Por Tássia Biazon e Paulo Muzio Ao mesmo tempo, lícitas ou ilegais, todas as drogas psicoativas podem causar danos. Tanto a maconha quanto o álcool podem provocar efeitos nocivos à saúde, em especial se o consumo ocorre na adolescência, aponta psiquiatra da USP. Na linguagem comum, o termo “drogas” alude às substâncias psicoativas ilícitas: maconha, cocaína, crack, heroína, ecstasy etc. Psicoativas, também conhecidas como psicotrópicas, porque interferem no funcionamento do cérebro. Entre as legais, há aquelas com aplicação médica, como os antidepressivos, e as sem aplicação médica, como o álcool. Entre as ilegais, consumidas por milhões de pessoas no mundo inteiro, estão a maconha, o ópio e a cocaína, substâncias extraídas respectivamente das plantas: cannabis (Cannabis sativa), papoula (Papaver somniferum) e coca (Erythroxylon coca). Lícitas ou ilegais, todas as drogas psicoativas podem causar danos. O psiquiatra, especialista em dependência química e professor da Faculdade de Medicina da USP e da Faculdade de Medicina do ABC, Arthur Guerra de Andrade cita alguns efeitos físicos que o uso da maconha, por exemplo, pode causar, como disparo do coração, diminuição da testosterona no homem e inibição da ovulação na mulher e efeitos psíquicos que dependerão da qualidade da maconha e da sensibilidade de quem fuma (alguns têm uma sensação de calma e relaxamento e outros sentem tremor, sudorese e sensação de angústia). “Os efeitos psíquicos crônicos da maconha, provocados pelo uso continuado, interferem na capacidade de aprendizagem e de memorização, podendo induzir um estado de diminuição da motivação”, explica Andrade. “Há também evidências científicas de que se o usuário tem uma doença psíquica ainda não diagnosticada, ou controlada, a maconha pode piorar o quadro, pois pode anular o efeito dos medicamentos ou ser o ‘estopim’ para a doença se manifestar”, complementa. O psiquiatra diz que as complicações desencadeadas pelo uso de uma droga dependem de vários fatores, como padrão de consumo, precocidade do primeiro uso, via de administração da droga e predisposição individual à dependência. “Não é possível dizer se uma delas é mais prejudicial do que a outra. Tanto a maconha quanto o álcool podem provocar efeitos nocivos à saúde, em especial se o consumo ocorre na adolescência. Por isso, considero inaceitável o uso de álcool e outras drogas por menores de idade”, expõe Andrade. Então, se substâncias psicoativas lícitas e ilícitas podem fazer mal, por que algumas são legalizadas e outras não? Conforme o site do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a substância ser legal ou ilegal não tem uma relação direta com o perigo que ela oferece. Por exemplo, o álcool é uma droga legalizada, mas tem diversos impactos na sociedade. Além disso, as drogas naturais não são menos perigosas do que as drogas sintéticas. Guerra às drogas O documentário The culture high (2014) traz uma reflexão sobre como os Estados Unidos vêm tratando a questão das drogas desde a década de 1960, época em que se intensificou o proibicionismo. A proibição da maconha é um elemento-chave para que alguns grupos de interesse, públicos e privados, obtenham vantagens financeiras. Um exemplo é a Drug Enforcement Administration (DEA), departamento de combate ao narcotráfico da polícia federal americana, criado em 1973. A repetição de informações sem fundamentação científica sobre os malefícios da maconha resultou na reserva, pelo Congresso, de orçamentos cada vez mais fartos ao DEA. As polícias locais obtêm ainda recursos dos confiscos de bens de traficantes, divididos com os federais, e a maconha acaba sendo o principal alvo das batidas. Além disso, sobre a situação de privatização dos presídios, as administradoras estabelecem nos contratos que o Estado mantenha o sistema carcerário com um mínimo de 80% de lotação, para que o negócio seja minimamente lucrativo. Maurício Fiore – cientista social da USP, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) e coordenador de área científica da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD replica watches) – aponta que um século atrás, aproximadamente, praticamente nenhuma droga era criminalizada (no artigo “O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas”). E que, paradoxalmente, o século do proibicionismo também foi o século do crescimento do consumo de drogas. A proibição, enumera Fiore, é dada por uma conjunção de fatores: “A radicalização política do puritanismo norte-americano, o interesse da nascente indústria médico-farmacêutica pela monopolização da produção de drogas, os novos conflitos geopolíticos do século XX e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana”. Indústria farmacêutica: crime organizado? Na reportagem “Miligramas por vaga”, publicada no UOL em março deste ano, é exposto o quanto estudantes estão utilizando medicamentos tarja preta, como a ritalina – usada no tratamento do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informa que os medicamentos de tarja preta, com venda e uso controlados, são considerados psicotrópicos, podendo causar dependência. “Eles exercem ação sedativa ou estimulante sobre o sistema nervoso central. São perigosos e precisam ser tomados seguindo rigorosamente a indicação do médico”, informa o site da agência. “De uma maneira geral, hoje, o mundo consome mais substâncias psicoativas, até porque entre elas estão aquelas que são receitadas por médicos e produzidas pela indústria farmacêutica. Entre as drogas não produzidas pela indústria farmacêutica, as lícitas, como álcool e tabaco, e as ilícitas, como cocaína e maconha, variam muito de país para país, mas também é possível identificar um crescimento”, diz Maurício Fiore. Impactos Em sua tese de doutorado, “Justiça criminal e punição para traficantes e usuários de drogas do Distrito Federal: análise dos processos criminais no período de 2002 a 2010”, defendida em 2016 na Universidade de Brasília (UnB), o sociólogo Rafael Alencar parte da constatação do aumento da população carcerária no Brasil e no Distrito Federal condenada com base na legislação antidrogas. “Os dados do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que, em 2006, a proporção de pessoas presas por tráfico de drogas equivalia a 11% da população carcerária no Brasil; essa proporção passou a ser de 27% em 2012. No Distrito Federal, 22% das presas e dos presos estavam privados de liberdade em virtude do tráfico de drogas; em 2012 essa proporção chegou a 42%. Um fato muito relevante ocorreu nesse período: a entrada em vigor da Lei nº 11.343/06, que passou a disciplinar as sanções aplicáveis aos indivíduos incriminados por porte ou por tráfico de drogas”. A nova lei modificou a 6.368/76 – e uma das novidades foi o aumento da pena mínima para tráfico de drogas, de três para cinco anos. Alencar aponta em sua tese que “a punição é dirigida de maneira diferenciada a determinados delitos e a determinados infratores” e fala sobre seletividade penal. O antropólogo mostra ainda que, em termos absolutos, a população prisional brasileira em 2014 era a quarta maior do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia, sendo que esses últimos apresentaram uma diminuição na taxa de encarceramento entre os anos de 2008 e 2014, enquanto o Brasil teve crescimento de 33%. Entre os muitos conflitos que permeiam a discussão da guerra às drogas, um deles é a diferenciação entre o usuário e o traficante. “As drogas ilícitas têm um pesado estigma, que não é exclusividade brasileira. No entanto, como há uma sobreposição de estigmas, como no caso do usuário de maconha (o maconheiro é o vagabundo, bandido, imprestável etc.), há um reforço de outros traços sociais, como o racismo e o preconceito de classes. Tudo isso é muito dinâmico, como a cultura é, e está em constante transformação, mas ainda há uma enorme resistência social a se debater abertamente sobre o uso de drogas ilícitas”, ressalta Fiore. Durante o IV Seminário Drogas e Direitos Humanos, realizado no final de 2016, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – campus Sorocaba, a terapeuta ocupacional e professora da Universidade de Brasília (UnB), Andrea Gallassi, afirmou que a proibição impacta na saúde pública, ao passo que a estigmatização dos usuários de drogas faz com que não busquem tratamento. “A criminalização distancia as pessoas do tratamento, pelo paradoxo de que o Estado que cuida é o mesmo que pune. O usuário tem dificuldade, um certo receio, na procura por serviços, porque ele faz uso de uma substância proibida e cujo porte é crime”. Para o historiador Henrique Carneiro, a segurança pública é uma questão, não devido às drogas em si, mas à sua proibição, que causa o contexto de violência aguda e crônica. “Os males à saúde pública, inclusive os que abrangem os danos à segurança por conduta irresponsável sob efeito de drogas, só podem ser geridos de forma bem-sucedida num regime em que não haja a proibição”. Por isso, “a legalização da maconha é uma medida indispensável para amenizar a violência, o encarceramento em massa, os lucros clandestinos em mãos criminosas, a ausência de controle e taxação pelo Estado e a verificação da pureza e da dosagem das substâncias”. O(a) senhor(a) também usa drogas, sabia? Disseminado ao longo do espaço e do tempo, é milenar o consumo de drogas – termo que se refere a qualquer tipo de substância natural ou sintética, que quando administrada ou consumida por um organismo, interfere no funcionamento do seu corpo, podendo ser tanto substâncias lícitas (álcool, tabaco, café etc.) e ilícitas (cocaína, crack, ecstasy etc.). Assim, as drogas permeiam o cotidiano da sociedade, onde dificilmente os indivíduos, ao longo de suas vidas, não irão consumir alguma delas, seja na alimentação (chá, café), na medicina, (morfina, penicilina), na recreação (maconha, cocaína) etc. Drogas "não são somente compostos dotados de propriedades farmacológicas determinadas, que possam ser natural e definitivamente classificadas como boas ou más. Sua existência e seus usos envolvem questões complexas de liberdade e disciplina, sofrimento e prazer, devoção e aventura, transcendência e conhecimento, sociabilidade e crime, moralidade e violência, comércio e guerra", conforme o livro Drogas e cultura: novas perspectivas (2008). “São os produtos mais importantes da cultura material humana, incluem às vezes alimentos-droga, que nutrem e são psicoativos ao mesmo tempo (por exemplo, bebidas alcoólicas). Richard Rudgley [autor britânico especialista em alucinógenos e intoxicantes] as chama de “substâncias essenciais” e sua busca se constitui no que Ronald Siegel [psicofarmacologista americano] chama de “quarto impulso” (fourth drive)”, diz Henrique Carneiro, historiador, professor e pesquisador em História da Alimentação, das Bebidas e das Drogas, da Universidade de São Paulo (USP).O cenário na América do Sul De acordo com Aguiar, no Uruguai, primeiro país sul-americano a regulamentar o uso, posse e cultivo de maconha, um dos principais argumentos pela liberação foi que muitas vezes o usuário se coloca em situações e locais perigosos para a obtenção da droga. “Além disso, a regulação tem impactos sociais e econômicos, pois com o fim da ‘guerra às drogas’ no país, os custos com sistema de saúde, das forças policiais e do sistema prisional são reduzidos. Portanto, estando essa droga sob monopólio do Estado, seria facilitado o acesso sem risco e influência do tráfico a esses usuários e a redução de custos com a repressão”, afirma a pesquisadora.
Paulo Muzio é graduado em relações públicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp. Tássia Oliveira Biazon é formada em ciências biológicas pela Unesp Botucatu, com dupla diplomação pela Universidade de Coimbra, Portugal. Possui pós-graduação em jornalismo científico pela Unicamp e desenvolve um projeto de divulgação científica do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (Iousp), financiado pela bolsa Mídia Ciência da Fapesp, sob a orientação do Prof. Dr. Alexander Turra. |