Por que a argentina está em crise

Uma Argentina que não se vê em catálogos de turismo, distante dos passeios, longe dos olhos da maioria de nós. Uma Argentina que sofre com inflação alta e corrói o poder de compra da população, que padece de uma crise social imensa, com desemprego e aumento de pobreza. Um país que convive com um dos males mais terríveis: a fome.

Mostrar essa realidade foi o desafio jornalístico da nossa equipe, que passou dez dias na Grande Buenos Aires. Não demorou muito para descobrirmos que essa Argentina oculta de muitos de nós estava ali, espalhada no dia a dia da população, perdida nas avenidas charmosas da capital, esmolando para sobreviver.

Encontramos também uma Argentina que vive em comunidades muito pobres, lugares controlados pelo tráfico, perigosos também para nossas filmagens. 

Mas aí também vimos a beleza do olhar fraterno que, com a solidariedade de uma legião de voluntários, dá o melhor de si para ajudar o próximo. No país onde a pobreza atinge mais de 40% da população, ter um prato de comida doado é, às vezes, a única chance de se alimentar.

É dessa Argentina que nossa equipe foi atrás. É esse país que eu, Fábio Menegatti, repórter, a produtora Mariana Soares, o repórter cinematográfico Rogério Gomes e o auxiliar técnico Leandro Marinho mostramos nesse trabalho. Vamos juntos; afinal, somos hermanos.

Villa é o nome dado às comunidades carentes de Buenos Aires. E a Villa 31 é a maior delas, cerca de 60 mil habitantes. Ela teria tudo para chamar muito a atenção de todos, mas não é bem assim. O local fica escondido atrás de grades que dificultam a visão de quem passa de carro pela movimentada autopista que nos leva do aeroporto conhecido como Aeroparque aos bairros com belos hotéis e bons restaurantes da charmosa Buenos Aires.

A construção metálica de fato funciona para quem vem de fora, pois impede que vejamos muito do que o local reserva, e a paisagem de lá destoa daquela que nos faz desembarcar na capital argentina. Sim, a Villa 31 é pobre, muito pobre.

Entrar lá não é tão simples, pois a 31 tem sérios problemas com tráfico de drogas. Gravar torna-se ainda mais complicado, pois podemos mostrar o que, em tese, não deve ser visto. Tudo isso teve que ser habilmente costurado pela nossa produtora, a jornalista Mariana Soares, que desde que pôs os pés na Argentina fez um trato consigo mesma e com nossa equipe de que iríamos conseguir autorização para gravar nesses locais considerados mais tensos. E conseguimos!

Acompanhados por líderes comunitários, gente de lá mesmo que faz o que pode para ajudar a outras pessoas, caminhamos pelas vielas quentes, cheias de gente e pudemos conhecer e entrevistar pessoas. E, como há gente sofrida nesses lugares, há muitos a ser ajudados.

Com a pandemia e o fechamento total das atividades econômicas, a renda desses moradores praticamente desapareceu e os problemas naturalmente aumentaram. E aí veio a dificuldade de comprar comida, a escassez, a fome.

E com fome nada funciona. O desalento, o desespero ganham espaço. Mas há também a mobilização de quem, inconformado com a dor, vai para a ação que nesse caso significa dar comida a quem não tem. A Villa 31, local de muitos imigrantes latinos, é também lugar de muito trabalho sério, de gente que não se cansa de conjugar o verbo "ajudar" em todos os tempos previstos de um idioma muito falado nesse local, o da solidariedade. 

Durante um ano os preços subiram mais de 50%, o peso argentino está extremamente desvalorizado, o país deve dezenas de bilhões de dólares ao Fundo Monetário Internacional e a pobreza só aumenta. Esta é a Argentina que nos fez viajar para uma série de reportagens para o Jornal da Record.

Mas não saímos do Brasil incumbidos de fazer uma grande reportagem sobre economia. Era mais do que sobre números. Era sobre o país, sobre as pessoas.

E aí a história muda. E como muda.

Dar aos números uma dimensão humana é o que provoca empatia nesses trabalhos. Por isso, nossa proposta era clara, ter gente nas reportagens. Precisávamos saber como o argentino estava atravessando tudo isso. E daí entender o impacto desses números na vida das pessoas. Mas fazer isso em outro país é desafiador; a produção "rala" muito desde o planejamento da viagem que, em tempos de pandemia, deixa tudo mais complicado. Nem todos podem nos receber, nem com todos podemos falar.

Mesmo assim, embarcamos para Buenos Aires já com uma agenda minimamente coesa, um roteiro prévio a ser seguido. Mas reportagem boa cresce na rua, na vontade do time de marcar um gol, no comprometimento diário. E dá certo. E, para azeitar a relação número e gente, contas e dramas, há um ingrediente poderoso: o talento profissional. Quando isso acontece é quase que mágico, para nós profissionais da comunicação, da TV, um deleite. A reportagem para televisão requer um aparato técnico grande. Desde a ideia inicial até a exibição há várias fases, todas de extrema importância. Mas tem uma etapa desse jogo que é definitiva, a captação de imagens. Filmar não é só um mero aperto de botão, um regular de câmera, um disparo qualquer. Gravar com qualidade exige certos atributos. Nem todos os têm. Domínio de equipamento, informação sobre o assunto, boa vontade para encarar os perrengues e, o que julgo ser essencial, sensibilidade. A partir daí, números podem sair da frieza de dados de relatório, projeções ganham vida na vida de quem as sente. Um ângulo inusitado de um bom repórter cinematográfico pode refletir uma subjetividade que muitas palavras teriam, talvez, dificuldade para exprimir. Foi assim que encaramos essa empreitada, mais uma entre tantas. Quatro cabeças pensando na mesma direção, quatro referências de mundo ouvindo e dialogando o tempo todo. Quatro profissionais distintos dispostos a dar o seu melhor. Inclusive nas corridas matinais, antes do café, de 5 km pela bela Buenos Aires.

Aqui, agradeço aos profissionais Rogério Gomes, repórter cinematográfico, e Leandro Marinho, auxiliar técnico. Craques no mundo técnico e poético das imagens que fazem de nós repórteres privilegiados intérpretes das páginas do livro da vida. 

Foi na avenida 9 de Julho, a mais conhecida de Buenos Aires, que encontramos o Cristian. Ele estava no semáforo pedindo dinheiro, levava um cartaz que resumia em poucas palavras a situação dura em que se achava. Na primeira vez que o vimos, deixamos para conversar depois, pois a agenda estava apertada. Na segunda, paramos, foi supreendente.

O desempregado, de 35 anos, teme a situação das ruas, não dorme direito devido à violência que cresce pelo país. Quando pode paga por um hotel onde experimenta a sensação aconchegante de um colchão, o prazer de uma água quente para tomar banho. Mas isso nem sempre acontece: o hotel que ele consegue pagar custa 1.000 pesos a diária, e com esse dinheiro ele precisa antes pensar em comer. 

Assim tem sido a vida de muitos argentinos que foram empurrados para as ruas devido à crise severa que atinge o país. O desemprego tem feito muitos miseráveis por lá, e não foram poucas as ocasiões em que ouvimos algo que assusta, que dói. Uma pessoa acima dos 35 anos já pode ser considerada velha para certas funções, acaba sendo dispensada de outras oportunidades, fica à margem de qualquer possibilidade de retomar a vida normal.

E com isso as ruas de Buenos Aires ganham cada vez mais moradores. É gente como o Mario e a esposa, que, tempos antes, passeavam pelas Corrientes com os filhos, tomavam sorvete, compravam roupas e trocavam presentes. Eles ainda estão na avenida repleta de atrações culturais, mas já não se divertem, ficam sentados pedindo ajuda. Dependem dos outros para comer. 

É a Argentina das distorções, dos contrastes, da injustiça social. É a Argentina que se enrola em dívidas internacionais, que, segundo economistas, gasta demais numa ponta e sufoca na outra quem já caminha com dificuldade.

Nesse país que jamais vai aparecer nas opções turísticas, o bom vinho não existe, a carne suculenta fica distante e a beleza do tango é inatingível. Mas é nesse mesmo lugar que muitos argentinos se desdobram para serem vistos, reconhecidos como cidadãos, terem sua dignidade retomada.

Mas a vida na rua é cruel, corrói sonhos, massacra até as esperanças.

Esse é o retrato de um país. Não precisava ser assim.

Não é o governo, não são empresários de peso. É gente simples mesmo.
Sim, são pessoas das comunidades carentes de Buenos Aires, com doações de comida que têm evitado uma tragédia maior no país. A Argentina está mergulhada numa de suas maiores crises recentes. O país hoje produz desemprego, fome, violência.

É nas comunidades que encontramos os "comedores", restaurantes populares que disbribuem alimentação a quem está abaixo da linha de pobreza. Há poucos anos parte dessa população tinha algum emprego, mas tudo piorou. A pandemia deixou um rastro de estagnação no país que parou absolutamente tudo e agora patina sobre o chão incerto da retomada.

Muitos desses argentinos não encontraram mais seus postos de trabalho. Nas periferias, berço dos trabalhadores da construção civil, a quantidade de desocupados é grande. O argentino de hoje tem dificuldade extrema em fazer planos como a troca de um carro, a compra de uma casa. O argentino médio de hoje luta para ter comida à mesa, para pagar o aluguel. Sim, o país empobreceu. É nesse cenário que encontramos exemplos que desafiam nossa percepção das coisas. Quem já tem pouco se preocupa com quem está ao lado numa situação mais grave. É quem perdeu o emprego e se encontrou no voluntariado. É gente oferecendo o seu melhor, trazendo um pouco de acolhimento ao próximo. A nós cabe a interpretação clara dos fatos, o sentimento sincero de lidar com a dor alheia mantendo o devido respeito. Mas a dor do outro, de certa forma, também passa a ser nossa à medida que nos aproximamos. Não há como entrar e sair de certos lugares totalmente ileso. Nem seria justo com a verdade. Jornalismo de TV depende de máquinas modernas, mas a mais fina tecnologia nesse caso não dispensa o olho humano. Ao contrário, depende do nosso sentimento para se fazer inteira.

A Argentina fraterna é uma das partes mais belas de toda essa jornada. Faz brotar no chão seco o fio da esperança.

Quem diria? Eles estão deixando o país.
São brasileiros retornando. São argentinos que decidem que chegou a hora de sair. São tempos de mudança.

Nas entrevistas que fizemos, a falta de perspectiva em um país melhor é uma das situações mais citadas. O argentino está carente de próximos e promissores capítulos que o façam acreditar, confiar, sonhar. Acha que alguma terra estrangeira seja mais justa. Mas o presente que maltrata a população é o motor desse movimento que parece sem volta para quem o assume. Usar as economias para quem as possui, contar com os amigos para quem os tem. Vale quase tudo para quem decide migrar. Só não vale ficar atado a uma realidade que já não é capaz de oferecer nem o mínimo necessário. É o que essas pessoas querem quebrar. E para isso, segundo elas, é preciso sair. É necessário deixar o país.

Cláudio, o simpático músico que fala um belo portunhol, vai seguir a profissão de psicólogo no Nordeste brasileiro. Temos imagens legais dele tocando instrumentos. Todas, imagens de bastidores. Tem vídeo do Fábio tocando com ele.

Elis Regina, que encarou a Argentina há trinta anos, desistiu e vai ficar ao lado da filha que mora em São Paulo.  Marisol, que fala fluentemente inglês e holandês, vai morar em Santa Catarina ao lado da filha que já desistiu da Argentina.  E quantos outros não estão seguindo o mesmo caminho? E quantos outros não estão com o mesmo anseio? E o que a Argentina fará para honrar seus filhos?

É um país que nunca imaginei encontrar.