferenças tecnológicas — nada de carros, energia elétrica, aquecimento central ou água encanada. Somos tentados a imaginar as casas como as de hoje, refeições mais ou menos iguais, a não ser pela falta de comida processada. E pela necessidade de moer mais trigo e depenar mais aves, talvez. Mas o registro antropológico e histórico narra uma história muito diferente. Em termos de alimentação, nossos ancestrais costumavam comer aquilo em que conseguiam pôr as mãos. Todo tipo de coisas que não comemos hoje, por não terem um gosto muito bom, era, segundo consta, rotina apenas pelo fato de estarem disponíveis: ratos, esquilos, pavões — e não vamos esquecer os gafanhotos!1 Alguns alimentos que hoje consideramos pertencer à alta cozinha, como a lagosta, eram tão abundantes nos anos 1800 que eram dados a prisioneiros e órfãos, e moídos para serem usados como fertilizantes; os criados exigiam uma garantia por escrito de que não seriam alimentados com lagosta mais do que duas vezes por semana.2 Coisas que achamos mais do que naturais — algo tão básico como a cozinha — só passaram a existir nos lares europeus há poucas centenas de anos. Até 1600, o típico lar europeu tinha um único aposento, e as famílias costumavam ficar reunidas em volta do fogo na maior parte do ano, para se aquecer.3 A quantidade de pertences que a pessoa média tem hoje é muito maior do que tivemos no decorrer da maior parte da nossa história evolucionária, facilmente mil vezes maior, e organizá-los é um problema caracteristicamente moderno. Em um lar americano observado, havia mais de 2260 objetos visíveis apenas na sala e em dois quartos.4 Sem contar os objetos na cozinha e na garagem, e todos os que estavam enfiados em gavetas, armários ou caixas. Somando tudo, o número poderia ser três vezes maior. Muitas famílias acumulam uma quantidade maior de objetos do que cabe em suas casas. O resultado são garagens tomadas por mobília velha e equipamento esportivo em desuso, e escritórios domésticos entulhados de caixas cheias de coisas que ainda não foram levadas para a garagem.5 Três em quatro americanos relatam que suas garagens estão tão cheias que eles não conseguem mais guardar seus carros nelas.6 O nível de cortisol (hormônio do estresse) nas mulheres chega ao pico quando elas se defrontam com essa bagunça (o dos homens nem tanto).7 Altos níveis de cortisol podem levar à diminuição crônica da capacidade cognitiva, à fadiga e à supressão do sistema imunológico do corpo.8,9 O estresse é aumentado pela sensação, comum a muitos de nós, de que perdemos a capacidade de organizar nossos pertences. As mesinhas de cabeceira estão empilhadas de coisas. Não lembramos sequer o que contêm aquelas caixas que não abrimos. O controle remoto da TV precisa de pilhas novas, mas não sabemos onde estão. As contas do ano passado formam uma pilha alta em cima da mesa do escritório. Pouca gente acredita que existem lares tão bem arrumados quanto, digamos, uma loja de ferragens Ace Hardware. Como eles conseguem isso? A disposição e a organização de produtos nas prateleiras de uma loja de ferragens bem projetada é uma demonstração dos princípios esboçados nos capítulos anteriores. Põe-se em prática tanto a acumulação de objetos com semelhança conceitual quanto de objetos com uma associação funcional, conservando-se ao mesmo tempo categorias cognitivas flexíveis. John Venhuizen é presidente e CEO da Ace Hardware, rede varejista com mais de 4300 lojas nos Estados Unidos. “Qualquer pessoa que leve a sério o marketing e o varejo tem vontade de saber mais sobre o cérebro humano”, diz ele. “O que, em parte, causa o atravancamento do cérebro é o limite de capacidade — ele só consegue absorver e decifrar uma quantidade limitada de coisas. Essas superlojas são grandes varejistas e podemos aprender muitas coisas com elas, mas nosso objetivo é chegar a uma loja menor, navegável, porque facilita a tarefa do cérebro dos nossos fregueses. Trata-se de uma busca incessante.” Em outras palavras, a Ace Hardware utiliza categorias flexíveis para criar uma economia cognitiva. A Ace emprega toda uma equipe para administrar as categorias, buscando arrumar os produtos nas prateleiras de modo a refletir a maneira como os consumidores pensam e compram. Uma loja típica da Ace contém de 20 a 30 mil artigos diferentes, e a rede como um todo oferece 83 mil artigos. (É bom lembrar que no Capítulo 1 afirmamos que a avaliação de itens em estoque nos Estados Unidos é de 1 milhão. Isso significa que a rede Ace Hardware estoca quase 10% de todos os artigos disponíveis no país.) A Ace categoriza seus artigos hierarquicamente em departamentos, tais como gramados & jardins, artigos elétricos e tintas. Em seguida, existem subdivisões dessas categorias, como fertilizantes, irrigação e ferramentas (em gramados & jardins), ou acessórios, fiação e iluminação (em artigos elétricos). A hierarquia vai se estendendo para baixo. No departamento de ferramentas manuais e elétricas, a Ace lista as seguintes subcategorias arrumadas: Ferramentas elétricas Ferramentas elétricas de uso doméstico | Ferramentas elétricas profissionais | Aspiradores de secos e molhados Brocas Craftsman Black & Decker Makita Etc. No entanto, aquilo que funciona no controle de estoque não necessariamente funciona em termos de arrumação das prateleiras e exibição dos produtos. “Aprendemos há muito tempo”, diz Venhuizen, “que os martelos são vendidos junto dos pregos, porque quando o freguês está comprando pregos e vê o martelo na prateleira, isso o faz lembrar de que precisa de um martelo novo. Costumávamos colocá-los rigidamente junto das outras ferramentas manuais; agora colocamos alguns junto dos pregos, justamente por este motivo”. Imagine que você deseja consertar uma ripa solta na sua cerca e precisa de um prego. Você vai à loja de ferragens, e haverá tipicamente todo um corredor para itens fixadores (categoria muito geral). Pregos, parafusos, porcas e arruelas (categorias básicas) ocupam um corredor inteiro, e dentro desse corredor existem subdivisões hierárquicas com subseções para pregos para concreto, pregos para estuque, pregos para madeira, tachas de tapetes (categorias subordinadas). Imagine agora que você quer comprar uma corda de varal. Esse é um tipo de corda com características especiais: precisa ser feita de um material que não vá manchar as roupas molhadas; precisa ficar permanentemente exposta, por isso tem que resistir às diferentes condições climáticas; precisa ter resistência tênsil para sustentar roupas lavadas sem arrebentar ou esticar demais. Ora, seria de imaginar que a loja de ferragens tivesse um corredor apenas para cordas, barbante, arame e cabos, onde todas essas coisas ficariam juntas, como os pregos, e esse corredor de fato existe, mas os comerciantes também alavancam as nossas redes cerebrais de memória associativa colocando cordas de varal junto de sabão em pó, tábuas de passar e pregadores de roupa. Isto é, guardam um pouco de corda de varal junto de “coisas necessárias para lavar roupa”, categoria funcional que espelha a maneira como nosso cérebro organiza a informação. Isso nos auxilia não só a encontrar o produto que queremos, mas a nos fazer recordar que precisamos dele. E como o varejo de roupas organiza seu estoque? Ele também tende a utilizar um sistema hierárquico, como a Ace Hardware. Pode ainda utilizar categorias funcionais, botando roupas impermeáveis num canto e roupas de dormir em outro. O problema de categorização para o varejista de roupa é o seguinte: existem pelo menos quatro dimensões diferentes em que se manifestam as diferenças do estoque — o sexo do pretenso comprador, o tipo de roupa (calças, camisas, meias, chapéus etc.), a cor e o tamanho. As lojas de roupa põem tipicamente as calças em um lugar e as camisas em outro, e assim por diante. Então, descendo um grau hierárquico, camisas sociais são separadas de camisas esportivas e camisetas. No interior do departamento de calças, o estoque tende a ser arrumado por tamanho. Se o vendedor do departamento for bastante meticuloso ao voltar a arrumar os produtos, depois de os fregueses descuidados terem mexido nas peças, juntará por cor as calças do mesmo tamanho. Agora a coisa fica mais complicada, porque as calças masculinas têm dois tamanhos, da cintura e do comprimento das pernas. Na maioria das lojas de roupas, é o número da cintura que governa a categorização: todas as calças são agrupadas segundo a medida da cintura. Assim, se você entrar na Gap, perguntar pelo departamento de roupas e for mandado para os fundos da loja, para encontrar fileiras e mais fileiras de caixas quadradas contendo milhares de calças, notará imediatamente uma subdivisão. As calças jeans são provavelmente guardadas em um lugar diferente das calças cáqui, que, por sua vez, são guardadas em um lugar diferente das demais calças, as esportivas, sociais ou mais caras. Agora, todas as calças com cintura 40 estarão claramente sinalizadas na prateleira. Ao examiná-las, os comprimentos das pernas devem estar em ordem crescente. E a cor? Depende da loja. Às vezes, todas as calças jeans pretas ficam num conjunto de prateleiras contíguas, e todas as azuis em outro. Às vezes, dentro de uma categoria de tamanho, todas as azuis ficam empilhadas sobre as pretas, ou misturadas. A coisa boa da cor é que é fácil de ser percebida — ela se destaca por causa de seu filtro de atenção (a rede Onde está Wally?). Assim, ao contrário do que acontece com o tamanho, você não vai precisar procurar uma pequena etiqueta para descobrir a cor que pegou. Reparem que a arrumação na prateleira é hierárquica e também separada. As roupas masculinas ficam numa parte da loja, e as femininas, em outra. Trata-se de uma separação grosseira do “espaço de seleção”, e faz sentido, uma vez que, na maioria dos casos, as roupas que desejamos estão numa dessas duas categorias de gênero, e não costumamos ficar pulando de uma para outra.10 É claro que nem todas as lojas oferecem navegação fácil para os fregueses. As lojas de departamento são muitas vezes organizadas por estilista — Ralph Lauren aqui, Calvin Klein acolá, Kenneth Cole uma fileira atrás. Então, dentro do espaço de cada estilista, elas se rearrumam para criar uma hierarquia, agrupando primeiro as roupas por tipo (calças em contraposição a camisas), em seguida pela cor e/ou tamanho. Os balcões de maquiagem tendem a ser dirigidos pelos vendedores — Lancôme, L’Oréal, Clinique, Estée Lauder e Dior têm, cada uma, o seu balcão. Isso não torna a coisa fácil para a compradora que está procurando um batom de certa tonalidade especial para combinar com uma bolsa. Poucas consumidoras entram na Macy’s pensando “preciso comprar um Clinique vermelho”. É extremamente inconveniente andar de uma parte da loja para outra. Mas a Macy’s faz isso porque aluga o espaço para diferentes empresas de maquiagem. O balcão da Lancôme na Macy’s é uma loja em miniatura dentro da loja, e os vendedores trabalham para a Lancôme. A Lancôme fornece os artigos e o controle do estoque, e a Macy’s não precisa se preocupar em arrumar as prateleiras nem em fazer pedidos; eles simplesmente ficam com uma pequena percentagem de cada venda.11 De maneira geral, nossos lares não são tão bem organizados como, digamos, a Ace Hardware, a Gap ou o balcão da Lancôme. Existe o mundo impulsionado pelas forças do mercado, em que as pessoas são pagas para manter as coisas organizadas, e existe a sua casa. Uma solução é implantar sistemas para domar a bagunça — uma infraestrutura para controlar as coisas, arrumá-las, guardando-as em lugares em que podem ser achadas e não perdidas. A tarefa dos sistemas organizativos é fornecer o máximo de informação com o mínimo de esforço cognitivo.12 O problema é que estabelecer sistemas para organizar nossa casa e local de trabalho é uma tarefa temível; receamos que isso vá exigir tempo e energia para ser iniciado, e, tal como a resolução de ano-novo de fazer dieta, achamos que só vai vigorar por pouco tempo. A boa notícia é que, num escopo limitado, todos nós temos sistemas organizativos implantados, que nos protegem do terrível caos que nos ameaça. Raramente perdemos garfos e facas porque temos uma gaveta de talheres na cozinha. Não perdemos escovas de dente porque elas são usadas num cômodo específico e possuem um determinado lugar em que são guardadas. Mas perdemos abridores de garrafa quando os levamos da cozinha para a sala de jogos ou para a sala de jantar e depois esquecemos onde estavam. O mesmo acontece com escovas de cabelos quando se tem o hábito de tirá-las do banheiro. Perder coisas resulta em grande parte de forças estruturais — já que as várias coisas nômades de nossas vidas não estão confinadas a determinados lugares, como a humilde escova de dente. Por exemplo, os óculos de leitura — nós os carregamos de um cômodo para outro, e eles são facilmente postos no lugar errado porque não têm um local específico. A base neurológica disso é hoje bem conhecida. Desenvolvemos uma estrutura cerebral especializada chamada hipocampo apenas para lembrar a localização espacial das coisas. Isso teve uma importância extraordinária no decorrer da história da nossa evolução, para registrar onde era possível encontrar água e comida, sem falar na localização de diversos perigos. O hipocampo é um centro tão importante para a memória dos lugares que está presente até em ratos e camundongos. Um esquilo enterrando nozes? É o hipocampo que o ajuda a recuperá-las vários meses depois, de centenas de locais diferentes.13 Em um trabalho hoje famoso entre os neurocientistas, foi estudado o hipocampo de um grupo de motoristas de táxi de Londres. Exige-se de todos os motoristas de táxi londrinos que se submetam a um teste de conhecimento dos caminhos na cidade, e o preparo para esse teste pode exigir de três a quatro anos de estudo.14 Dirigir um táxi em Londres é especialmente difícil porque a cidade não se estende de modo geométrico como a maioria das cidades americanas; muitas ruas são descontínuas, acabam e recomeçam mais à frente com o mesmo nome, e muitas têm mão única e só podem ser acessadas por caminhos limitados. Para ser um bom motorista de táxi em Londres é preciso ter uma excelente memória espacial. Depois de várias experiências, os cientistas descobriram que o hipocampo dos motoristas de táxi londrinos eram maiores dos que os de outras pessoas de idade e instrução comparáveis — haviam aumentado de volume graças a toda informação que precisavam guardar sobre os endereços.15 Mais recentemente, descobriu-se que existem células no hipocampo (chamadas células granuladas dentadas) próprias para registrar memórias de lugares específicos.16 A memória do local evoluiu no decorrer de milhares de anos para se manter informada sobre coisas imóveis, como árvores frutíferas, poços, montanhas, lagos. Não apenas é enorme, mas extraordinariamente precisa quanto ao que importa para nossa sobrevivência. Mas não é tão boa para se manter no controle das coisas que se movem daqui para ali. É por isso que você se lembra da sua escova de dente, mas não dos óculos. É por isso que você perde as chaves do carro, mas não o carro (existe uma infinidade de lugares onde você pode deixar as chaves, mas relativamente menos lugares onde deixar o carro). O fenômeno da memória do local já era conhecido dos antigos gregos. O célebre sistema mnemônico que eles inventaram, o método de loci, baseia-se em pegar conceitos que desejamos recordar e associá-los a memórias vívidas de lugares bem conhecidos, como os cômodos de nossas casas.17 Lembrem-se das affordances gibsonianas no Capítulo 1, as maneiras como nosso ambiente pode servir de amparo mental ou intensificador cognitivo. Simples affordances para os objetos nas nossas vidas podem rapidamente atenuar o fardo mental de nos mantermos informados de onde eles se encontram, e tornar estética e emocionalmente agradável mantê-los guardados onde devem ficar — domando assim suas tendências errantes. Podemos pensar nelas como próteses cognitivas.18 Para as chaves, um vaso ou um gancho perto da porta que você normalmente usa resolve o problema (como mostrado em Dr. Jivago e The Big Bang Theory).19 O vaso e o gancho podem ser decorativos, combinando com a decoração da sala. O sistema depende de sermos compulsivos a respeito disso. Sempre que você estiver em casa, é lá que as chaves devem ficar. Assim que passar pela porta, guarde-as ali. Sem exceção. Se o telefone estiver tocando, primeiro pendure as chaves. Se estiver com as mãos ocupadas, largue os pacotes e pendure as chaves! Uma das grandes regras para não perder objetos é a regra do lugar próprio.20 Uma bandeja ou prateleira eleita para guardar o smartphone o encoraja a botá-lo ali e em nenhum outro lugar. O mesmo é válido para outros aparelhos eletrônicos e a correspondência do dia. Empresas como Sharper Image, Brookstone, SkyMall e Container Store criaram um modelo de negócios baseado nessa realidade neurológica, fornecendo produtos que abarcam um escopo espantoso de estilos e preços (plástico, couro, prata de lei) e funcionam como lembretes para você guardar os objetos indóceis em suas respectivas casas. Segundo a teoria cognitiva, deve-se gastar o máximo possível nessas coisas. É muito difícil deixar a correspondência espalhada por aí depois de ter gastado um dinheirão numa bandeja especial para guardá-la. Mas simples affordances nem sempre exigem que compremos novidades. Se seus livros, CDs ou DVDs estão organizados e você quer lembrar onde colocar de volta o que você acabou de pegar, pode puxar o que está no lado esquerdo dele uns dois centímetros para fora, e ele então vai se tornar uma affordance para que você saiba onde recolocar o que pegou “emprestado” da coleção. As affordances não são apenas para pessoas de memória fraca, ou que chegaram à sua idade de ouro — muitas pessoas, até mesmo jovens, de memória excepcional, relatam problemas para se manter a par dos itens cotidianos. Magnus Carlsen é o enxadrista número um no ranking mundial, com apenas 23 anos de idade. Ele consegue jogar dez jogos ao mesmo tempo — de memória, sem olhar o tabuleiro —, mas diz: “Eu me esqueço de todo tipo de [outras] coisas. Vivo perdendo meus cartões de crédito, celular, chaves e assim por diante”.21 B. F. Skinner, o influente psicólogo de Harvard e pai do behaviorismo, além de crítico social em seus escritos, entre os quais Walden II, teceu reflexões sobre as affordances. Se você ouvir na previsão do tempo que deve chover amanhã, disse ele, ponha um guarda-chuva ao lado da porta da frente para não se esquecer de levá-lo.22 Se tiver que pôr cartas no correio, ponha-as ao lado das chaves do carro, de modo que estejam bem ali quando você sair de casa. O princípio subjacente a tudo isso é descarregar a informação do cérebro para o ambiente; utilize o próprio ambiente para lembrá-lo do que precisa ser feito. Jeffrey Kimball, ex-vice presidente da Miramax e hoje um premiado produtor independente de cinema, diz o seguinte: “Se imaginar que vou esquecer alguma coisa ao sair de casa, ponho-a ao lado dos sapatos na porta da frente. Também uso o sistema dos ‘quatro’ — toda vez que saio de casa verifico se estou com quatro coisas: chaves, carteira, telefone e óculos”. Se você tem receio de se esquecer de comprar leite quando voltar para casa, ponha uma caixa de leite vazia no assento do carro ao seu lado ou na mochila que leva para o trabalho (uma anotação funcionaria, é claro, mas a caixa é mais incomum e, assim, atrai mais a sua atenção). O outro lado de deixar objetos físicos à mostra como lembretes é guardá-los quando não forem mais necessários. O cérebro é um tremendo detector de mudança, e é por isso que você nota o guarda-chuva ao lado da porta ou a caixa de leite no assento do carro. Mas, da mesma forma, o cérebro se habitua ao que não muda — é por isso que um amigo pode entrar na cozinha e reparar no estranho ruído que a geladeira começou a fazer, algo que você não percebe mais. Se o guarda-chuva ficar o tempo todo ao lado da porta, chova ou faça sol, ele não funcionará mais como um gatilho para a memória, porque você não prestará atenção nele.23 Para lembrar onde você estacionou o carro, há avisos no estacionamento do aeroporto de San Francisco aconselhando as pessoas a usar o celular para tirar uma foto do local. É claro que isso também funciona em relação ao local onde deixamos a bicicleta. (No coração da indústria tecnológica, os carros e os óculos do Google em breve farão isso por nós.) Quando pessoas organizadas percebem que vivem correndo da cozinha para o escritório para pegar uma tesoura, elas compram mais uma. Pode parecer acúmulo em vez de organização, mas comprar duplicatas de coisas que você usa com frequência e em diversos lugares é um auxílio para evitar que as perca. Talvez você use óculos de leitura no quarto, no escritório e na cozinha. Três óculos resolvem o problema se você consegue criar um lugar reservado para eles, um determinado canto em cada aposento, e deixá-los sempre lá. Como os óculos de leitura não ficam andando de um cômodo a outro, sua memória espacial vai ajudá-lo a lembrar onde eles estão em cada aposento. Há ainda quem compre óculos extras, que são guardados no porta-luvas, para a leitura de mapas, ou na bolsa ou no bolso do casaco, para que estejam à mão caso haja necessidade de ler o cardápio num restaurante, por exemplo. É claro que óculos de grau podem ser caros — e três, mais ainda. Como alternativa, pode-se usar uma cordinha para óculos de leitura, e carregá-los sempre consigo. (Ao contrário da correlação muitas vezes observada, não existe comprovação científica de que essas cordinhas tornem os cabelos grisalhos ou criem uma afinidade com os cardigãs.) O princípio neurológico continua a funcionar. Assegure-se de que, ao tirá-los do pescoço, eles retornem a seu local específico; o sistema se desorganiza se você tiver vários locais. Uma dessas estratégias gerais — providenciar duplicatas ou criar um local rigidamente determinado — funciona bem no caso de muitos itens cotidianos: batons, prendedores de cabelo, canivetes, abridores de garrafa, grampeadores, fita adesiva, escovas de cabelo, lixas de unha, canetas, lápis, blocos de anotações. O sistema não funciona com o que não pode ser duplicado, como o computador, o iPad, a correspondência do dia ou o celular. Quanto a esses, a melhor estratégia é aproveitar a energia do hipocampo, em vez de lutar contra ela: determine um local específico na sua casa que será o lar desses objetos. Seja exigente no cumprimento dessa estratégia. Muitos podem estar pensando “ah, eu não sou detalhista assim — sou uma pessoa criativa”. Mas uma personalidade criativa não briga com esse tipo de organização. A casa de Joni Mitchell é um exemplo de sistemas organizativos. Ela instalou dezenas de gavetas sob medida para determinados usos, a fim de organizar melhor justamente o que tende a ser mais difícil de achar. Uma gaveta é para rolos de fita adesiva transparente; outra, para rolos de fita adesiva branca. Uma gaveta é para produtos de embalagem e envio pelo correio; outra, para cordas e barbante; outra, para pilhas (organizadas por tamanho em pequenas bandejas plásticas); e uma gaveta especialmente funda guarda lâmpadas de reposição. Os utensílios e artigos de forno ficam separados dos de fritura. A despensa é organizada da mesma maneira. Biscoitos numa prateleira, cereais em outra, ingredientes para sopa numa terceira, enlatados numa quarta. “Não quero gastar energia tendo de procurar as coisas”, diz ela. “De que adianta? Posso ser mais eficiente e produtiva, e ficar de melhor humor, se não passar aqueles minutos frustrantes procurando alguma coisa.”24 Na verdade, portanto, muita gente criativa tem tempo de ser criativa justamente porque dispõem de sistemas desse tipo para aliviar e desentulhar a mente. Muitos músicos de rock e hip-hop têm estúdio em casa, e, apesar da fama de rebeldes beberrões que não ligam para nada, seus estúdios são meticulosamente organizados. O estúdio na casa de Stephen Stills tem gavetas específicas para cordas de guitarra, palhetas, chaves Allen, conectores, partes sobressalentes de equipamentos (organizadas pelo tipo de equipamento), fita transparente para emendar filme e assim por diante.25 Um armário de cordas e cabos (parecido com um armário de gravatas) guarda cordas de instrumentos elétricos e acústicos de vários tipos em determinada ordem, de modo que ele possa pegar o que quiser sem sequer olhar. Michael Jackson catalogava minuciosamente cada um de seus pertences; entre a grande equipe de funcionários que empregava, um deles era intitulado arquivista-chefe.26 John Lennon guardava caixas e mais caixas de fitas de canções em que estava trabalhando, cuidadosamente rotuladas e organizadas.27 Há algo quase consolador em se abrir uma gaveta e só ver coisas do mesmo tipo dentro dela, ou examinar um armário organizado. Achar as coisas sem ter de ficar remexendo e procurando poupa a energia mental para tarefas criativas mais importantes. Na verdade, é um alívio fisiológico evitar o estresse de ficar pensando se vamos ou não encontrar o que procuramos. Não achar alguma coisa lança a mente num nevoeiro confuso, um modo de vigilância tóxico que não é relaxado nem focado. Quanto mais cuidado você tiver ao criar suas categorias, mais organizado será o seu ambiente, e também a sua mente. Da gaveta da bagunça ao arquivo e vice-versa O fato de nossos cérebros serem inerentemente capazes de criar categorias é uma poderosa alavanca para organizarmos nossas vidas. Podemos criar os ambientes de nossa casa e nosso trabalho de tal modo que eles se tornem extensões de nossos cérebros. Ao fazê-lo, precisamos aceitar a capacidade limitada de nosso executivo central. O relato padrão durante muitos anos foi de que a memória e a atenção chegavam a seu limite ao lidar com cinco a nove itens sem relação um com o outro. Experiências mais recentes demonstraram que, em termos mais realísticos, esse número provavelmente está mais próximo de quatro.28 A chave para criar categorias úteis em casa é limitar a um, ou no máximo a quatro, o tipo de coisas que elas incluem (respeitando a capacidade limitada da memória funcional). Isso geralmente é fácil de fazer. Se você tiver uma gaveta de cozinha que contenha guardanapos, espetos para kebab, fósforos, velas e descansos de copo, você pode designá-la como apetrechos de festa. Ao fazer essa conceituação, unimos todos esses objetos disparatados num nível superior. E então, quando alguém lhe der um sabonete especial que você só quer usar ao receber visitas, você saberá em que gaveta guardá-lo. Nosso cérebro tem fortes circuitos implantados para criar categorias como essa, categorias cognitivamente flexíveis que podem ser arrumadas de modo hierárquico. Isto é, existem diferentes níveis de determinação do que constitui um tipo, e eles são dependentes do contexto. O armário do seu quarto provavelmente contém roupas que podem ser subdivididas em categorias especializadas, como roupas de baixo, camisas, meias, calças e sapatos. Isso ainda pode ser subdividido se você colocar todos os seus jeans num lugar e as calças mais formais em outro. Ao arrumar a casa, você pode jogar no armário tudo que tem relação com roupas e depois arrumá-lo de modo mais apurado. Pode botar tudo que diz respeito a ferramentas na garagem, separando depois pregos de martelos, parafusos de chaves de fenda. A observação importante é que podemos criar nossas próprias categorias, e elas são eficientes ao máximo, em termos neurológicos, se pudermos encontrar um único fio que una todos os seus integrantes. David Allen, o perito em eficiência, comenta que geralmente o que as pessoas expressam quando dizem que querem se organizar é o desejo de controlar seu ambiente físico e psíquico.29 Um achado pertinente da psicologia cognitiva para se adquirir esse controle é tornar visível o que você precisa regularmente e esconder aquilo de que não precisa.30 Esse princípio foi originalmente formulado para a concepção de objetos como o controle remoto da televisão. Ponha de lado por um instante sua irritação com a quantidade de botões que esses objetos ainda possuem — é evidente que você não quer que o botão de ajuste de cores fique ao lado do botão para mudar de canal, pois você pode apertá-lo por engano. Nos melhores designs, os controles de configuração que são raramente usados ficam escondidos atrás de uma tampa, ou pelo menos afastados dos botões que você usa com frequência. Ao organizar sua casa, as metas são desonerar o cérebro de algumas das funções da memória e descarregá-las no ambiente; manter seu ambiente visualmente organizado, de modo a não distraí-lo quando você quer relaxar, trabalhar ou achar algo; e criar determinados lugares para as coisas, para que sejam achadas com facilidade.31 Imagine que você tenha um espaço limitado para suas roupas e para alguns artigos de vestimenta que você raramente usa (smokings, vestidos de noite, roupas para esquiar). Transfira-os para outro armário, de modo que não ocupem espaço privilegiado e você possa organizar suas roupas diárias com mais eficiência. O mesmo se aplica à cozinha. Em vez de botar todos os seus artigos de confeitaria numa gaveta, faz sentido, em termos de organização, guardar suas formas de biscoitos de Natal numa gaveta especial dedicada a itens natalinos, de modo a reduzir o chocalhar na sua gaveta de uso diário — algo que você só usa durante duas semanas por ano não deveria ser um estorvo durante cinquenta semanas por ano. Guarde selos, envelopes e papéis na mesma gaveta da escrivaninha, porque você os usa conjuntamente. A exposição de garrafas de bebida em bares e tabernas movimentadas (lugares que muitos consideram seus lares) obedece a este princípio.32 As bebidas constantemente usadas ficam ao alcance da mão do barman, naquilo que ele chama prateleira da velocidade, presa à base do bar; usando esta prateleira, gasta-se pouco movimento e pouca energia mental para procurar garrafas ao preparar drinks populares. Com menor frequência, as garrafas vazias ficam de um lado, ou numa prateleira atrás. Então, num sistema assim, as garrafas de destilado semelhantes ficam lado a lado: os três ou quatro bourbons mais populares ao alcance da mão, um do lado do outro; os três ou quatro uísques escoceses mais populares ao lado deles, e os uísques de malte puro ao lado destes últimos. A configuração do que fica na prateleira da velocidade, tanto quanto do que fica em exposição, leva em consideração as preferências locais. Um bar em Lexington, Kentucky, teria muitas marcas conhecidas de bourbon expostas; um bar na universidade teria mais vodca e tequila.33 Num sistema bem organizado há um equilíbrio entre a abrangência da categoria e a sua especificidade. Em outras palavras, se você tiver apenas um punhado de pregos, seria uma bobagem dedicar uma gaveta inteira a eles. É mais eficiente e prático, portanto, combinar esses itens em categorias conceituais como “itens de reparos caseiros”. No entanto, quando a quantidade de pregos atingir uma massa crítica, e você levar muito tempo no domingo tentando achar exatamente o prego de que precisa, faz sentido separálos por tamanho em latinhas, como fazem na loja de ferragens. O tempo também merece ser pensado com cuidado: você espera usar essas coisas no decorrer de poucos anos? Seguindo Fedro, mantenha o tipo de flexibilidade que lhe permita criar categorias de “todo o resto” — uma gaveta da bagunça. Mesmo que você tenha um sistema extremamente organizado em que cada gaveta, cada prateleira e cada escaninho em sua cozinha, escritório ou oficina sejam etiquetados, haverá com frequência coisas que não se encaixam em nenhum sistema existente. Ou, por outro lado, você pode ter coisas em quantidade insuficiente para dedicar uma gaveta inteira a elas. De um ponto de vista puramente obsessivo-compulsivo, seria bom ter toda uma gaveta dedicada apenas a lâmpadas, outra a adesivos (cola, adesivo forte, epóxi, fita dupla face), e uma terceira para a sua coleção de velas. Mas se você tiver apenas uma única lâmpada e um tubo de cola pela metade, isso não faz sentido. Dois passos neurologicamente embasados para criar sistemas de informação caseiros são: primeiro, as categorias que você cria precisam refletir o modo como você usa e interage com seus pertences. Isto é, as categorias precisam fazer sentido para você. Precisam levar em conta o seu estilo atual de vida. (Todas aquelas iscas de pescaria em forma de mosca que seu avô lhe deixou podem ficar na caixa de pescaria, desarrumadas, até que você adote, algumas décadas depois, a pescaria com iscas assim, quando então vai querer arrumar as iscas com mais precisão.) Segundo, evite botar itens muito dessemelhantes numa gaveta ou pasta, a não ser que você crie um tema mais geral que os englobe. Se não for possível, MISCELÂNEA, BAGUNÇA ou INDISCRIMINADOS servem. Mas se você já tem quatro ou cinco gavetas de bagunça, talvez seja a hora de rearrumar e reagrupar o conteúdo delas, em MISCELÂNEA DE CASA contraposta a MISCELÂNEA DE JARDIM, contraposta a COISAS DE CRIANÇAS, por exemplo. Além desses passos práticos personalizados, obedeça a três regras gerais de organização. Regra de organização 1: Um item ou uma localização com etiqueta errada é pior do que um item sem etiqueta nenhuma. Num pique de energia, Jim rotula uma gaveta de seu escritório com SELOS E ENVELOPES e outra com PILHAS. Depois de uns dois meses, ele troca o conteúdo das gavetas porque acha difícil se curvar quando precisa distinguir pilhas AAA de pilhas AA. Não troca as etiquetas porque dá muito trabalho, e acha que não é importante, porque ele sabe onde elas estão. Isso é uma ladeira escorregadia! Se você deixar etiquetas erradas nas gavetas, é questão de pouco tempo até relaxar na tarefa de criar “um lugar para tudo e tudo no seu lugar”. Também dificulta que qualquer outra pessoa ache alguma coisa. Algo sem rótulo é preferível, na verdade, porque provoca este tipo de conversa: “Jim, onde você guarda suas pilhas?”, ou, se Jim estiver ausente, uma busca sistemática. Se as gavetas têm etiquetas erradas, você não sabe em qual confiar ou não. Regra de organização 2: Se existe um padrão, use-o. Melanie tem uma lata de lixo reciclável e outra de lixo comum debaixo da pia da cozinha. Uma é azul, e a outra, cinza. Do lado de fora, as latas fornecidas pelo sistema de coleta de lixo da cidade são azuis (reciclagem) e cinza (lixo comum). Ela deveria se ater a esse sistema de código colorido porque é o padrão, e assim não precisaria memorizar dois sistemas diferentes e opostos. Regra de organização 3: Não guarde aquilo que você não pode usar. Se você não precisa de algo, ele está quebrado ou não dá para consertar, livre-se dele. Avery pega uma esferográfica na gaveta das canetas e percebe que não está escrevendo. Ela tenta tudo que sabe para fazê-la funcionar — umedece a ponta, esquenta com o isqueiro, sacode e faz rabiscos circulares num pedaço de papel. Como nada disso funciona, ela devolve a caneta à gaveta e pega outra. Por que ela faz isso? Por que também fazemos? Pouca gente sabe exatamente o que faz uma caneta funcionar. Recebemos uma recompensa aleatória pelo esforço que fazemos para obrigá-la a escrever — às vezes temos êxito, às vezes não. Devolvemos à gaveta pensando: “Talvez funcione da próxima vez”. Mas uma gaveta entulhada com uma miscelânea de canetas, algumas funcionando, outras não, é um sorvedouro cerebral. É melhor jogar fora a caneta com defeito. Ou, se você não aguenta essa solução, determine uma caixa ou gaveta especiais para canetas recalcitrantes que um dia você tentará fazer funcionar. Se você guarda os calços de borracha sobressalentes que vieram junto com seu aparelho de TV que já deixou de funcionar, jogue fora esses calços. Imagino que as pessoas ainda estarão assistindo a algo chamado TV quando este livro for publicado. O lar digital Décadas de pesquisas demonstraram que o aprendizado humano é influenciado pelo local onde se dá esse aprendizado. Alunos que estudaram para uma prova na mesma sala onde a realizaram saíram-se melhor do que aqueles que estudaram em outro lugar qualquer.34 Quando voltamos para o nosso lar de infância depois de uma longa ausência, uma enxurrada de lembranças esquecidas vem à tona. Daí a importância de termos um local próprio para cada um de nossos pertences — o hipocampo recorda por nós se associarmos algum objeto a uma determinada localização espacial. O que acontece na nossa casa quando a informação se torna cada vez mais digital? Há uma série de implicações importantes, numa época em que tantos trabalham em casa, ou fazem trabalho do escritório em casa. Uma das maneiras de aproveitar o estilo de armazenamento de memórias naturalmente adaptadas ao hipocampo é criar diferentes espaços de trabalho para os diferentes tipos de trabalho que fazemos. Mas usamos o mesmo monitor para ver nosso saldo bancário, responder aos e-mails do chefe, fazer compras on-line, assistir a vídeos de gatos tocando piano, armazenar fotos de nossos entes queridos, ouvir nossa música favorita, pagar contas e ler as notícias diárias. Não é de admirar que não consigamos lembrar tudo — o cérebro simplesmente não foi projetado para receber tanta informação em um só lugar.35 Esse conselho é provavelmente um luxo para poucos, mas em breve será possível, à medida que o preço dos computadores baixar: se você puder, ajuda bastante ter um aparelho reservado para determinado assunto. Em vez de usar seu computador para assistir a vídeos e ouvir música, arranje um aparelho de mídia específica para isso (iPod, iPad). Tenha um computador para negócios pessoais (contas e impostos), um segundo para atividades pessoais e de lazer (planejamento de viagens, compras on-line, armazenamento de fotos) e um terceiro para trabalhar. Crie diferentes planos de fundo para as áreas de trabalho, de maneira que as deixas visuais ajudem sua memória a situá-lo em relação a cada computador. O neurologista e escritor Oliver Sacks vai ainda mais longe: se você estiver trabalhando em dois projetos completamente diferentes, dedique uma escrivaninha ou mesa, ou parte da casa, para cada um deles. O simples fato de entrar num espaço diferente equivale a apertar a tecla de restaurar no cérebro, o que permite pensar de modo mais criativo e produtivo. Se não for possível ter dois ou três computadores diferentes, hoje a tecnologia permite que você tenha HDs externos com a mesma capacidade que seu HD instalado — você pode plugar um HD externo de “lazer”, de “trabalho” ou de “finanças pessoais”. Ou, em vez disso, em alguns computadores, os diversos modos para usuários diferentes mudam o display da área de trabalho, os arquivos disponíveis e o aspecto geral, o que facilita criar essas distinções localizadas, impulsionadas pelo hipocampo. Isso nos leva à quantidade considerável de informação que ainda não foi digitalizada — vocês sabem, impressa nesse negócio chamado papel. Há duas escolas de pensamento que se opõem na questão de como organizar papéis relacionados a questões domésticas. Nessa categoria estão incluídos os manuais de instrução de vários aparelhos elétricos e eletrônicos, garantias de serviços e produtos adquiridos, contas pagas, cheques cancelados, apólices de seguro, outros documentos cotidianos e recibos. Malcolm Slaney, engenheiro da Microsoft com passagem por Yahoo!, IBM e Apple, aconselha escanear tudo em PDF e guardar no computador. Os escâneres domésticos são relativamente baratos, e existem aplicativos incrivelmente bons para escanear nos celulares. Se for algo que você queira guardar, diz Malcolm, escaneie e salve com nome próprio num arquivo e numa pasta que o ajudarão a encontrá-lo depois. Utilize o modo OCR (reconhecimento ótico de caracteres), de modo que o PDF seja legível como caracteres de texto e não como simples imagem do documento, permitindo assim que a função de busca do seu próprio computador encontre palavras-chave específicas que você esteja buscando. A vantagem do arquivamento digital é que ele praticamente não ocupa espaço, não altera o ambiente e possibilita a busca eletrônica. Melhor ainda, se você quiser compartilhar o documento com alguém (seu contador, um colega), ele já está em formato digital, e, assim, basta simplesmente anexá-lo a um e-mail. A segunda escola de pensamento é defendida por uma pessoa que chamarei de Linda, que trabalhou durante muitos anos como assistente executiva do presidente de uma dessas cem grandes companhias listadas pela Fortune. Ela pediu anonimato para resguardar a privacidade do chefe (que excelente assistente executiva!). Linda prefere guardar cópias de tudo em papel. A principal vantagem do papel é que ele é quase permanente. Em virtude das rápidas mudanças tecnológicas, os arquivos digitais raramente são legíveis depois de dez anos: o papel, por outro lado, dura centenas de anos. Muitos usuários de computador tomaram conhecimento, com grande surpresa, do seguinte fato: depois que seus computadores quebram, muitas vezes não é possível comprar um computador que contenha o antigo sistema operacional, e os novos sistemas não conseguem abrir seus velhos arquivos! Registros financeiros, declarações de impostos, fotos, música — tudo perdido. Nas grandes cidades, é possível encontrar quem converta seus arquivos em velho formato para novo formato, mas isso pode custar caro, ser incompleto e imperfeito. Os elétrons são gratuitos, mas tudo tem seu custo. Outras vantagens do papel é que ele não pode ser tão facilmente alterado ou editado, nem corrompido por vírus, e você pode lê-lo mesmo quando falta energia elétrica. E ainda que o papel possa ser destruído pelo fogo, o seu computador também pode. Apesar de comprometidos cada um com sua causa, até Malcolm e Linda guardam muitos de seus arquivos no formato que não é de sua preferência. Em alguns casos, porque é assim que chegam a nós — recibos de compras on-line são enviados como arquivos digitais por e-mail; as cobranças de pequenas companhias ainda chegam pelo correio, em papel. Existem maneiras de organizar os dois tipos de informação, digital e em papel, de modo a maximizar sua utilidade. O mais importante é a facilidade de recuperá-la. Para o papel, o clássico arquivo de escritório ainda é o melhor sistema conhecido. A última palavra dessa tecnologia é o sistema de pastas suspensas, inventado por Frank D. Jonas e patenteado em 1941 pela Oxford Filing Supply Company, que mais tarde se tornou a Oxford Pendaflex Corporation.36 A Oxford e as escolas de secretariado descobriram princípios de criar pastas de arquivos, tudo para fazer com que as coisas fiquem mais fáceis de guardar e recuperar. Quando se trata de uma pequena quantidade de arquivos, digamos, menos de trinta, geralmente basta etiquetá-los e arrumá-los em ordem alfabética. Se forem mais, é melhor ordenar as pastas alfabeticamente dentro de categorias mais gerais, como CASA, FINANÇAS, FILHOS e assim por diante. Use o ambiente concreto para separar essas categorias — gavetas diferentes no arquivo, por exemplo, podem guardar diversas categorias mais gerais; dentro de uma gaveta, pastas — ou etiquetas de pastas — de cores diferentes nos possibilitam distinguir as categorias com maior rapidez. Algumas pessoas, especialmente as que sofrem de transtorno do déficit de atenção, entram em pânico se não conseguem distinguir todos os seus arquivos à primeira vista. Para isso, existem arquivos vazados que não usam gavetas, e assim elas não ficam escondidas. Uma regra prática que muitas vezes se ensina sobre os sistemas tradicionais de arquivamento (isto é, botar papéis em pastas suspensas) diz que não devemos manter pastas com um único documento — isso é muito ineficaz. O objetivo é agrupar documentos em categorias para que sua pasta contenha de cinco a vinte e tantos documentos distintos. Com menos do que isso, fica difícil verificar rapidamente as etiquetas das inúmeras pastas; com mais do que isso, você perde tempo folheando o conteúdo da pasta. A mesma lógica se aplica à criação de categorias para objetos domésticos e de trabalho. Montar um sistema de arquivamento doméstico não significa apenas colar uma etiqueta numa pasta. O melhor é ter um plano. Reserve um tempo para pensar em que consistem os diferentes documentos que você está arquivando. Pegue aquela pilha de papéis que estão sobre sua mesa e que há meses você vem pretendendo arrumar e crie categorias gerais nas quais eles se encaixem. Se o total de suas pastas de arquivos é menor do que, digamos, vinte, simplesmente destine uma pasta para cada tópico e arrume-as em ordem alfabética. Mas se forem mais, você simplesmente vai perder tempo na hora de procurar as pastas. Você pode ter categorias como FINANÇAS, COISAS DE CASA, MÉDICOS e MISCELÂNEA (a gaveta da bagunça do seu sistema, para coisas que não se encaixam em nenhum outro lugar: vacinas de animais domésticos, renovação da carteira de motorista, brochuras sobre aquela viagem que você quer fazer nas próximas férias).37 Documentos para cada tópico devem ter sua própria pasta. Em outras palavras, se você tem uma conta de poupança, uma conta-corrente e uma capitalização para aposentaria, todas elas separadas, não coloque-as sob a etiqueta ASSUNTOS BANCÁRIOS; tenha uma pasta para cada assunto. A mesma lógica se aplica a todo tipo de objeto. Não gaste mais tempo arquivando e classificando do que gastaria pesquisando. No caso de documentos que você precisa acessar com alguma frequência, digamos, prontuários médicos, crie pastas de arquivos e categorias que facilitem encontrá-los — pastas separadas para cada membro da família, ou pastas para MÉDICOS CLÍNICOS, DENTISTAS, OFTALMOLOGISTAS e assim por diante.38 Se você tiver uma porção de pastas com apenas um documento, integre-as em um tema mais abrangente. Crie um arquivo especial para documentos importantes aos quais precisa ter acesso de modo regular, como passaporte, certidão de nascimento ou contrato do plano de saúde. É claro que todos os princípios que se aplicam a pastas de arquivos concretas também se aplicam às pastas de arquivos virtuais do seu computador. A vantagem evidente do computador é que você pode armazenar seus arquivos de modo totalmente desorganizado, pois a função de busca geralmente irá ajudá-lo a achá-los quase de imediato (se você conseguir se lembrar dos nomes que deu a eles). Mas isso impõe um ônus à sua memória — pressupõe que você registre e se lembre de cada nome de arquivo que já tenha usado. Os arquivos e pastas organizados hierarquicamente têm a grande vantagem de poder ser percorridos para que você redescubra arquivos de que havia se esquecido. Isso translada a memória do cérebro para o computador. Se você realmente adotar a ideia de fazer cópias eletrônicas de seus documentos importantes, pode criar bancos de dados e hyperlinks relacionais bastante flexíveis. Por exemplo, imaginemos que você faça sua contabilidade pessoal no Excel e tenha escaneado todos os seus recibos e faturas, armazenando-os em arquivos PDF. Dentro do Excel, você pode vincular qualquer entrada em uma célula a um documento no seu computador. Você quer procurar a garantia e o recibo de sua jaqueta de pesca Orvis? Busque Orvis no Excel, clique duas vezes na célula e você terá o recibo pronto para mandar por e-mail para o Departamento de Atendimento ao Cliente. Não são apenas documentos financeiros que podem ser vinculados dessa maneira. Num documento do Word em que você cita documentos de pesquisa, você pode criar links para esses documentos no seu HD, no servidor de uma empresa ou na nuvem. Doug Merrill, ex-diretor de TI e vice-presidente de engenharia do Google, diz: “A organização não é — nem deve ser — igual para todos”. No entanto, existem aspectos fundamentais como as listas de coisas a fazer, carregar blocos de anotações e fichas, ou “pôr tudo em determinado lugar e lembrar esse lugar”.39 Mas esperem um momento — embora muitos de nós tenham escritório em casa e paguem contas em casa, nada disso parece muito caseiro. A casa não tem nada a ver com arquivos. O que há de bom em estar em casa? Aquela sensação de controle tranquilo e seguro de como passar seu tempo? O que você faz em casa? Se for como a maioria dos americanos, é multitarefa. Esse termo do início do século não se restringe mais ao trabalho. Os smartphones e tablets vieram para ficar. Nossos celulares se tornaram instrumentos parecidos com canivetes suíços, contendo dicionários, calculadora, navegador de internet, e-mail, jogos, calendário, agenda, gravador de voz, afinador de guitarra, a previsão do tempo, GPS, processador de texto, Twitter, Facebook e lanterna. Eles são mais potentes e fazem mais coisas do que o computador mais avançado da sede da IBM fazia há trinta anos. E nós os usamos o tempo todo, como parte de uma mania do século XXI de encaixar todas as nossas atividades em todo momento livre que temos. Digitamos texto ao atravessar a rua, atualizamos os e-mails na fila do mercado e, enquanto almoçamos com amigos, de forma furtiva verificamos o que fazem os outros amigos. Na bancada da cozinha, na segurança e no aconchego do lar, fazemos listas de compras em nossos smartphones enquanto escutamos aquele podcast maravilhosamente informativo sobre apicultura urbana. Mas há um senão. Apesar de acharmos que estamos fazendo várias coisas ao mesmo tempo, está demonstrado que isso é uma poderosa e diabólica ilusão. Earl Miller, neurocientista do MIT e um dos peritos mundiais em atenção dividida, diz que nossos cérebros “não foram feitos para realizar bem muitas tarefas ao mesmo tempo [...]. Quando as pessoas acham que estão fazendo muitas tarefas simultaneamente, estão na realidade mudando muito rápido de uma tarefa para outra. E toda vez que o fazem, o fazem a um custo cognitivo”.40 Portanto, na verdade, não mantemos uma porção de bolas no ar como bons malabaristas; somos mais parecidos com um equilibrista de pratos amador, passando freneticamente de uma tarefa a outra, ignorando a que não se encontra diretamente diante de nós, mas temerosos de que ela caia sobre nós a qualquer momento.41 Apesar de acharmos que estamos realizando muita coisa, ironicamente, está comprovado que a multitarefa compromete a nossa eficiência. Descobriu-se que a multitarefa aumenta o hormônio do estresse, o cortisol, além do hormônio da luta/fuga, a adrenalina, que podem superestimular o cérebro e causar entorpecimento mental ou pensamento confuso. Ela cria um laço viciante de dopamina em feedback, que na realidade recompensa o cérebro por perder o foco e buscar constantemente estímulos externos. Para piorar as coisas, o córtex pré-frontal tem uma preferência pela novidade. Isso significa que ele pode ser facilmente sequestrado por algo novo — o conhecido objeto brilhante que usamos para atrair a atenção de bebês, cãezinhos e gatinhos. A ironia disso para aqueles que estão tentando se concentrar em meio a atividades que competem entre si é clara: a região cerebral da qual dependemos para nos manter focados na tarefa é facilmente distraída. Atendemos o telefone, olhamos algo na internet, verificamos o e-mail, mandamos um SMS, e cada uma dessas coisas atiça os centros cerebrais que buscam novidades e recompensas, causando um surto de opiáceos endógenos (não é de admirar que a sensação seja tão boa), tudo em detrimento de se ater à tarefa. É como um doce para o cérebro, sem valor nutricional e repleto de calorias. Em vez de colher as grandes recompensas advindas do esforço concentrado e constante, colhemos pequenas recompensas advindas de mil pequenas tarefas cobertas de glacê. Nos velhos tempos, se o telefone tocasse e estivéssemos ocupados, ou não atendíamos ou desligávamos a campainha. Quando todos os telefones eram fixos, ninguém tinha a expectativa de poder falar conosco o tempo todo — podíamos ter saído para uma caminhada ou estar no trânsito, e assim, se alguém não conseguia nos encontrar (ou não quiséssemos ser encontrados), isso era considerado normal. Mas hoje há mais pessoas com celulares do que com banheiros.42 Isso criou a expectativa implícita de que devemos conseguir encontrar alguém sempre que for da nossa conveniência, ainda que não seja da conveniência da pessoa. Essa expectativa está tão inculcada que, enquanto estão em reuniões, as pessoas muitas vezes atendem o celular apenas para dizer: “Sinto muito, não posso falar agora, estou numa reunião”. Apenas uma década ou duas atrás, essas mesmas pessoas não atenderiam o telefone fixo na mesa durante uma reunião, porque as expectativas de se poder falar com alguém eram muito diferentes. A simples oportunidade de fazer várias tarefas ao mesmo tempo já é suficiente para prejudicar o desempenho cognitivo. Glenn Wilson, do Gresham College, em Londres, a chama de infomania. Em uma pesquisa, Wilson descobriu que o simples fato de a pessoa estar tentando se concentrar numa tarefa e perceber que há um e-mail não lido na sua caixa de entrada pode subtrair dez pontos do seu QI.43 E apesar de muitos alegarem que a maconha traz muitos benefícios, inclusive um acréscimo de criatividade e uma diminuição do limiar da dor e do estresse, está comprovado que o seu principal ingrediente, o canabinol, se liga a receptores especiais de canabinol no cérebro que interferem profundamente na memória e na capacidade de concentração simultânea em várias coisas. Wilson demonstrou que as perdas cognitivas provocadas pela multitarefa são até maiores do que aquelas provocadas pelo uso da maconha. Russ Poldrack, um neurocientista de Stanford, descobriu que adquirir informação enquanto se realiza muitas tarefas ao mesmo tempo faz com que a informação vá para a parte errada do cérebro. Se os estudantes estudam enquanto veem TV, por exemplo, a informação que extraem de seus deveres de casa vai para o corpo estriado, região especializada no armazenamento de novos procedimentos e habilidades, e não fatos e ideias. Sem a distração representada pela TV, a informação vai para o hipocampo, onde é organizada e ordenada em categorias, de várias formas, o que torna mais fácil recuperá-la.44 Earl Miller, do MIT, acrescenta: “As pessoas não conseguem fazer bem [muitas tarefas ao mesmo tempo] e, se dizem que podem, estão se iludindo”.45 E o fato é que o cérebro é muito eficiente nesse negócio de se autoiludir.46 Há também os custos metabólicos da própria troca de atividades, sobre os quais falei antes.47 Pedir que o cérebro transfira a atenção de uma atividade para outra faz com que o córtex pré-frontal e o corpo estriado queimem glicose oxigenada, o mesmo combustível de que precisa para se manter focado em uma tarefa. E esse tipo de troca rápida e contínua, durante a realização de tarefas simultâneas, faz com que o cérebro queime combustível tão rápido que nos sentimos exaustos e desorientados até mesmo após pouco tempo. Literalmente exaurimos os nutrientes em nosso cérebro.48 Isso leva a um comprometimento tanto do desempenho físico quanto do cognitivo. Entre outras coisas, a troca repetitiva de tarefas leva à ansiedade,49 que aumenta no cérebro os níveis de cortisol, o hormônio do estresse, o que por sua vez pode levar a comportamentos agressivos e impulsivos.50 Por outro lado, manter o foco em uma tarefa é atribuição do cingulado anterior e do corpo estriado, e, depois que ligamos o modo executivo central, empregamos menos energia; na verdade, reduzimos a necessidade de glicose do cérebro.51,52 Para piorar, fazer várias coisas ao mesmo tempo muitas vezes requer tomadas de decisão: respondo ou não a esta mensagem de texto? Como devo reagir a isto? Como vou arquivar este e-mail? Continuo a fazer o que estou fazendo agora ou dou um descanso? Acontece que as tomadas de decisão requerem muito esforço de seus recursos neuronais, e pequenas decisões parecem consumir tanta energia quanto grandes. Uma das primeiras coisas que perdemos é o controle do impulso. Isso decai rápido num estado de cansaço, no qual, depois de tomarmos várias pequenas decisões, acabamos tomando decisões realmente ruins sobre algo importante. Por que alguém haveria de acrescentar ao peso diário do processamento de informação a tentativa de realizar várias tarefas simultâneas? Ao discutir a sobrecarga de informação com os quinhentos líderes da Fortune, cientistas de ponta, escritores, estudantes e pequenos empresários, o e-mail aparece cada vez mais como um problema. Não se trata de uma objeção filosófica ao e-mail em si, mas da quantidade entorpecedora de e-mails que recebemos. Quando perguntaram qual era o trabalho do pai ao filho de dez anos de meu colega Jeff Mogil, um neurocientista, ele respondeu: “Ele responde a e-mails”. Depois de pensar um pouco, Jeff concluiu que isso não estava longe de ser verdade. Funcionários públicos, das artes e da indústria relatam que a quantidade de e-mails que recebem é simplesmente avassaladora, ocupando grande parte de seu dia. Nós nos sentimos na obrigação de responder aos e-mails, mas parece impossível fazer isso e conseguir fazer outra coisa. Antes do e-mail, se quisesse escrever para alguém, precisava investir algum esforço nisso. Você se sentava com papel e caneta, ou máquina de escrever, e compunha com cuidado uma mensagem. O meio não tinha nada que lhe predispusesse a disparar rápidas anotações sem pensar muito, em parte por causa do ritual envolvido, e do tempo que se levava para escrever a mensagem, procurar o endereço e um envelope, acrescentar o selo e ir até uma caixa de correio. Uma vez que o próprio ato de escrever um bilhete ou carta a alguém demandava tantos passos e se estendia no tempo, não nos dávamos esse trabalho a não ser que tivéssemos algo importante a dizer. Em virtude do caráter imediato do e-mail, a maioria de nós não pensa duas vezes em digitar qualquer coisa que vem à cabeça e dar o comando de enviar. E o e-mail não custa nada. Certo, há o dinheiro que custou o computador e a conexão da internet, mas não existe nenhum custo adicional para enviar mais um e-mail. Compare isso com as cartas escritas em papel. Cada uma representa o custo do envelope e do selo, e, embora isso não represente muito dinheiro, a quantidade desses itens é limitada, e, se acabassem, você teria de ir à papelaria e ao correio comprar mais, então não os usava frivolamente. A simples facilidade de enviar emails levou a uma mudança de modos, uma tendência a sermos menos polidos em relação ao que pedimos aos outros. Muitos profissionais contam o mesmo caso. Diz um deles: “Uma boa parte dos e-mails que recebo são de pessoas que mal conheço, me pedindo que faça algo que normalmente estaria fora do escopo do meu trabalho e da minha relação com elas. Parece que o e-mail torna viável que as pessoas peçam coisas que jamais pediriam por telefone, ou pessoalmente, ou por correspondência a passo de lesma, à moda antiga”. Há também diferenças importantes entre a correspondência antiga e o e-mail, na extremidade receptora. Nos velhos tempos, a única correspondência que recebíamos chegava uma vez por dia, o que de fato criava um momento especial e distinto do dia para pegá-la da caixa de correio e separá-la. E, o mais importante, já que levava alguns dias para chegar, não havia nenhuma expectativa de que você respondesse de imediato. Se estivesse comprometido com alguma outra atividade, você simplesmente deixava que a correspondência esperasse numa caixa do lado de fora, ou na sua mesa, até estar pronto para lidar com ela. Parecia até meio estranho ir correndo até a caixa de correio no momento em que o carteiro deixava a correspondência ali. (Ela levara dias para chegar, que diferença fariam alguns minutos a mais?) Agora os e-mails chegam sem parar, e a maioria exige uma resposta de algum tipo: clique no link para ver o vídeo de um bebê panda, ou responda à pergunta do colega de trabalho, ou marque um almoço com um amigo, ou delete aquele e-mail como spam. Toda essa atividade nos dá uma sensação de estar trabalhando — e, em alguns casos, isso é verdade. Mas estamos sacrificando a eficiência e a concentração profunda quando interrompemos nossas atividades prioritárias em prol do e-mail. Até recentemente, cada um dos muitos modos de comunicação que usávamos assinalava a relevância, a importância e o objetivo dele. Se um ente querido se comunicava com você através de um poema ou uma canção, antes mesmo que a mensagem se tornasse aparente você tinha motivos para presumir algo sobre seu conteúdo e seu valor emocional. Se o mesmo ente querido se comunicasse, em vez disso, através de uma intimação entregue por um oficial de justiça, você já haveria de esperar um conteúdo diferente antes mesmo de ler a mensagem. Do mesmo modo, os telefonemas eram usados para um tipo de contato diferente das cartas comerciais e dos telegramas. O meio dava uma pista sobre a mensagem. Mas tudo isso mudou com o e-mail, e esta é uma de suas desvantagens que passa despercebida — ele é usado praticamente para tudo. Nos velhos tempos, é provável que você separasse a sua correspondência em duas pilhas, referentes, mais ou menos, a cartas pessoais e contas. Se você fosse um gerente corporativo com uma agenda ocupada, poderia colocar uma mensagem eletrônica para responder as ligações. Mas os e-mails são usados para todas as mensagens da vida. Verificamos compulsivamente a caixa de e-mails em parte porque não sabemos se a próxima mensagem será de lazer/diversão, de uma conta atrasada, um lembrete de um compromisso, alguma pergunta... algo que você possa fazer agora, depois, algo que mude sua vida, ou algo irrelevante. Essa incerteza provoca o caos no nosso sistema de percepção rápida de categorias, além de estresse, e leva a uma sobrecarga decisória. Todo e-mail requer uma decisão! Respondo? Se for o caso, agora ou depois? Que importância tem? Quais serão as consequências sociais, econômicas e profissionais se eu não responder, ou se eu não responder agora mesmo? É claro que o e-mail, hoje, está ficando quase obsoleto como meio de comunicação. A maioria das pessoas com menos de trinta anos acha o e-mail um modo antiquado de comunicação só usado por “gente velha”. No lugar dele, mandam mensagens de texto, e algumas ainda postam no Facebook. Anexam documentos, fotos, vídeos e links a suas mensagens de texto e posts no Facebook, do mesmo modo que pessoas com mais de trinta fazem com o e-mail. Muita gente com menos de vinte anos hoje vê o Facebook como uma ferramenta da geração mais velha. Para eles, a mensagem de texto tornou-se o principal meio de comunicação. Ela oferece a privacidade que os telefonemas não propiciam, e um imediatismo que não se tem com o e-mail. Linhas diretas para lidar com crises começaram a aceitar chamadas de jovens em situações de risco por meio de mensagens, o que lhes dá duas grandes vantagens: podem lidar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo e transferir a conversa para um especialista, se necessário, sem interrompê-la.53 Mas a mensagem de texto mostra os mesmos problemas que o e-mail, além de outros. Em razão do limite de caracteres, ela desencoraja discussões reflexivas e detalhes em qualquer nível. E os problemas adicionais são trazidos por seu hiperimediatismo. Os e-mails levam um tempinho para abrir caminho pela internet, através de servidores, roteadores e comutadores, e exigem que você dê o passo de abri-los explicitamente. As mensagens de texto surgem de forma mágica na tela de seu telefone, exigindo atenção imediata. Além disso, a expectativa social de que um texto sem resposta pode parecer um insulto ao remetente dá a receita de um vício: você recebe um texto e isso ativa seus centros de novidade; você responde e se sente recompensado por ter completado uma tarefa (embora ela fosse inteiramente desconhecida para você quinze minutos antes). Cada uma dessas coisas libera uma dose de dopamina, e seu sistema límbico grita: “Mais! Mais! Quero mais!”. Num célebre experimento, James Olds e meu colega da Universidade McGill, Peter Milner, colocaram um pequeno eletrodo no cérebro de ratos, numa pequena estrutura do sistema límbico chamada núcleo accumbens. Essa estrutura regula a produção de dopamina, e é a região que se ilumina quando o jogador ganha a aposta, viciados usam cocaína e as pessoas têm orgasmos — Olds e Milner chamaram-na de centro do prazer. Uma alavanca na gaiola permitia que os ratos enviassem um pequeno sinal elétrico diretamente a seus núcleos accumbens. Vocês acham que eles gostaram? Como não! Gostaram tanto que não faziam mais nada. Esqueceram-se de dormir e de comer. Mesmo com fome, ignoravam o alimento gostoso quando tinham oportunidade de pressionar a pequena barra cromada; chegavam a ignorar a oportunidade de fazer sexo. Os ratos continuaram a apertar a alavanca até morrer de fome e exaustão.54 Isso o faz lembrar alguma coisa? Um homem de trinta anos em Cantão (China) morreu depois de jogar video game sem parar durante três dias. Outro morreu em Daegu (Coreia) depois de jogar video game sem parar por cinquenta horas, interrompido apenas por uma parada cardíaca.55 Toda vez que enviamos um e-mail, de um modo ou de outro, experimentamos uma sensação de realização, e nosso cérebro ganha uma gota de hormônios de recompensa que nos informam que conseguimos realizar algo. Cada vez que verificamos um tuíte no Twitter ou uma atualização no Facebook, encontramos uma coisa nova, nos sentimos mais socialmente conectados (de um estranho modo impessoal cyber) e recebemos outra dose de hormônios de recompensa. Mas não se esqueçam, é a parte burra do cérebro, a que busca novidades, que impele o sistema límbico e induz essa sensação de prazer, e não os centros de pensamento mais elevados no córtex pré-frontal, que planejam, esquematizam. Não se enganem: e-mail, Facebook e Twitter constituem vícios neuronais. O segredo é estabelecer sistemas para nos enganar — para enganar nossos cérebros e fazer com que se atenham às tarefas quando precisamos. Primeiro, determinar certos períodos do dia para lidar com os e-mails. Os peritos recomendam verificar o email de duas a três vezes por dia, deixando-os se acumular, em vez de verificá-los à medida que vão chegando. Muita gente tem seus programas de e-mail configurados para ver automaticamente cada e-mail que chega, ou a cada cinco minutos. Pense só nisto: se você estiver checando os e-mails a cada cinco minutos, estará fazendo isso duzentas vezes no decorrer de um dia de vigília. Isso só pode interferir com o avanço de seus objetivos principais. Talvez você tenha que habituar seus amigos e colegas de trabalho a não esperar respostas imediatas, a usar outros tipos de comunicação, como uma reunião mais tarde no mesmo dia, um encontro no almoço ou uma pergunta rápida. Durante décadas, os funcionários eficientes fechavam a porta e desligavam seus telefones para ter “horas produtivas”, quando podiam se concentrar sem serem perturbados. Desligar nossos e-mails segue essa tradição e de fato acalma o cérebro, tanto neuroquímica quanto neuroeletricamente. Se o tipo de trabalho que você faz não permite isso, configure filtros de e-mail, marcando certas pessoas cuja correspondência passa direto, enquanto o resto se acumula na sua caixa de entrada até você ter tempo de ver. E para pessoas que realmente não podem ficar afastadas do e-mail, o truque eficaz é criar outra conta especial e particular de e-mail, e dar esse endereço somente àqueles que precisam alcançá-lo de imediato, checando suas outras contas só em períodos determinados. Lawrence Lessig — professor de direito de Harvard — e outros promoveram a ideia da falência do e-mail. Em certo momento, você percebe que jamais vai conseguir dar conta das mensagens. Quando isso acontece, delete ou arquive tudo que se encontra na sua caixa de entrada e, em seguida, envie um e-mail coletivo a todos os seus correspondentes explicando que você ficou totalmente descompassado na sua correspondência e que, se algum assunto sobre o qual escreveram ainda for importante, eles devem mandar outro e-mail. A alternativa é fazer como algumas pessoas: criar uma resposta automática a qualquer mensagem de e-mail que chega. Essa resposta pode ser do tipo: “Tentarei responder a seu e-mail dentro da próxima semana. Caso se trate de algo que exija resposta imediata, por favor, me telefone. Se ainda estiver esperando uma resposta minha daqui a uma semana, por favor, reenvie sua mensagem com ‘segunda tentativa’ no assunto”. À medida que aumenta o trabalho paralelo e exige-se de nós que nos dediquemos mais a administrar nossos assuntos pessoais, a necessidade de ter contas com múltiplas companhias aumenta dramaticamente. Memorizar informações de login e senhas é algo difícil porque diferentes sites e provedores impõem restrições fantásticas quanto a esses parâmetros. Alguns provedores insistem em que você use seu endereço de e-mail para fazer o login, outros insistem em que não use; alguns exigem que suas senhas contenham caracteres especiais como $&*#, e outros não permitem nenhum desses. As exigências adicionais incluem a proibição de repetir um caracter mais de duas vezes (de modo que aaa jamais seria admissível na sua senha), ou de não poder usar a mesma senha que você usou nos últimos seis meses. Mas mesmo que logins e senhas pudessem ser uniformizados, não seria uma boa ideia usar o mesmo login e a mesma senha para todas as contas, porque se uma é exposta, todas as outras também serão. Existem vários programas para manter controle sobre as senhas. Muitos armazenam a informação em servidores (na nuvem), o que apresenta uma possível ameaça de segurança — é apenas uma questão de tempo até que hackers invadam e roubem milhões de senhas. Há poucos meses, hackers roubaram as senhas de 3 milhões de clientes da Adobe,56 de 2 milhões de clientes da Vodafone, na Alemanha,57 e de 160 milhões de clientes do cartão de crédito e débito Visa.58 Outras ficam no seu computador, o que as torna menos vulneráveis a ataques externos (embora não 100% seguras), porém mais vulneráveis se roubarem seu computador. Os melhores programas geram senhas diabolicamente difíceis de serem lembradas, e em seguida as armazenam num arquivo em código, de modo que mesmo que alguém consiga pôr as mãos no seu computador, não conseguirá abrir as senhas. Você só precisa lembrar a única senha que abre o arquivo de senhas — e que deve ser uma miscelânea danada de letras em caixa-alta e caixa-baixa, algarismos e símbolos especiais, algo como [email protected]{%mA. Escrever senhas num pedaço de papel ou bloquinho de anotações não é recomendável, porque são a primeira coisa que os ladrões irão procurar. Uma das opções é manter as senhas armazenadas no seu computador, num programa codificado de administração de senhas que reconhecerá os sites que você visita e fará automaticamente o seu login; outros programas simplesmente permitirão que você recupere a senha que perdeu. Uma alternativa barata é salvar suas senhas num arquivo do Excel ou do Word e proteger esse arquivo com senha (assegure-se de escolher uma senha que não irá esquecer, e que não seja igual a outras senhas que você está usando). Nem pense em usar como senha o nome do seu cachorro ou a data do seu aniversário, ou qualquer palavra dicionarizada. Essas são fáceis demais de hackear. Um sistema que otimiza tanto a segurança quanto a facilidade de utilização é gerar senhas de acordo com uma fórmula que você memorizou e então escreveu num pedaço de papel ou num arquivo em código somente para sites que exigem uma alteração dessa fórmula básica. Uma forma inteligente de gerar senhas é pensar numa frase, memorizá-la e em seguida utilizar as primeiras letras de cada palavra da frase.59 Você pode personalizar a 5. M. A. Lombardi, “Why is a minute divided into 60 seconds, an hour into 60 minutes, yet there are only 24 hours in a day?”. Scientific American, 5 mar. 2007; K. Masters, “Why is a day divided into 24 hours? Ask an astronomer”. Disponível em: , 5 abr. 2006. 6. A. Wright, Glut: Mastering information through the ages. Ithaca: Cornell University Press, 2008, p. 257. 7. J. D. North, “Monasticism and the first mechanical clocks”. J. T. Fraser et al. (Orgs.), The study of time II. Nova York: Springer-Verlag, 1975. 8. Centers for Disease Control and Prevention, “Deaths and mortality”, 13 fev. 2014. Disponível em: ; Central Intelligence Agency, The world factbook. Washington, DC: U. S. Government Printing Office, 2010; A. D. N. J. De Grey, “Life span extension research and public debate: Societal considerations”. Studies in Ethics, Law, and Technology, v. 1, n. 1, 2007, pp. 1941-6008. 9. T. B. L. Kirkwood & S. N. Austad, “Why do we age?”. Nature, v. 408, n. 6809, 2000, pp. 233-238. 10. T. B. L. Kirkwood & S. N. Austad, “Why do we age?”. Nature, v. 408, n. 6809, 2000, pp. 233-238. 11. J. W. Shay & W. E. Wright, “Hayflick, his limit, and cellular ageing”. Nature Reviews Molecular Cell Biology, v. 1, n. 1, 2000, pp. 72-76. 12. E. R. Laskowski, “What’s a normal resting heart rate?”. Mayo Clinic, 29 set. 2009). Disponível em: . 13. Sou grato a David Crosby por essa observação. 14. A. Roxin, N. Brunel, D. Hansel, G. Mongillo & C. van Vreeswijk, “On the distribution of firing rates in networks of cortical neurons”. The Journal of Neuroscience, v. 31, n. 45, 2011, pp. 16217-6226. 15. United States Department of Health and Human Services, Office of Population Affairs, “Maturation of the Prefrontal Cortex”, 2013. Disponível em: = 50, |