Quando foi criado o Estatuto da Terra

Uma questão fundamental para a produção rural em qualquer parte do mundo é o conjunto de regras que coordenam a propriedade da terra, isso porque não se pode produzir nenhum bem originalmente rural sem terra. Dessa forma, o conjunto de normas e instituições que doutrinam a questão agrária é fundamental para que os investimentos sejam efetivados e a produção se realize.

No Brasil, tem-se o Estatuto da Terra, em vigor até os dias atuais, sob a Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964. Este representa um conjunto de normas que regula os direitos e obrigações relativos aos bens imóveis rurais, especificamente para execução da reforma agrária e promoção da política agrária. De maneira geral, a reforma agrária visa promover uma melhor distribuição da terra mediante mudanças no regime de posse e uso, buscando respeitar os princípios de justiça social e economicidade. Contudo, para que uma melhor distribuição de terras seja efetiva no sentido de provocar emancipação socioeconômica dos produtores, demandam-se políticas agrícolas adequadas de amparo e orientação às atividades rurais com vistas à produtividade e emprego dos recursos produtivos e, quando necessário, de interconexão com o setor industrial.

No Estatuto da Terra, a justiça social é representada pela função social da terra, que é integral quando (Lei 4.504/64; art. 2º § 1º): a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

Sob esse aspecto, não há muita controvérsia, sobretudo em países cujo regime de governo coadune com princípios democráticos. Nesses países, como é o caso do Brasil, a propriedade privada é a base da atividade econômica, logo uma lei de terras deve apenas doutrinar o comportamento de tal fator de produção. Mas, quando a função social não é observada, o poder público pode intervir para promover a racionalidade na utilização da terra, seja criando condições de acesso a terra economicamente útil (para trabalhadores, produtores etc.) por meio da reforma agrária, seja promovendo justa remuneração e bem-estar coletivo por meio de política agrícola.

Toda e qualquer lei é alvo de discussões e debates políticos em torno do tema e, geralmente, sua redação final é fruto de alterações em um projeto de lei elaborado. Inicialmente, nenhum projeto de lei é elaborado em "primeira mão" sem antecedentes, seja em governos democráticos, seja nas mais diversas formas de regimes totalitaristas. Em outras palavras, todo projeto de lei se fundamenta em alguma base de escritos anteriores sobre o tema, seja ela teorias, reflexões, pensamentos etc. Porém, leis de grande abrangência, como uma lei de terras, geralmente são fruto de projetos de lei elaborados após um processo de pesquisa e reflexão. Esse processo, pela ordem natural, é influenciado por pensadores de referência na área (no caso em análise, agrônomos, economistas, advogados etc.) e nas mais diversas vertentes (desenvolvimentistas, conservadoras, intervencionistas, liberais etc.). Essas influências se dão geralmente pelos escritos que tratam diretamente de pontos de vista sobre o assunto, ou inclusos em um contexto de análise mais geral.

À época que antecedeu imediatamente a promulgação do Estatuto da Terra, o economista Roberto de Oliveira Campos, então ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, foi incumbido de coordenar uma proposta de lei de terras (que deu origem ao Estatuto da Terra). Campos era considerado mais um desenvolvimentista liberal (sem fobia a capital estrangeiro) do que apenas um economista liberal (que se tornou mais tarde, a partir dos anos 70 e 80, especialmente com sua passagem como embaixador pela Inglaterra) (Bielschowsky, 2000BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. 480 p., p. 106). Seus escritos em economia rural e agrária são poucos, mas, na época da elaboração do projeto de lei do Estatuto da Terra, coordenou a equipe que elaborou uma proposta de lei de terras que foi apreciada e, com modificações, aprovada pelo Congresso Nacional. Ademais, participou das discussões dentro da equipe e frente a entidades de classe (sindicatos de trabalhadores e ruralistas, ligas campesinas) e outras entidades, como alguns segmentos da Igreja Católica e a UDN – União Democrática Nacional. Algumas dessas entidades que congregavam, à época, a luta pela terra explicitavam um tom de conflito exacerbado, com embates violentos, especialmente no nordeste brasileiro. Assim, Campos estudou as experiências de outros países, tanto no que se refere à reforma agrária quanto em relação às políticas agrícolas, bem como analisou estudos de estrutura agrária e produção rural efetuados até então. Formou sua posição a partir dos frutos das discussões com sua equipe e pôde adensar um conjunto de normas que foi apresentado como projeto de lei do Estatuto da Terra.

Entretanto, apenas parte do pensamento incluso no projeto de lei, ou mesmo no Estatuto da Terra depois de aprovado, pode ser atribuído a Campos e sua equipe. Um dos pensadores proeminentes da época era Celso Furtado, renomado economista ligado à corrente desenvolvimentista, que estabeleceu um olhar crítico sobre a problemática do nordeste brasileiro, além de ter sido ministro no governo João Goulart no período anterior ao golpe de 1964. Para Stédile (2005, p. 149)STEDILE, J. P. (Org.). A questão agrária no Brasil:programas de reforma agrária 19462003. São Paulo: Expressão popular, 2005., em referência a José Gomes da Silva, a influência de Furtado se dá pela atuação cepalina, bem aceita por muitos, que se empenhava na difusão de políticas para o desenvolvimento do mercado interno, interiorização da indústria nacional, distribuição de renda e uma reforma agrária como forma de desenvolver os países.

Furtado tornou-se especialmente conhecido após sua obra estruturalista "Formação Econômica do Brasil", em que traz um "retrato" da economia brasileira em desenvolvimento. Sua metodologia de análise pode ser considerada sistêmica, logo a problemática do desenvolvimento é abordada num contexto geral, envolvendo todas as esferas de análise simultaneamente (campo, cidade, agricultura, serviços, indústria, governo, setor externo etc.). Com isso, fortaleceu e desenvolveu seu próprio olhar analítico sobre economias subdesenvolvidas, como o Brasil, frente a economias desenvolvidas, como os Estados Unidos e a Inglaterra, entre outros. Furtado, dado seu estilo de análise, não era um autor exclusivo de assuntos do meio rural, mas tinha, neste, um núcleo de preocupações.

Diante desse quadro, no presente artigo, tem-se um confronto entre o pensamento sobre as questões agrárias de Campos bem como o de Furtado frente ao que foi promulgado como o Estatuto da Terra brasileiro, já que o mesmo contempla importantes contribuições dos dois economistas. Não seria surpresa a constatação, no Estatuto da Terra, de viés ao pensamento de Campos, já que o mesmo coordenou a proposta de tal regulamentação. Mas a questão se torna interessante quando se busca verificar elementos presentes em Furtado e que fazem parte do Estatuto da Terra aprovado, o que pode ser visto como uma resposta à diretriz política e socioeconômica do governo anterior para o qual as ideias do economista foram determinantes. Ou seja, este artigo busca, de forma original, confrontar o pensamento de Campos e Furtado com relação à questão agrária através do texto do Estatuto da Terra, já que existem diversos estudos que buscam explicar as origens do Estatuto do ponto de vista político e socioeconômico, ou da questão agrária no Brasil, tais como Bruno (1985BRUNO, R. Liberalismo e reforma agrária: o governo Castelo Branco. CPDA/UFRRJ, 1985., 1995)______. O estatuto da terra: entre a conciliação e o confronto. Estudos Sociedade e Agricultura, 5, p. 5-31, nov. 1995., Gomes da Silva (1971GOMES DA SILVA, J. A reforma agrária no Brasil:frustração camponesa ou instrumento de desenvolvimento? Rio de Janeiro: Zahar, 1971., 1982)______. Reforma agrária e a lei do Estatuto da Terra. Justitia, São Paulo, v. 44, n. 116, p. 47-59, 1982., Baldez (2003)BALDEZ, M. L. A questão agrária: a cerca jurídica da terra como negação da justiça. Discursos Sediciosos, n. 3, 1997., Stédile (2005)STEDILE, J. P. (Org.). A questão agrária no Brasil:programas de reforma agrária 19462003. São Paulo: Expressão popular, 2005., Welch (2006)WELCH, C. A. Movimentos sociais no campo até o golpe militar de 1964: a literatura sobre as lutas e resistências dos trabalhadores rurais do século XX. Lutas e resistências, Londrina, v. 1, p. 60-75, 2006., Miralha (2006)MIRALHA, W. Questão agrária brasileira: origem, necessidade e perspectivas de reforma hoje. Revista NERA, Presidente Prudente, 8, p. 151-172, 2006., Reis (2008)REIS, C. S. A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade da pessoa humana. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 53, maio 2008., Nascimento et al. (2010)NASCIMENTO, V. E.; SAES, M. S.; ZYLBERSTEJN, D. Direitos de propriedade, investimentos e conflitos de terra no Brasil: uma análise da experiência paranaense. Revista de Economia e Sociologia Rural, Piracicaba, v. 48, n. 3, p. 705-748, 2010., entre outros.

Para este estudo, o período não encontra limites temporais em virtude do fato de que a lei sofreu alterações, apesar de não serem profundas, desde a sua promulgação. Sendo assim, mesmo após sua promulgação, as ideias dos pensadores em questão puderam influenciá-la. Em outras palavras, tudo o que foi escrito pelos autores antes do Estatuto da Terra pode ter influenciado a sua confecção, e tudo o que foi escrito após o Estatuto da Terra pode ter implicado em alterações na lei já em vigor. Logo, o escopo de análise é a totalidade das obras dos dois autores com respeito às questões agrárias e à identificação de suas ideias presentes no Estatuto da Terra sob algumas dimensões analíticas como: desapropriações e seus pagamentos, tributação, regionalização, políticas agrárias e relações de trabalho.

O presente estudo está estruturado, além desta introdução, em uma primeira seção, que descreve abreviadamente o ambiente sociopolítico e sua relação com o Estatuto da Terra, e uma segunda, que trata do pensamento de Roberto Campos com respeito à questão agrária e sua participação na elaboração do referido Estatuto. A terceira seção discute a posição de Celso Furtado, e a seguinte, o confronto e sobreposição do pensamento dos autores presentes no Estatuto da Terra. Por último, são apresentadas as considerações finais.

O ambiente sociopolítico e a motivação analítica

Para entender o ambiente sociopolítico em que foi gestado e elaborado o projeto do Estatuto da Terra no Brasil é preciso analisar um passado mais distante, em especial o início do movimento social rural que data do período colonial, principalmente em decorrência da dificuldade de acesso a terra e da alta concentração da propriedade de terras nas mãos de poucas pessoas. Atribui-se o problema da concentração de terras às origens históricas do modelo de ocupação adotado no Brasil no período de colonização do século XVI. Conforme Furtado (1980)FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento:enfoque interdisciplinar. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980., a criação das capitanias hereditárias e do sistema de sesmarias foram os principais responsáveis pela formação de latifúndios e pela deficiente distribuição de terras.

Mas o descontentamento com essa situação tornou-se mais agudo no período de 1949 a 1964, quando os sindicatos de trabalhadores rurais passaram a se organizar mais intensamente, com maior parcela dos trabalhadores sindicalizados e apoio constante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ademais, o trabalho do PCB foi no sentido de que os trabalhadores rurais deveriam fazer parte da classe trabalhadora em geral, organizados e mobilizados juntamente com os operários urbanos, fortalecendo, assim, o proletariado. Para o PCB, isso era importante para que o proletariado tomasse o poder e construísse o comunismo como forma de governo. Dessa forma, seria resolvida a questão da má estrutura fundiária bem como a questão da posse do sistema produtivo nacional.

A partir de 1960, a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e políticos populistas concorriam como representantes dos trabalhadores rurais, sendo que muitas vezes aconteciam confrontos entre trabalhadores e proprietários rurais, bem como com esferas de governo, especialmente locais. Em 1963, foi criada, pelo governo federal, a Supra (Superintendência da Política de Reforma Agrária), que se incumbiu de auxiliar trabalhadores e representantes a formarem sindicatos. Também em 1963, foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo, até então à margem da legislação trabalhista. Um ano depois, em 13 de março de 1964, o Presidente da República, João Goulart, assinou decreto prevendo a desapropriação, para fins de reforma agrária, das terras localizadas numa faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias, ferrovias e açudes construídos pela União. No dia 15, em mensagem ao Congresso Nacional, propôs uma série de providências consideradas "indispensáveis e inadiáveis para atender às velhas e justas aspirações da população": a primeira delas, a reforma agrária. No entanto, a resposta de grupos de fazendeiros, usineiros e parte dos políticos, especialmente os do Rio Grande do Sul e de São Paulo, foi a de apoiarem o golpe militar de 31 de março de 1964 e pôr fim à tentativa de reforma agrária (Welch, 2006WELCH, C. A. Movimentos sociais no campo até o golpe militar de 1964: a literatura sobre as lutas e resistências dos trabalhadores rurais do século XX. Lutas e resistências, Londrina, v. 1, p. 60-75, 2006., p. 60-61; Reis, 2008REIS, C. S. A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade da pessoa humana. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 53, maio 2008.).

Os governos militares, a partir de 1964, reprimiram o movimento sindical dos trabalhadores rurais e cancelaram cerca de 80% dos registros dos sindicatos, preservando sindicatos não vinculados a partidos ou com viés comunista (Welch, 2006WELCH, C. A. Movimentos sociais no campo até o golpe militar de 1964: a literatura sobre as lutas e resistências dos trabalhadores rurais do século XX. Lutas e resistências, Londrina, v. 1, p. 60-75, 2006., p. 62). Mas, paralelamente à questão agrária brasileira, as forças militares se mobilizaram em resposta ao movimento comunista, não somente nacional, mas também internacional, pois, nessa época, a "guerra fria" era um jogo de forças entre países do eixo comunista e países capitalistas.

De maneira geral, a maior preocupação do governo militar era com o proletariado e o ambiente urbano, pois, no meio rural, a defesa dos interesses comunistas estava menos desenvolvida. Em outras palavras, os governos militares não tinham uma relação forte e sólida com os interesses dos latifundiários e burgueses; seu interesse principal era controlar e erradicar o movimento comunista, que representava, em verdade, fatores econômicos difusos e especialmente urbanos. Uma possível explicação para o golpe é que ele foi uma resposta à imobilidade do presidente Goulart e outras esferas de governo em relação a várias decisões governamentais, além do fato de haver atrito demasiado entre as esferas de governo. Há também a explicação de que os militares não estavam satisfeitos com sua própria desarticulação frente ao Governo e que o presidente Goulart teria a intenção de constituir uma força militar leal a um golpe comunista (Fico, 2004FICO, C. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.).

Para Gomes da Silva (1971, p. 114-120)GOMES DA SILVA, J. A reforma agrária no Brasil:frustração camponesa ou instrumento de desenvolvimento? Rio de Janeiro: Zahar, 1971., os movimentos em prol de uma reforma agrária se deram em duas etapas: verbalização e literatice. A etapa de verbalização compreendeu uma reforma agrária que foi tema de palanque, palco e tribuna, representada especialmente por João Goulart, Celso Furtado e João Pinheiro Neto, ou seja, políticos e pensadores sobre o tema. A etapa de literatice envolveu estudos, relatórios e um grande volume de informações e foi representada por Castelo Branco, Roberto Campos e Paulo de Assis, ou seja, também políticos e pensadores sobre o tema. A etapa de verbalização antecede o Estatuto da Terra de 1964, e a etapa de literatice é exatamente o período de gestação e proposta do Estatuto. Ainda, Gomes da Silva ressalta que, da fase de verbalização, ficou a consciência em torno do problema agrário; a fase de literatice originou-se no âmbito do governo militar com o objetivo de talvez controlar a onda comunista, ou de um interesse pessoal de Castelo Branco, ou ainda pela influência de Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo federal à época.

É bem verdade que o Estatuto da Terra foi uma espécie de resposta à sociedade, especialmente aos movimentos sociais rurais. As leis geralmente são feitas em resposta a pelo menos algum segmento da sociedade. Enfim, o Estatuto representou, na verdade, uma tentativa de esvaziamento da luta pela reforma agrária, pois não se tocou no latifúndio, e colocar as mãos nesse tipo de propriedade significava enfraquecer as bases políticas do clientelismo rural e das oligarquias políticas. Significava, fundamentalmente, modificar a estrutura do Estado brasileiro. Isso constituiria, de fato, uma revolução política, e essa era algo intolerável para as oligarquias, o establishment político, os militares, parte da burguesia urbana, setores da classe média e assim por diante (REIS, 2008REIS, C. S. A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade da pessoa humana. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 53, maio 2008.). Destaca-se que, paralelamente, também era elaborada, além da reforma rural através do Estatuto da Terra, uma lei urbana que tratava principalmente da oferta e financiamento de habitações à população através do BNH (Banco Nacional da Habitação). De maneira geral, essas reformas sinalizavam as primeiras ações de resposta do governo militar ao movimento comunista.

Assim como Reis (2008)REIS, C. S. A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade da pessoa humana. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 53, maio 2008., Silva (1997, p. 20-21)SILVA, L. O. As leis agrárias e o latifúndio improdutivo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 11, n. 2, 1997. também destaca que o Estatuto da Terra veio em resposta aos movimentos sociais do campo (principalmente no Nordeste) e à mobilização popular reformista dos anos 1950 e 60, bem como em resposta à pressão norte-americana pela adoção de uma reforma para o campo.

Para a elaboração do projeto de lei do Estatuto da Terra, participaram equipes de profissionais de diversas formações: agrônomos, advogados e líderes sindicais rurais. Dois grupos merecem destaque: o grupo "paulista" e o grupo "carioca". O grupo paulista, apesar da competição política entre os grupos de estudo, contribuiu especialmente com a experiência de campo que se adquiriu no estado de São Paulo por ocasião da revisão agrária executada no governo anterior de Carvalho Pinto (Gomes da Silva, 1971GOMES DA SILVA, J. A reforma agrária no Brasil:frustração camponesa ou instrumento de desenvolvimento? Rio de Janeiro: Zahar, 1971., p. 121-122). O grupo carioca dedicouse, mais especificamente, a pesquisar experiências reformistas em outros países, bem como a pesquisas teórico-práticas sobre o tema (Campos, p. 685, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.).

Da primeira versão do anteprojeto, em abril de 1964, até a décima quarta versão, aprovada pelo Congresso Nacional em novembro do mesmo ano, o Grupo de Trabalho sobre o Estatuto da Terra (Gret), composto pelos ministros Roberto Campos, Hugo Leme e Oscar Thompson, além de Paulo de Assis Ribeiro e de José Gomes da Silva, entre outros, esteve imbuído da tarefa de construir o Estatuto da Terra através de instigantes reflexões sobre a lei: a noção de lei como campo de força, de disputa e conflito, de acordos e negociações (Bruno, 1995). Havia a necessidade de o Governo instituir, com força de lei, um sistema cuja aplicação pudesse: (i) aplicar a reforma agrária, criando novos proprietários; e (ii) aplicar instrumentos de política agrícola aos proprietários já existentes, conforme destaca Gomes da Silva (1982)______. Reforma agrária e a lei do Estatuto da Terra. Justitia, São Paulo, v. 44, n. 116, p. 47-59, 1982..

Para o governo Castelo Branco, a superação da crise econômica no Brasil passava por três questões essenciais: o combate à inflação, a mudança na política externa e a modernização da agricultura. Esta última se mostrou extremamente sensível à presença de latifúndios, o que justificava a visão do Gret de que a reforma agrária deveria ser prioritária para a modernização da agricultura. Conforme Bruno (1985, p. 5)BRUNO, R. Liberalismo e reforma agrária: o governo Castelo Branco. CPDA/UFRRJ, 1985., o governo Castelo Branco passou a controlar o que os trabalhadores rurais deveriam discutir e reivindicar, pois estes trabalhadores passaram a discutir uma reforma agrária proposta no Estatuto da Terra, ou seja, houve não só um recuo ou mudança de tom na luta pela reforma agrária, mas uma mudança de conteúdo: passou-se do ataque frontal ao latifúndio à defesa do Estatuto da Terra. Enfim, acabaram sendo incorporados no Estatuto muitos dos anseios dos trabalhadores acerca da reforma agrária. Entretanto, conforme ressalta Baldez (2003, p. 54)BALDEZ, M. L. A questão agrária: a cerca jurídica da terra como negação da justiça. Discursos Sediciosos, n. 3, 1997., isso não se deu com vistas à sua concretização, mas, ao contrário, para "imobilizar e desorganizar a luta, transformando-se, ainda, num mero instrumento de remoção de eventuais conflitos no campo".

No entanto, a discussão da reforma agrária no cenário pós-golpe passa para o campo institucional, com grandes proprietários de terra exercendo pressão e boicote ao projeto de lei, recusando-se a se reunir com autoridades governamentais para discutir a reforma agrária. As críticas e as demandas de reformulação do anteprojeto de lei do Estatuto da Terra invariavelmente convergiam para a concepção de reforma agrária, a viabilidade da pequena propriedade familiar, a noção do uso social da terra, o sentido do justo valor, além das alíquotas das desapropriações e a definição de latifúndio. (Bruno, 1995______. O estatuto da terra: entre a conciliação e o confronto. Estudos Sociedade e Agricultura, 5, p. 5-31, nov. 1995.).

Segundo Reydon (2011)REYDON, B. P. O desmatamento da floresta amazônica: causas e soluções. Economia Verde, n. 8, p. 143-155, 2011., o Estatuto da Terra foi uma grande inovação institucional na esfera da política e administração fundiária brasileira cujas regras e conceitos continuam válidos até o presente. Portanto, para orientar a implantação da política agrária e agrícola, o Estatuto de 1964 previa a criação do Cadastro de Imóveis Rurais. Todos os imóveis privados ou públicos deveriam ser registrados, inclusive as posses. Os proprietários deveriam providenciar informações sobre a situação da documentação e uso da terra (para estimar a produtividade) a fim de facilitar a reforma agrária. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criado em 1970, tornou-se responsável pela gerência do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), que mantinha o Cadastro de Imóveis Rurais. Uma vez registrado o imóvel, o Incra emitia o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) exigido para qualquer tipo de transação de terra. Posseiros registrados pelo Incra também receberam o CCIR e deveriam pagar o Imposto sobre o Imóvel Rural, embora os valores desse imposto tenham sempre sido mantidos em níveis baixos.

O Estatuto da Terra mais uma vez manteve a legitimação de posse, permitindo, assim, a titulação de terras públicas ocupadas informalmente. No entanto, os resultados práticos foram pequenos. Com a política de incentivos fiscais dos anos 70 para os grandes empreendimentos agropecuários e extrativistas, a concentração aumentou mais, sobretudo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, enquanto os projetos do Incra, como as agrovilas da Amazônia, não se viabilizaram. Para ilustrar a importância da questão agrária no Brasil e o cenário para o qual o Estatuto da Terra vem contribuindo tem-se, a seguir, algumas informações estatísticas relevantes para seu entendimento.

Vários autores trataram sobre a questão da estrutura fundiária no Brasil, como Albuquerque (1987)ALBUQUERQUE, M. C. C. Estrutura fundiária e reforma agrária no Brasil. Revista de Economia Política, v. 7, n. 3, p. 99-134, 1987. e Hoffmann e Ney (2010)HOFFMAN, R.; NEY, M. G. Estrutura fundiária e propriedade agrícola no Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2010.. De maneira geral, segundo dados dos censos agropecuários do Brasil (Tabela 1), percebe-se um importante aumento, a partir do censo dos anos 70, no número de propriedades com menos de 10 hectares como transferência, basicamente, do segmento de propriedades de 10 hectares e menos de 100 hectares. Percebe-se, também, que o número de propriedades com mais de 100 hectares praticamente não se altera, ou seja, não é visível a redução de propriedades de grande porte, tais como latifúndios, nem o número de propriedades médias, como previsto pela proposta do Estatuto.

Tabela 1 Número de propriedades (%) e Área das propriedades (%) em três extratos de área e em anos de censo agropecuário selecionados

Entretanto, ao se analisar a proporção de área em cada um dos extratos, percebe-se, a partir do censo de 1970, um aumento de área nas propriedades com menos de 10 hectares, que oscila um pouco nos anos que se seguem. Essa oscilação também é observada no extrato de maior área. Em outras palavras, percebe-se alguma alteração na estrutura fundiária no sentido de uma melhor distribuição, mas sem alterar significativamente a posição referente às grandes propriedades. Talvez esse quadro pudesse ser mais adequado (com uma melhor distribuição de terras) no caso de uma aplicação integral do Estatuto da Terra, bem como de uma política fundiária por parte do governo federal.

Outro indicador importante é a análise da concentração das terras observada pelo índice de Gini da distribuição de terras (Tabela 2). Se comparado o Brasil com outros países, pode-se identificar que, frente a países desenvolvidos e alguns outros considerados em desenvolvimento, a estrutura fundiária brasileira é mais concentrada. Após a promulgação do Estatuto da Terra, a concentração não somente permaneceu alta como também aumentou em comparação aos anos anteriores, superando inclusive a concentração de renda da população.

Tabela 2 Índice de Gini para a concentração de terras em países selecionados

De acordo com Bergamasco (1997)BERGAMASCO, S. M. P. A realidade dos assentamentos rurais por detrás dos números. Estudos Econômicos, v. 11, n. 31, p. 37-49, 1997., o fato de o Estatuto ter propiciado uma modernização da agricultura sem uma relevante melhoria na concentração fundiária trouxe consequências desastrosas para a área rural. Propiciou a formação de uma classe de assalariados rurais com baixo poder de compra, além do desemprego, precariedade das condições de trabalho e exclusão social, fazendo com que mais de 28 milhões de pessoas deixassem o campo em direção aos centros urbanos no período de 1960 a 1980.

Entre os instrumentos previstos no Estatuto para auxiliar as políticas de desconcentração da terra, o Imposto Territorial Rural (ITR) teve sua eficácia prejudicada devido ao alto grau de evasão e inadimplência. De acordo com Oliveira (1993), as principais causas para o insucesso do ITR como instrumento para auxiliar a desconcentração da terra estão no descumprimento das obrigações fiscais dos contribuintes, na ausência de uma melhor discriminação entre as categorias de imóveis, no uso de uma categorização irreal de imóveis utilizada pelo Incra, na ausência de uma variação de alíquotas legais, na enorme evasão existente e no comportamento da base tributária devido ao sistema de atualização do valor da terra nua adotado.

Assim, apesar de existirem indícios de problemas na implementação do Estatuto da Terra e de seus impactos na distribuição de terras, o Estatuto trata também de outras questões agrárias relevantes, que tiveram importantes avanços institucionais após sua promulgação, tais como a tributação da terra (mesmo diante dos problemas apontados), políticas agrárias, relações de trabalho rural, entre outras. O presente artigo não objetiva discutir as dificuldades na aplicação do Estatuto e suas consequências, mas sim identificar alguns elementos-chave do pensamento de Campos e Furtado que contribuíram para a formatação do Estatuto da Terra promulgado em 1964 e que segue válido até os dias atuais.

Para Bielschowsky (2000)BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. 480 p., as diferenças no pensamento econômico de Furtado e Campos são relevantes, tanto que enquadra Roberto Campos como parte integrante do pensamento desenvolvimentista "não nacionalista" e Celso Furtado como desenvolvimentista "nacionalista". Portanto, a análise feita neste artigo sobre o Estatuto da Terra é motivada, em parte, pela identificação do confronto das ideias desses importantes autores com o Estatuto da Terra promulgado. Com isso, é possível estabelecer diferenças em termos do que cada um pensava a respeito da questão agrária, bem como verificar o quanto influenciaram na elaboração do referido estatuto, considerando-se, portanto, que o projeto de lei elaborado sob a coordenação de Roberto Campos não foi aprovado na forma como foi apresentado ao Congresso. Adicionalmente, mesmo na gestação do projeto de lei, a influência de Celso Furtado não pode ser desprezada.

Roberto Campos, a questão agrária e o Estatuto da Terra

Nesta seção, busca-se determinar alguns elementos do pensamento de Roberto Campos, bem como alguns fatos quando da sua participação na elaboração do Estatuto da Terra, que podem ser importantes na identificação das suas ideias presentes no referido estatuto.

Segundo Campos (1998, p. 423-424)______. Na virada do milênio: ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998., na história da agricultura brasileira não existe uma classe agrária dominante, com exceções, pois a agricultura brasileira, desde o início, se integrou ao capitalismo mercantil (sistema plantation), contrariamente ao sistema feudal de domínio da terra. Isso se deve ao fato de que as terras utilizadas na produção eram contratadas frente a Coroa portuguesa e, portanto, resultavam num processo de ocupação. Essa área de ocupação foi sendo desmembrada de acordo com o avanço da fronteira agrícola.

O problema agrário reside na existência de produção pré-capitalista no campo, em que grandes áreas permanecem improdutivas ou subutilizadas com o principal objetivo de reserva de valor. Ao contrário, nas economias agrárias eficientes (baseadas no mercado), o preço da terra, como dos demais fatores, deve ser igual ao produto marginal (Campos, 1998______. Na virada do milênio: ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998., p. 424).

Campos identifica, nos anos 60, um problema que, para ele, impediu uma melhor distribuição e subutilizou as terras no Brasil. Com as reformas de base do então Presidente da República, João Goulart, instituiu-se o Estatuto do Trabalhador Rural (1963), que procurou equiparar os direitos trabalhistas dos empregados do campo ao dos trabalhadores urbanos (ignorando as rendas de autoconsumo e pagamentos em produto). Desse resultou o enfraquecimento das relações de trabalho no campo (desemprego, crise de oferta de alimentos etc.), denotado em menos trabalhadores nas lavouras e, portanto, em menor geração de renda rural. Isso implicou na implementação de uma nova forma de emprego rural mais precário, o trabalho do "boia-fria" itinerante. Com isso, os trabalhadores rurais tiveram suas rendas achatadas e as terras ficaram subutilizadas (Campos, 1998______. Na virada do milênio: ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998., p. 424).

O ambiente nacional era de tensão no campo dado o surgimento das Ligas Camponesas no Nordeste, a invasão de terras no Rio de Janeiro, o ativismo sindical e a mobilização de segmentos da Igreja Católica. Esses movimentos se potencializaram com o Estatuto do Trabalhador Rural e, principalmente pelos conflitos entre grandes produtores rurais e trabalhadores rurais no Nordeste. Além disso, o movimento se alastrava pelas demais regiões brasileiras (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 688).

A proposta inicial era de que a elaboração de um Estatuto da Terra deveria seguir três premissas básicas: a) a terra não sofreria uma reforma agrária socialista ou coletivista (dado que não se adequava ao sistema capitalista, e o grupo acreditava que representavam experiências fracassadas); b) dada a extensão territorial e diferenças regionais, ter-se-iam soluções regionais diferenciadas; c) os instrumentos deveriam se basear na tributação progressiva da terra improdutiva, na colonização de novas áreas, na eventual terceirização da colonização de terras devolutas e na desapropriação das áreas de conflito (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 684-685).

De maneira geral, Campos e o grupo responsável por elaborar e propor um projeto de lei para o Estatuto da Terra, Gret, entendiam que o latifúndio improdutivo era um obstáculo ao desenvolvimento agrícola e ao crescimento econômico. Logo, a reforma agrária significava uma forma de expandir o mercado interno. Com o sistema capitalista prevalecente no Brasil, a propriedade privada deveria ser preservada, a menos que não atingisse os objetivos de função social (subutilização). Contudo, para isso, tinha-se como principal obstáculo a questão da indenização à desapropriação. Essa, pela Constituição (1946) em vigor, deveria ser em dinheiro, em valor justo e paga previamente (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 692).

Uma análise de vários modelos de reformas agrárias implementadas no mundo foi feita, e ficou clara a opção por uma reforma capitalista (em detrimento da reforma socialista ou coletivista) com a democratização do acesso à propriedade rural. Esse tipo de reforma aderia a "Carta de Punta del Este" (1961) da Aliança para o Progresso dos Países da América Latina (da qual o Brasil fez parte), em que se havia aventado um balanceamento entre produtividade e justiça social na produção rural (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 681).

Assim, a lei de terras deveria enfatizar a modernização capitalista das relações no campo (produção, emprego e comercialização). Além do mais, a desapropriação deveria ser utilizada com parcimônia, e a alternativa seria a prática de outros mecanismos. Isso porque não havia escassez de terras no Brasil; então, deveria se utilizar outros mecanismos distributivos, tais como a tributação progressiva sobre a terra improdutiva, a abertura de frentes de colonização (novas fronteiras agrícolas) e a humanização das relações de arrendamento e parceria. Significa dizer que a desapropriação deveria ser empregada em áreas de conflito e confronto entre latifúndios e minifúndios. Equivale a afirmar a existência tanto de minifúndios economicamente débeis, dada a sua escala de produção (não produzem o suficiente para a emancipação social dos produtores) de um lado, e, de outro, latifúndios improdutivos (subutilizados economicamente). Esses dois tipos de ocupação deveriam ser o objetivo da política redistributiva.

Portanto, a ênfase da Lei não deveria ser a desapropriação direta pelo Estado, mas a transmissão de posse indireta dada a aplicação dos outros instrumentos (tais como a tributação progressiva e prêmios de produtividade sobre o imposto de terras). Paralelamente, a utilização de política agrária (crédito, assistência técnica e política de preços) deveria compor o instrumental de base para amparar a produtividade das propriedades rurais. Isso implica a aceitação do latifúndio produtivo (em economia de escala) no combate à propriedade rural improdutiva com vistas ao acesso a melhores empregos rurais. Assim, tem-se: aos latifúndios improdutivos, tributação progressiva e, aos minifúndios antieconômicos, a desapropriação e colonização (desapropriar para aglutinar em áreas maiores – economicamente satisfatórias) (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 684-686).

Entretanto, no Brasil, existem características regionais diferenciadas, tais como densidade demográfica, grau de acessibilidade ao mercado consumidor e diversidade climática, que devem ser consideradas. Então, a progressividade do imposto e prêmios de produtividade deveriam obedecer a parcelas (módulos) de área cultivada de acordo com as regiões onde se situam as produções, bem como o tipo de produto que se produz em cada região. É a ideia do módulo regional de produção (área suficiente para uma família, ao produzir os produtos característicos daquela região, se emancipar socioeconomicamente –extrair da terra mais do que a simples reprodução da sua condição de vida) (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 684).

Essas diretrizes gerais balizaram o projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional para debate. A oposição representada pela UDN – União Democrática Nacional – , grupo ruralista, era naturalmente contrária ao projeto de lei, pois esse aventava a possibilidade de desapropriação e/ou a tributação exacerbada sobre a propriedade rural. Um dos políticos contrários ao projeto de lei era Bilac Pinto (deputado e produtor rural em Minas Gerais), que assumiu a liderança nas discussões sobre o projeto de lei. O argumento de Bilac Pinto era de que não existiam condições para a reforma agrária, pois a produção agrícola era suficiente (dado o mercado dos produtos) e a preços competitivos (não elevados) e ainda, se havia conflitos no campo, esses se localizavam no Nordeste e derivavam do excesso de mão de obra. Logo, o processo de industrialização se encarregaria de equilibrar o processo produtivo (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 687).

Para Campos, a assertiva de Bilac Pinto quanto à industrialização era adequada; o progresso técnico na agricultura por si próprio geraria a migração do campo para a cidade. Contudo, esse processo deveria ser equilibrado com o crescimento da produção industrial para não gerar miseráveis urbanos (sem emprego e infraestrutura). No aspecto da produção, Campos demonstrou que, entre os censos de 1950 e 1960, das novas fazendas pesquisadas, 60% tinham menos de 10 hectares, logo se tratava de minifúndios familiares. Ademais, as propriedades familiares representavam 8% da área total e 26% da área cultivada, ou seja, havia latifúndios subutilizados. Portanto, não existe eficácia no conjunto da produção agrícola da grande propriedade, pois não atende aos preceitos de economicidade.

Paralelamente, com o crescimento populacional frente ao ritmo de elevação observado na produção de alimentos, poderia haver crise de abastecimento se o Estado não interviesse. Por fim, dada a estrutura agrária vigente, com interesses na terra como reserva de valor, não haveria possibilidade de existir mudança espontânea na sua distribuição, paralela ao desenvolvimento capitalista da indústria, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos, pois a velocidade de geração de empregos na indústria é diferenciada entre os países (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 688).

Entretanto, além da questão da industrialização, Bilac Pinto e Campos concordavam sobre a questão da justiça social, a tributação progressiva da área "abandonada", o uso do valor fiscal declarado pelo proprietário para desapropriação, o desconto no imposto territorial rural por eficiência produtiva, a implantação de projetos de colonização sobre unidades agrícolas familiares e os módulos regionais de ocupação do solo (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p 690).

Por outro lado, Bilac Pinto acreditava que o imposto serviria para reduzir o número de empresas rurais a minifúndios inexpressivos e que a verdadeira solução se daria com política agrária (crédito, assistência técnica e preços mínimos) sem, contudo, interferir na propriedade privada (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 690).

Campos admitiu que o grande obstáculo funcional do projeto de lei era o pagamento em dinheiro às desapropriações; caixa, este, que o Governo não dispunha. Além disso, os critérios de avaliação deveriam ser justos, e as áreas de desapropriação, identificadas. Para a questão financeira, foi decretada a Emenda Constitucional 10 de 09 de novembro de 1964 (antes da aprovação do Estatuto da Terra) em que se permitia o pagamento de desapropriações com títulos da dívida pública (agrária) com correção monetária, resgatáveis em 20 anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de até 50% do Imposto Territorial Rural (ITR) e como pagamento de compra de terras públicas. Quanto à avaliação, utilizou-se o valor declarado pelo proprietário, afora as benfeitorias que seriam pagas em dinheiro. Para a identificação das áreas de desapropriação foram consideradas as áreas de conflitos mais exacerbados entre proprietários e trabalhadores (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 692-693).

De maneira geral, o projeto de lei tornou-se completo e complexo como elaboração política, mas de aplicação muito trabalhosa (tinha-se que cadastrar 4 milhões de estabelecimentos rurais para calcular tributos – área utilizada e total, produtividade dos cultivos, relações com trabalhadores, respeito ao meio ambiente e inadimplência de imposto – e, em parte desses estabelecimentos, implementar estratégia de desapropriação). Tudo isso porque a questão agrária demandou a utilização de muitos instrumentos de política por conta das diversidades regionais (que implicou módulos regionais) para a cobrança dos impostos que detinham características diferentes: tamanho (áreas), distância dos centros consumidores, grau de aproveitamento econômico e utilização social da propriedade. (Campos, 1994CAMPOS, R. O. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 694-695).

Nesta seção, buscou-se enfatizar as principais reflexões de Roberto Campos quanto à questão agrária e à problemática da elaboração do Estatuto da Terra e sua aplicação.

Celso Furtado, a reforma agrária e o estruturalismo

Celso Furtado não esteve envolvido diretamente na elaboração do projeto de lei que foi promulgado no Estatuto da Terra em novembro de 1964, por meio do GRET, e tampouco fazia parte do governo golpista, já que tinha sido ministro no governo Goulart, que sofreu o golpe de Estado. Mas devido às suas ideias e influência, acredita-se que teve papel indireto e importante no Estatuto da Terra vigente até os dias de hoje, já que, na sua visão, entre as reformas de base do governo Goulart, a reforma agrária era de extrema importância. Como visto nas seções anteriores, a formulação do Estatuto da Terra foi também uma forma de "continuidade" de resposta aos anseios populares do governo anterior e, exatamente por isso, as ideias de Celso Furtado influenciaram indiretamente o Estatuto da Terra e suas reformulações.

Furtado não somente sempre teve uma preocupação bastante peculiar com a agricultura, como também sempre defendeu a reforma agrária como essencial para o desenvolvimento econômico do País.

Para Furtado (1989, p. 16-17)______. A fantasia desfeita. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989., a reforma agrária é um elemento viabilizador da industrialização, pois cria mercado interno, aumenta a oferta de alimentos e impede o aumento dos salários nominais urbanos via oferta de alimentos a preços inferiores. A estrutura agrária brasileira representa uma deformação do sistema econômico (Furtado, 1998______. Formação econômica do Brasil. 27. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1998., p. 137). Logo, a Constituição deve permitir uma reforma agrária efetiva (entenda-se desapropriação), que elimine o desperdício de mão de obra e a baixa eficiência do capital agrário (Furtado, 1981______. O Brasil pós-"milagre". 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (Coleção Estudos Brasileiros)., 24-25). Para tanto, é necessário, no curto prazo, uma elevação do nível de vida do terço inferior da população rural que influencia diretamente a produtividade de grande parte do setor agrícola (Furtado, 1962FURTADO, C. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962., p. 44). Paralelamente, mas não menos importante, deve-se reduzir a presença de latifúndios nas frentes pioneiras e regiões beneficiadas pelo moderno sistema de transportes. Em outras palavras, trata-se de desapropriar os latifúndios de áreas próximas aos mercados consumidores e deslocá-los para áreas de fronteira agrícola, pois esses têm condições econômicas de operar naquele ambiente, diferente da exploração de áreas menores.

Na história do subdesenvolvimento brasileiro, a estrutura agrária é fundamental para explicar o grau de capitalismo rural (Furtado, 1983b______. Celso Furtado: economia. São Paulo: Ática, 1983b. (Coleção Grandes Cientistas Sociais)., p. 176). A abundância de terras e o controle do acesso às terras de mais fácil exploração permitiram atravessar a crise da abolição do trabalho escravo preservando a estrutura agrária. Inicialmente, a agricultura itinerante na fronteira interna (franjas) das grandes propriedades imobilizou quantidades consideráveis de terras e perpetuou técnicas agrícolas rudimentares, além da implicação de crescente destruição de recursos naturais (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 91-92).

Com a abundância de terras, a pecuária significou um mecanismo de acumulação natural no interior e nas fronteiras das propriedades que intensificou o processo de ocupação e povoamento do território. No princípio da ocupação, as terras eram um bem de pequeno valor. O que diferenciava ter ou não terras era a capacidade de investimento para a produção nas mesmas, daí a prática da concessão de terras aos indivíduos de posses. Aqueles que chegaram após a ocupação não alcançaram a propriedade da terra, pois esta já havia sido cedida a grandes produtores, salvo em casos de arrendamento ou outro contrato, já que havia produtores que utilizavam pequenas parcelas de terras. Assim, o controle da propriedade das terras por uma minoria impediu a emergência de atividades agrícolas independentes dos estabelecimentos agromercantis (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 9596).

O avanço gradual da grande propriedade rural sobre as fronteiras agrícolas expulsava paulatinamente os sitiantes posseiros para que a produção de larga escala fosse praticada já em solo aberto. Esses posseiros acabavam se deslocando para cada vez mais longe. Nessas terras do front, a comercialização dos produtos era difícil e demandava recursos financeiros que praticamente inexistiam. Nessa agricultura itinerante, tinha-se um nível tecnológico rudimentar e com baixa capitalização, além de precárias condições de vida, de onde se deriva a determinação do preço da mão de obra rural (dado esse sistema de poder da terra) – os posseiros do front, durante parte do ano (especialmente na colheita), trabalhavam para os grandes proprietários de terras a preços da sua condição de vida, o que significava uma oferta de mão de obra elástica com má distribuição de renda (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 58-66).

Furtado (1983a, p. 160-162)______. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. propõe uma tipologia de estruturas agrárias que se utiliza de variáveis, como abundância e escassez de terras aptas à agricultura e grau de acessibilidade à propriedade da terra, que pode ser visualizada no quadro 1, a seguir. A ideia central é que existem agriculturas de subsistência e comercial, bem como tradicional (que utiliza tecnologias estacionárias) e moderna (que se atualizam tecnologicamente). O arranjo dessas variáveis pode representar três casos particulares observáveis empiricamente: a) terras abundantes, com população crescente e rendimentos constantes de escala; b) terras escassas, com população crescente e rendimentos decrescentes de escala; c) terras escassas, com população estacionária e rendimentos constantes de escala.

Quadro 1 Tipologia de estruturas agrárias

O tipo de estrutura agrária (c a) é melhor representado por países subdesenvolvidos, como o Brasil, onde coexistem terras abundantes com acesso difícil, dependendo da incorporação à produção, construção de infraestrutura e "abertura" de terras nas fronteiras. O tipo (c b) é uma situação rara que pode ser imaginada como uma agricultura artesanal. O tipo (d a) refere-se à agricultura tradicional e não capitalista. Por fim, o tipo (d b) é um caso de expansão demográfica a partir de (c b), caso típico de divisão familiar.

A escassez de terras tende a reproduzir estruturas agrárias menos propícias à passagem da agricultura tradicional para a moderna. Em (d a) existe uma pressão sobre a população trabalhadora, o que significa que o excedente extraído é máximo, proporcional ao que produz cada trabalhador. Em (d b) os minifundistas podem reverter a agricultura de subsistência, reduzindo o excedente dos grandes proprietários, mas também existe a possibilidade de controle parcial do comércio por cooperação de minifundiários (cooperativas).

Na hipótese de existência de terras abundantes com difícil acesso, coexistem modos de produção artesanal e capitalista, onde as melhores terras são apropriadas pelos capitalistas latifundiários. De outro lado, tem-se agricultura em terras de qualidade inferior, distante dos meios de transporte e com produção baseada em tecnologia tradicional mal utilizada e desperdício de mão de obra.

O desenvolvimento econômico não é compatível com a agricultura tradicional. A passagem da agricultura tradicional para a moderna pode ser obtida com a transferência de excedentes do meio urbano para o rural, ou com o aumento do excedente rural como incremento de produtividade resultante das vantagens comparativas no comércio internacional (Furtado, 1980FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento:enfoque interdisciplinar. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980., p. 95-96).

A estrutura agrária e a distribuição de terras também são relevantes para o desenvolvimento porque a agricultura é importante empregador de mão de obra. Em termos de desenvolvimento global de uma economia, o setor agropecuário não é condição suficiente; contudo, é condição necessária em decorrência do abastecimento de alimentos. Porém, na prática, o desenvolvimento atual não beneficiou os trabalhadores rurais (Furtado, 1980FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento:enfoque interdisciplinar. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980., p. 98-99).

Empiricamente, a média propriedade é mais eficiente economicamente, assim como os investimentos são maiores nas médias e grandes propriedades. O minifúndio é inferior, em termos de produtividade, a própria unidade familiar de produção. Os minifúndios são antieconômicos porque não geram excedentes satisfatórios aos produtores, como resultado da utilização de tecnologia de produção tradicional (atrasada). De outro lado, os latifúndios são igualmente antieconômicos porque subutilizam terra, capital e mão de obra. Logo, tem-se concentração de renda e liberação de mão de obra na agricultura (Furtado, 1968______. Um projeto para o Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Saga, 1968., p. 61-64,).

A agricultura combina recursos produtivos, mas, na agricultura tradicional, a expansão do produto se dá por adição de insumos. Trata-se de uma herança cultural com técnicas produtivas que são transferidas de acordo com os costumes. Já a agricultura moderna gera excedentes produtivos através da tecnologia. A transição de uma economia tradicional para a moderna prevê reduções na quantidade de mão de obra empregada na produção rural (Furtado, 1980FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento:enfoque interdisciplinar. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980., p. 9798,).

A absorção técnica de capital pela agricultura brasileira é dificultada pela atual estrutura, cujas raízes derivam de um sistema de poder instalado na sociedade agrária (presença de latifúndios desde a época da Coroa). A "fazenda" pode ser considerada uma instituição básica pré-capitalista, pois guarda características antieconômicas como a subutilização, a sub-remuneração e o subemprego.

Dividido o setor agrícola entre exportador e tradicional (fazenda), tem-se uma noção do quão capitalista é o setor. Isso porque a absorção de mão de obra, dada uma demanda externa, era determinada pela disponibilidade de terras em localização e com qualidade privilegiadas, apoiada na produtividade física da mão de obra e por salários reais baixos (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 115-117).

Num sistema capitalista eficiente, a remuneração dos trabalhadores rurais do setor externo deveria ser maior do que a do setor tradicional (fazendas). Quando se fixa uma taxa de salários superior no setor exportador rural, esse setor assegura uma oferta totalmente elástica de mão de obra. Mas, a agricultura funciona como reservatório de mão de obra a um nível de salários definido pelas condições de vida nas "fazendas pré-capitalistas". Essa é a dinâmica que se apresenta, pois a terra é um fator abundante e a oferta de mão de obra mantém elevada elasticidade a salários baixos. De maneira geral, isso permitiu que a estrutura agrária não se modificasse com a transposição dos ciclos econômicos agrícolas brasileiros (Furtado, p. 119-120, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.).

A atual estrutura agrária assegura mão de obra (rural e urbana) a baixo custo num país de solos que perdem rapidamente sua fertilidade natural, mas que são abundantes. Como as terras são abundantes, a população rural tem assegurados os meios de subsistência, mesmo dispondo somente da sua força de trabalho e de técnicas tradicionais (não modernas).

A agricultura familiar se utiliza de técnicas tradicionais em terras de qualidade inferior e não tem aptidão para a acumulação de capital. Uma interpretação é a de que com a rotação de terras (necessária nesse nível tecnológico), o agricultor se transforma em migrante e restringe sua capacidade de acumulação. As terras de boa qualidade ou que se beneficiam de economias externas (próximas de mercados consumidores, transporte eficaz etc.) são praticamente inacessíveis aos que não dispõem de capital e/ou acesso ao poder político. Ainda, quando possível, a produção familiar em terras de boa qualidade também não consegue acumular capital, pois essas terras se encontram nas mãos de grandes proprietários e, portanto, o aluguel é elevado e/ou o tamanho da propriedade é inadequado à modernização. Em outras palavras, o pequeno produtor familiar não consegue se emancipar socioeconomicamente através da produção rural (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 120-121; Delgado, 2001DELGADO, G. C. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra: um estudo da reflexão agrária. Estudos Avançados, v. 15, n. 43, p. 157-171, 2001., 2009______. Terra e mão-de-obra em formação econômica do Brasil. In: ARAÚJO, T. P. de; VIANNA, S. T. W.; MACAMBIRA, J. (Org.). 50 anos de formação econômica do Brasil: ensaios sobre a obra clássica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Ipea. 2009.).

Nesse sentido, a acumulação de capital é uma característica marcante do latifúndio, e é o rendimento do minifúndio familiar que define o custo da mão de obra empregada nos latifúndios. Mas, por outro lado, os minifúndios tornam-se importantes no que se refere a produtos não explorados pelos latifúndios, tais como farinha, hortícolas etc. A lógica do latifúndio é a utilização extensiva dos recursos naturais e o bloqueio da acumulação de capital na exploração familiar para ter mão de obra a baixo custo e maximizar o excedente da agricultura.

Generalizadamente, a tensão estrutural causada pelo rápido processo de industrialização provocou uma elevação da população urbana e suburbana, e isso impactou positivamente a demanda por alimentos no mercado. No primeiro momento, a agricultura não estava preparada para essa nova demanda. O tamanho das propriedades rurais não tem correspondência com a capacidade empresarial e com o predomínio de latifúndios ineficientes economicamente. A resposta aos estímulos econômicos tem como consequência uma oferta de alimentos insuficiente, um aumento da renda e a valorização da terra. Para sanar essas deficiências, deve-se dotar o País com uma agricultura capaz de responder ao estímulo crescente de absorção tecnológica e de capitais, e não, como acontece atualmente, com a elevação dos preços dos produtos e remuneração de latifundiários ineficientes (Furtado, 1972______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 118-122).

Portanto, para Furtado, o controle do acesso a terra pelo Estado representa a definição das relações entre o homem que trabalha na terra e a produção extraída desta. A pressão que o sistema de poder exerce sobre a população rural a fim de extrair excedente encontra limites definidos pelo contexto cultural e pelas situações históricas. No Brasil, a agricultura tradicional (de subsistência) consome 2/3 da sua própria produção (autoconsumo) e, paralelamente, existe a agricultura comercial que vende o produto rural.

Adicionalmente, Furtado acreditava que a utilização das terras poderia ser direcionada à exploração familiar ou comunitária, do tipo senhorial, ou capitalista. Na exploração familiar ou comunitária, o excedente advém da renda da terra ou é ainda baseado em critérios mercantis (com terra própria). Quanto mais desfavorável a relação homem/terra, maior a dependência dos circuitos comerciais e, portanto, maior o excedente; por outro lado, quanto maior a relação homem/terra, mais opções de tecnologias se tem a empregar, com uma consequente pequena parte de excedente.

Na exploração do tipo senhorial (arrendamento ou parceria), o pagamento da mão de obra se dá através da concessão da terra, que é utilizada extensivamente para a produção de excedente e intensivamente para a subsistência da população trabalhadora. A tecnologia empregada é tradicional, e o excedente tem traços de autoritarismo.

A exploração capitalista utiliza recursos produtivos que têm preço de mercado, e o excedente tem sua origem em transações mercantis. O preço da mão de obra reflete as relações de autoridade implícitas na estrutura agrária. A estrutura agrária é resultante de um processo no qual fatores culturais e ecológicos interagem num contexto histórico (Furtado, 1980FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento:enfoque interdisciplinar. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980., p. 101-102).

Em suma, as explorações familiar e senhorial estão a serviço dos proprietários de grandes glebas de terras, e esses é que acabam se apropriando do excedente gerado. A exploração capitalista, por sua vez, acontece em grandes propriedades rurais com geração de excedente. Logo, a estrutura agrária com concentração de terras só beneficia os grandes proprietários de terras, o que confirma as constatações de Roberto Campos e o texto do Estatuto da Terra quanto à subutilização de terras por conta dos latifúndios, o que acarretaria o não cumprimento de uma das funções sociais da terra, conforme visto na seção anterior do presente artigo.

A ampliação do sistema produtivo agrícola tem limites na legislação que impedem a reconstrução da estrutura agrária em função das necessidades do desenvolvimento econômico e social. A atual estrutura agrária concentrada dificulta a modernização da agricultura pela indisposição de terras cultiváveis. Uma reforma agrária deveria garantir:

a) que nenhum trabalhador rural, parceiro ou arrendatário fosse privado de terras para plantar ou de trabalho sem a justa indenização;

b) que nenhum trabalhador que obtivesse rendimento igual ou inferior ao correspondente a um salário mínimo familiar regional deveria pagar renda da terra;

c) que todas as terras consideradas necessárias à produção de alimentos e que não estejam sendo utilizadas, ou estejam, para outros fins, com rendimentos inferiores a medidas estabelecidas regionalmente, deveriam ser desapropriadas com pagamento no longo prazo;

d) que haja redistribuição das funções de supervisão entre governos federal e estaduais. Na esfera federal, deve-se assegurar por 10 anos, após a redistribuição de terras, assistência técnica e financiamento, em montante não inferior a 1/3 do orçamento público federal e 1/10 dos investimentos totais realizados no país;

e) a organização da distribuição de alimentos com preços mínimos fixados em termos reais para os produtores e preços máximos ao consumidor por regiões, isto com o apoio de uma rede nacional de armazéns e silos e sistemas de mercados centrais urbanos;

f) o aumento da produtividade de toda agricultura para aumentar o nível de vida em cada caso/região específica;

g) aos meeiros, participação de 4/5 das terras desapropriadas;

h) aos minifundistas que pagam renda da terra, a desapropriação dessas terras com a transferência de titularidade a estes;

i) aos assalariados rurais de baixo nível de renda, um salário com aumento real parcelado entre 2 a 4 anos até atingir nível adequado equivalente ao mercado de trabalho em geral;

j) aos minifundistas, a desapropriação de terras com reagrupamento da terra em um período de 3 a 5 anos, e garantia às famílias de um mínimo de 3 a 5 hectares de terra;

k) a prioridade na desapropriação (com pagamento entre 3 a 5 anos), às terras mais próximas aos centros urbanos (e ociosas); devem servir como médias propriedades rurais que empregariam trabalhadores;

l) a concessão de crédito especializado, garantia de comercialização e preços mínimos, estocagem, moradia rural, organização sindical dos agricultores e ensino adaptado à realidade rural. (Furtado, p. 64-66, 1968______. Um projeto para o Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Saga, 1968.).

O resultado dessas medidas seria uma elevação inicial dos preços dos alimentos, mas que representaria uma transferência de renda real da população urbana para a rural em benefício dos trabalhadores do campo. Já especificamente o aumento da produtividade de parte da agricultura elevaria a oferta de alimentos e a ampliação de produtos industriais de consumo geral. As propriedades médias e familiares elevariam o nível de tecnologia com o acesso a insumos a preços adequados, e a absorção de minifúndios por unidades familiares resultaria em vantagem econômica desde que acompanhado de elevação do nível tecnológico (adubos, máquinas etc.).

De maneira geral, as contribuições de Celso Furtado para a questão agrária vão além da reforma, pois envolvem um conjunto de ideias que levam em conta as particularidades regionais (sejam elas culturais, sociais, econômicas ou técnicas) e nacionais, no âmbito político e institucional, que já estavam sendo gestadas nas reformas de base (ou estruturais) a serem implementadas pelo governo Goulart.

Estatuto da Terra e o pensamento econômico

O Estatuto da Terra, aprovado originalmente em 30 de novembro de 1964 e ainda vigente, contém 128 artigos e 4 capítulos, embora tenha sido modificado diversas vezes ao longo dos anos.

No Estatuto, apesar da complexidade operacional, destaca-se a noção de que a terra é um bem estratégico para o País e que pode sofrer a ação do Estado no sentido de dar um caráter socioeconômico ao seu uso. Porém, devido a essa complexidade e à falta de empenho político na esfera do Governo, os resultados não foram satisfatórios. Nos governos posteriores ao de Castelo Branco, praticamente nada se fez – à exceção do governo Figueiredo, com alguns assentamentos baseados em terras devolutas/desapropriações, e outros com essa mesma prática.

A tributação progressiva e prêmios por produtividade, que seriam os grandes instrumentos na redistribuição da terra, não foram aplicados. Em outras palavras, o Estatuto não serviu para desencorajar a terra ociosa nem para financiar a colonização (reagrupamento de produtores familiares em módulos rurais). Nas últimas décadas, a desapropriação para a criação de unidades familiares tem sido a tônica das ações dos governos, paralelamente a alguma política agrária de assistência técnica e de crédito.

No confronto do pensamento de Roberto Campos e Celso Furtado frente ao que se consubstanciou no Estatuto da Terra, percebem-se algumas questões de convergência e outros pontos distintos, conforme se pode observar no Quadro 2. Nesse quadro, observa-se ainda que nem tudo o que foi instituído pelo Estatuto foi ou vem sendo utilizado na prática. As diferenças entre as ideias de Campos e de Furtado presentes no Estatuto podem ser subdivididas em cinco categorias analíticas: desapropriações e pagamentos pelas desapropriações, tributação, regionalização, política agrária e relações de trabalho.

Quadro 2 Pensamento teórico político de Campos e Furtado frente ao Estatuto da Terra

Desapropriações e seus pagamentos

Para Campos, as áreas de conflito (incluindo latifúndios subutilizados) e minifúndios deveriam ser prioridade no que tange à questão das desapropriações; enquanto para Furtado, os principais alvos seriam tanto latifúndios localizados nas proximidades dos centros urbanos como minifúndios antieconômicos e terras necessárias à produção de alimentos. No Estatuto da Terra, elegeram-se latifúndios e minifúndios como áreas preferenciais de desapropriação. Além dessas, também foi orientada a ação de desapropriação de áreas sob foco de obras públicas, áreas não preservadas de recursos naturais, áreas colonizadas que não atingiram o objetivo socioeconômico, áreas com alta incidência de arrendatários, parceiros e posseiros, além de áreas cuja exploração econômica não se coadunava com a vocação observada no zoneamento agroeconômico. Empiricamente, as desapropriações têm sido feitas em áreas de conflito, envolvendo latifúndios considerados improdutivos, sobretudo com a presença de movimentos sociais.

Com respeito ao pagamento das desapropriações, Campos aventava o pagamento com títulos da dívida agrária em virtude da ausência de caixa do Governo para tal ação. Já Furtado não deixa clara a modalidade de pagamento, mas estipula prazos; o entendimento de que seria em dinheiro é derivado da Constituição (à época) que previa somente pagamentos nessa modalidade. No Estatuto da Terra, seguiu-se a determinação da Constituição e da Emenda Constitucional 10/1964. O procedimento atual de remuneração às desapropriações é feito em dinheiro, porém com prazos elásticos que variam bastante em função da avaliação do imóvel, benfeitorias e demais desembaraços.

Tributação

A tributação da terra para Campos é o principal instrumento de reforma agrária ligado ao latifúndio. O tributo progressivo com acréscimos por baixa produtividade e subutilização de área, proximidade do mercado consumidor e alta densidade demográfica, representaria a melhor forma de forçar o grande proprietário a se desfazer da terra não utilizada (ou passar a utilizá-la); assim, terse-ia uma distribuição voluntária da terra com vistas à produção. Furtado, por sua vez, não faz menção ao tributo.

O Estatuto deixa claro a cobrança do tributo sobre a terra nua utilizada na produção. Calcula-se o imposto como uma proporção de terra utilizada sobre a área total do estabelecimento. Outros critérios também foram incluídos, como o alheamento do proprietário, a dependência e participação do proprietário nas atividades produtivas, a produtividade do estabelecimento frente à produtividade média regional e a progressividade (das taxas) conforme aumentos de área do estabelecimento. Na prática, o imposto é pouco progressivo, pois imprime a mesma alíquota para propriedades acima de 100 módulos; logo não discrimina a grande propriedade (latifúndio). Ainda, o único critério observado na tributação é a área do imóvel, enquanto os demais fatores não são observados no lançamento do tributo.

Regionalização

A regionalização das terras e a produção rural, para Campos, era questão fundamental para a diferenciação e tratamento das propriedades rurais, ou seja, tratar de forma diferenciada os diferentes. Logo, a extensão do módulo regional representaria a área mínima que uma família, produzindo um mix de produtos – de acordo com as aptidões regionais –, necessitaria para ultrapassar a simples manutenção das condições econômicas familiares. Para tanto, estudos regionais e de zoneamento seriam feitos para identificar os módulos, e esses seriam utilizados para a distribuição e tributação das terras. Furtado também elege a questão regional como fundamental, porém estipula de 3 a 5 hectares a área suficiente para uma família se emancipar socioeconomicamente. No Estatuto, as ideias de Campos foram totalmente absorvidas e, atualmente, os módulos são utilizados para questões de assentamentos de reforma agrária.

Política agrária

Campos imaginou um suporte às "novas" propriedades baseado em crédito, assistência técnica e preços mínimos ao produtor para assegurar, além da produção, a comercialização. Segundo Furtado, a política agrária deveria, além daquilo que Campos elencou (com limites preestabelecidos), enfatizar a comercialização através de armazéns e distribuidoras de alimentos estatais, prover moradia rural, fornecer ensino adaptado à realidade rural e estabelecer não somente preços mínimos aos produtores mas também preços máximos aos consumidores.

No Estatuto, das propostas de Campos e Furtado, somente não prevaleceram os limites (de valores) máximos fixados, e, adicionalmente, aprovouse o seguro agrícola, programa de produção e distribuição de sementes e reprodutores (inseminação artificial), mecanização agrícola e incentivo ao cooperativismo, industrialização e beneficiamento de produtos para agregação de valor e dotação das propriedades de eletrificação rural e obras de infraestrutura, tais como estradas etc. De maneira geral, a partir dos anos 1980, as esferas de governo vêm cumprindo com essas atribuições, embora se possa questionar a qualidade das ações e a quantidade dessas intervenções, além das diferenças regionais.

Relações de trabalho

As relações de trabalho, na análise de Campos, referem-se ao estabelecimento de regras claras e objetivas que evitem a "exploração" econômica nos contratos de arrendamento e parceria e à promoção da distribuição de terras aos agentes beneficiários desprovidos das mesmas. Para Furtado, além dessas categorias (às quais se reservaria 4/5 das terras a distribuir e o não pagamento da renda da terra quando a renda fosse baixa), dar-se-ia aos trabalhadores rurais aumentos de salário real e organização sindical para garantir uma remuneração justa.

Quando analisado o Estatuto, percebe-se a preocupação com a distribuição de terras a produtores familiares (sejam arrendatários, parceiros ou simplesmente trabalhadores), especialmente aqueles com renda baixa; ademais, estabeleceram-se regras para arrendamentos e parcerias. Empiricamente, percebe-se que a distribuição de terras para reforma agrária tem obedecido à questão da posse e titulação a produtores familiares em assentamentos (colonização) e a observação das regras de arrendamento e parceria. Contudo, a questão da remuneração dos trabalhadores passou à margem da Lei de Terras. Talvez, pelo fato de que a legislação trabalhista e previdenciária se preste melhor a esse fim.

Apesar da complexidade do Estatuto da Terra, foi possível identificar, nesta seção, alguns elementos presentes nos ideários de Roberto Campos e Celso Furtado descritos nas seções anteriores deste artigo. Verificou-se que apesar de Campos, então ministro do Planejamento em 1964, ter composto o GRET para elaborar o projeto de lei que viria a ser aprovado como o Estatuto da Terra, suas ideias e pensamentos não foram integralmente inseridos no texto final aprovado pelo Congresso Nacional.

Como mencionado em seções anteriores, foram 14 versões do projeto de lei, refinadas pela equipe do GRET, além de terem sofrido inúmeras pressões de todos os lados, seja daqueles que queriam que o Estatuto fosse instrumento de uma verdadeira reforma agrária, seja daqueles que eram contra a reforma. A discussão desta seção mostra que houve espaço (de forma proposital ou não) para que algumas propostas do governo Goulart e, por conseguinte, de Celso Furtado, pudessem ser incorporadas de forma indireta no texto final do Estatuto que foi aprovado..

Nas cinco dimensões analisadas do Estatuto da Terra, como resultado, pode-se perceber que estão contemplados os pensamentos e ideias de Campos e Furtado, com algumas diferenças na forma como os mesmos foram definitivamente incluídos no texto final do Estatuto.

Considerações finais

A produção de alimentos é importante para toda sociedade, pois dela depende a manutenção da vida. A sociedade urbana, em especial, é mais fragilizada quanto à garantia de fornecimento de alimentos em quantidade, qualidade e regularidade, considerando-se que não se pode produzir alimentos em escala na área urbana. Portanto, o meio rural torna-se importante na medida em que serve de base para si próprio e para a população urbana na questão da produção de alimentos. Para que a produção rural ocorra é necessário que se tenha um conjunto de normas que regulem a atividade produtiva rural, bem como a propriedade dos imóveis rurais. Isso porque, com regras, os investimentos podem ser realizados, e a produção executada.

A forma vigente em países democráticos de direito pela qual se regula qualquer atividade é por meio de leis. No âmbito do meio rural brasileiro, tem-se o Estatuto da Terra, vigente desde 1964 (que sofreu algumas alterações ao longo do tempo, mas pouco radicais). A confecção de uma lei de terras como o Estatuto representa um marco importante que determina o tipo de sociedade rural que se deseja.

Assim, no ano de 1964, elaborou-se um projeto de lei que deu origem ao Estatuto da Terra. A elaboração de qualquer lei desse tipo considera, mesmo que involuntariamente, o pensamento e as contribuições de especialistas. Nesse sentido, o coordenador do projeto de lei, e então ministro do Planejamento, Roberto Campos, tornou-se importante para a compreensão das diretrizes gerais contidas no projeto. Por outro lado, esperou-se que parte das ideias do economista Celso Furtado, reconhecido por sua preocupação com o (sub)desenvolvimento brasileiro e como ministro de Planejamento do governo anterior (João Goulart), responsável pelas reformas de base que estavam sendo implementadas e pelo Plano Trienal, também estivesse aderida ao projeto e à posterior Lei.

Nesse sentido, este artigo, pioneiramente, se preocupou em identificar as contribuições do pensamento de Roberto Campos e Celso Furtado no Estatuto da Terra. Para tanto, identificou-se ações sugeridas pelos autores, confrontando-as com o Estatuto e a sua aplicação prática.

Analisando-se as ações sugeridas por ambos pensadores, tem-se alguma sobreposição de ideias com respeito às desapropriações, à questão da regionalização da questão agrária, de política agrária e relações de trabalho. Mas as ideias de Furtado prevalecem na questão da desapropriação, uma vez que englobam, além dos minifúndios, os latifúndios. Ademais, atualmente, as desapropriações são executadas basicamente em latifúndios. Além disso, Furtado se aproxima mais do consubstanciado no Estatuto no que se refere à questão da política agrária, além de estipular valores a serem aplicados.

As ideias de Campos estão presentes, em termos da legislação, na questão do pagamento das desapropriações (com títulos). Furtado, no entanto, "prevê" algum pagamento em dinheiro, também incluso na lei. Portanto, contribuições de ambos são observadas no Estatuto na questão das desapropriações.

O pensamento de Campos prevalece na questão da tributação da terra, apesar da sua pouca operacionalidade nos dias atuais, sobretudo em relação à progressividade, produtividade, proximidade ao mercado consumidor e densidade demográfica. Ademais, sobre a regionalização das propriedades, Campos concebe módulos rurais que são baseados em características regionais (obtidos por estudos técnicos) e que representam um avanço para a diferenciação entre produtores. Furtado também admite a questão regional mas define exogenamente o tamanho dos módulos. Nos dias atuais, os módulos são utilizados para efeito de assentamentos de reforma agrária, para a qual foram criados.

As ideias de Campos sobressaem ainda quando se trata de relações de trabalho. Para ele, essas relações implicam em estipular regras claras sobre contratos de arrendamento e parceria com prioridade no acesso a terra. Furtado, no entanto, enfatiza a questão do trabalhador rural, que ficou reduzida no Estatuto.

Empiricamente, são observadas essas regras nos contratos, com prioridade na distribuição de terras para arrendatários e parceiros.

Por fim, vale dizer que o pensamento de ambos os autores está presente no Estatuto da Terra e na sua aplicação prática; entretanto, com ligeira prevalência do pensamento de Campos, especialmente quanto à tributação da terra, regionalização da questão agrária e relações de trabalho no campo, o que não quer dizer que as ideias de Furtado sejam de menor importância. Significa somente que, no Estatuto, o ponto de vista de Campos é um pouco mais observado em certas questões, possivelmente por ele ter participado da elaboração do projeto de lei inicial.