Operação que gera o ágio deve ser legítima


Rômulo Cristiano Coutinho da Silva
Doutorando e Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo – USP. MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI. Professor nos cursos de Pós-graduação FIPECAFI, IBDT e INSPER. Advogado em São Paulo. E-mail:

Resumo. O presente artigo tem por objetivo analisar os limites da aproximação interdisciplinar entre o Direito Tributário e a Contabilidade, bem como da intertextualidade normativa entre os regimes contábil e fiscal do ágio. Busca-se, com isso, estabelecer balizas interpretativas, à luz da segurança jurídica, no que diz respeito à figura do “ágio interno” e seus efeitos no âmbito do sistema jurídico-tributário.

Palavras-chave: ágio, segurança jurídica, legalidade, igualdade, planejamento tributário

Abstract.

The article aims to analyze the limits of the interdisciplinary approximation between Tax Law and Accounting, as well as of the normative intertextuality between the accounting and fiscal regimes of goodwill. Therefore, it intends to establish interpretive limits, in the light of legal certainty, with respect to the figure of internal goodwill and its effects within the legal-tax system.

Keywords: goodwill, legal certainty, principle of lawfulness, equality, tax planning

A discussão em torno do tratamento fiscal do ágio tem sido bastante intensa ao longo dos últimos anos no contexto do Direito Tributário brasileiro. Se, de um lado, há regramento expresso permitindo a amortização do ágio para fins de apuração da renda e do lucro líquido, de outro, o debate entre contribuinte e Fisco aponta para soluções dissonantes no que diz respeito ao aproveitamento, para fins tributários, do ágio gerado em operações entre partes dependentes (“ágio interno”).

Tendo em vista esse cenário de evidente insegurança jurídica, foi publicada a Lei n. 12.973/2014, que veio para estabelecer novas regras a respeito do aproveitamento fiscal do ágio formado em reorganizações societárias, inclusive daquele originado em operações de um mesmo grupo econômico, o qual passou a ter a sua amortização fiscal expressamente vedada.

Apesar de o novo regramento tributário do ágio apresentar diversos pontos inéditos em relação à legislação anterior, particularmente em relação ao fenômeno do “ágio interno”, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) tem reverberado, em julgamentos recentes, o posicionamento de que esses novos enunciados prescritivos funcionam apenas como esclarecimentos interpretativos das regras anteriormente vigentes, sendo permitido, portanto, o seu efeito retroativo.

Assim, mesmo após nova regulamentação, a insegurança jurídica que orbita a temática dos efeitos fiscais do “ágio interno” prevalece, justificando, portanto, o estudo do fenômeno à luz do princípio da segurança jurídica, de tal forma a se estabelecer limites à interdisciplinaridade entre Direito e Contabilidade, bem como à intertextualidade normativa entre as normas de Direito Tributário que regulam o tema e as normas de Direito Privado que, para fins contábeis, estabelecem parâmetros e critérios necessários para o reconhecimento do ágio.

Com o intuito de enfrentar esse desafio, o presente artigo destaca, inicialmente, alguns pressupostos hermenêuticos fundamentais para a análise da questão posta. Primeiro, são analisados os contornos do sistema jurídico, bem como os limites que devem ser observados na aproximação interdisciplinar do Direito com outras ciências do conhecimento humano. Nesse contexto, busca-se demonstrar que devem ser observadas determinadas balizas não apenas no que concerne à interdisciplinaridade, mas também com relação à intertextualidade normativa entre o Direito Tributário e outros ramos didaticamente autônomos do ordenamento jurídico.

Fixadas essas premissas, estuda-se, no tópico seguinte, a importância dos padrões legais como ferramenta de orientação dos particulares no exercício da sua liberdade de maneira juridicamente orientada. Nesse contexto, o artigo procura pontuar as razões pelas quais os padrões legais operam como verdadeiras ferramentas de concretização da igualdade e da segurança jurídica.

Se assim é, o estudo que ora se propõe segue buscando identificar se, no ordenamento jurídico brasileiro, anteriormente à Lei n. 12.973/2014, existiam regras tributárias específicas delimitando os requisitos necessários para o aproveitamento fiscal do ágio, ou seja, se existia um padrão legal bastante claro acerca do instituto em questão, que permitia ou vedava a amortização, para fins tributários, do ágio oriundo de operações entre partes dependentes.

Ao final, o presente artigo analisa os efeitos fiscais das novas condições estabelecidas pela Lei n. 12.973/2014 no que toca ao “ágio interno”, bem como a influência dessas novas regras na interpretação do cenário legislativo anterior.

Interdisciplinaridade, intertextualidade e o direito tributário

Qualquer análise interdisciplinar do Direito que se pressuponha científica requer o apontamento de um sistema de referência sobre o qual se assentarão as premissas adotadas, para que então se possa chegar a conclusões coerentes e concatenadas sobre a aproximação interdisciplinar desse sistema com outros campos do saber científico.

Sistema é um conjunto de elementos que se relacionam entre si de maneira ordenada 1 ou, consoante os ensinamentos de Tercio Sampaio Ferraz Jr., um complexo que se compõe de elementos (repertório) e de relações (estrutura) 2. Nesse sentido, adverte Lourival Vilanova que todo sistema “implica ordem, isto é, uma ordenação entre as partes constituintes, relações entre as partes ou elementos” 3. Além disso, importante observar que a ideia de sistema está atrelada à noção de limite. Daí a relevância de determinado conjunto de elementos ordenadamente relacionados entre si apresentar contornos razoavelmente precisos, que permitam traçar uma linha diferencial abstrata que possibilite identificar o que pertence ao sistema e o que está fora dele 4.

O sistema jurídico é composto por unidades normativas que estão estruturadas de maneira lógica e concatenada e segundo um princípio unificador 5. Na teoria dos sistemas, fecha-se operacionalmente a partir do código binário direito/não direito, fechamento esse que é condição para que haja a interação entre o sistema jurídico e o ambiente. Elementos são cotidianamente incluídos e excluídos, de tal sorte a promover avanços e recuos no interior do próprio sistema. Isso porque, embora o sistema jurídico seja fechado do ponto de vista operacional, apresenta, nos planos semântico e pragmático, forte grau de heterogeneidade, necessária para que o legislador cubra a imensa e variável gama de situações que o Direito pretende regular, fruto da “pluralidade extensiva e intensiva do real-social” 6.

Há, portanto, em termos cognitivos, uma abertura semântica. Ocorre que cada sistema social possui estrutura, funções e efeitos que lhe são próprios e, assim sendo, não há o ingresso automático das normas de outros sistemas sociais no ordenamento jurídico. Por isso e considerando que um mesmo evento do mundo fenomênico pode ser introjetado, transformado e tornar-se operável intrassistemicamente em diferentes campos do conhecimento, a depender do que ele revela de interessante para o objeto de estudo 7, existe um filtro para o ingresso do fato social no campo da juridicidade.

A porta de entrada do ordenamento jurídico é a hipótese normativa, que faz os devidos recortes no fato social, a fim de torná-lo jurídico 8. Desse modo, a comunicação do Direito com outras ciências do conhecimento humano pressupõe influxos que tenham ingressado no sistema jurídico pelo seu competente canal de abertura, pois apenas assim referidos influxos são capazes de produzir efeitos jurídicos.

Sem adentrar nas discussões acerca da plurivocidade da expressão interdisciplinaridade, parece-nos que existe um espaço interdisciplinar de comutação discursiva entre os diversos campos do saber. Embora, de fato, exista tal possibilidade, é preciso que se respeite a autonomia disciplinar e se imponha limites à consideração dessa comutatividade para a solução de problemas próprios da Ciência do Direito, pois, caso contrário, teremos de conviver com decisões que, sob o manto da interdisciplinaridade, traduzem uma verdadeira “miscelânea resultante de um ecletismo estéril” 9.

Nessa premissa, a consideração de elementos da Contabilidade na aplicação do Direito não se dá de maneira automática e sem limitações e amarras. O fato contábil revela-se importante na construção da norma tributária apenas quando ingressar no sistema do direito positivo pela porta de entrada competente, ou seja, quando for juridicizado no antecedente de determinada prescrição legal. Questão que se coloca aqui é a seguinte: como esses institutos de outros ramos do Direito e de outras ciências são recebidos pelo Direito Tributário?

Especificamente com relação ao Direito Tributário, Ruy Barbosa Nogueira reconhece que, no Brasil, existe um “sistema tributário normativamente estruturado”, que exige que os problemas a serem enfrentados devam ser equacionados e resolvidos dentro dessa estrutura sistematizada de direito positivo 10. Existe no país um verdadeiro Sistema Constitucional Tributário 11, cujo efeito mais significativo é o de garantir, em matéria tributária, o princípio da segurança jurídica 12.

Deveras, a existência de um regramento sistemático no bojo da Constituição Federal tem como propósito concretizar as garantias e princípios que resguardam os direitos fundamentais quando do exercício das competências tributárias impositivas. Vale dizer, todo o esforço do legislador constituinte para demarcar o sistema tributário em bases constitucionais tem a finalidade precípua de conferir segurança jurídica aos contribuintes e aos entes federados em face do poder de tributar do Estado 13.

Ademais, vale lembrar que o Direito Tributário, particularmente, encontra-se estruturado de maneira singular, possuindo diversos princípios informadores da atividade impositiva e institutos próprios, que impõem ao operador do Direito o dever de não solucionar as controvérsias tributárias por meio da aplicação de princípios ou institutos de outros ramos, incongruentes com a sua natureza e a sua finalidade 14.

Não há dúvidas de que o Direito é uno e que os seus diversos ramos guardam, em maior ou menor grau, relações entre si. Apesar disso, quando do estudo da relação entre o Direito Privado e o Direito Tributário, sobretudo em razão das especificidades deste último, faz-se essencial avaliar com cautela a maneira como foram utilizados os institutos, conceitos e categorias de Direito Privado no regramento da matéria tributária, para, então, depreender seus respectivos efeitos tributários.

Há, inequivocamente, forte relação entre esses dois ramos do Direito, uma vez que a tributação recai sempre sobre fatos e fenômenos com conteúdo econômico que, na maioria das vezes, já estão regulados pelo Direito Privado 15. Particularmente no que diz respeito ao trânsito entre o Direito Tributário e Contabilidade, cabe ao intérprete perquirir se (i) o legislador se inspirou em um instituto contábil, mas decidiu positivar um conceito tributário autônomo, cujo conteúdo, para ser construído, deve considerar as regras e princípios informadores do Direito Tributário; se (ii) o Direito Tributário adotou um conceito contábil preexistente, atribuindo-lhe efeitos jurídicos próprios, sempre que constatada a sua ocorrência no mundo fenomênico; ou se (iii) há uma norma de reenvio no âmbito do Direito Tributário 16.

Isso porque o legislador tributário é livre para, dentro dos contornos constitucionais, estabelecer os mesmos efeitos fiscais para institutos que possuem arquétipos distintos no regramento do Direito Privado. Mas aqui vale a ressalva: é a lei tributária (se quiser e quando puder) que irá conferir o mesmo tratamento fiscal para institutos que se revestem de identidades distintas do ponto de vista do Direito Privado, jamais o intérprete 17.

É com base nesse raciocínio que o art. 109 do CTN reza que os efeitos tributários dos negócios jurídicos realizados entre os particulares não devem ser pesquisados com o emprego de princípios gerais de Direito Privado 18. Infere-se desse dispositivo legal que os princípios de Direito Privado devem ser usados como ferramenta interpretativa para a definição dos efeitos jurídicos privados. Isso porque as relações jurídico-privadas, por conservarem as características e o tratamento jurídico definidos no Direito Privado, requerem que sua compreensão se dê no contexto normativo em que originariamente foram desenvolvidas. Por isso, os referidos princípios devem ser aplicados para pesquisar se determinada situação corresponde ou não ao instituto de Direito Privado previsto na lei tributária. Não podem ser invocados, no entanto, para determinar os efeitos tributários decorrentes de tal situação.

Se assim é e se um mesmo suporte fático pode ser aproveitado na elaboração de normas pertencentes a distintos sistemas do conhecimento humano, podemos sustentar, para o que importa a este estudo, que a disciplina contábil do ágio não se confunde, salvo se expressamente assim determinado pela legislação tributária, com o seu regramento constante do sistema jurídico-tributário. Assume relevância, nesse aspecto, a noção do fechamento conceitual característico do sistema jurídico-tributário, notadamente porque a intertextualidade intersistêmica tem seu limite, justamente, na norma jurídica 19. Por isso, havendo um conceito específico de ágio trabalhado intrassistemicamente pelas normas tributárias, o conceito contábil do ágio somente terá repercussão para fins jurídico-tributários quando expressamente incorporado pela legislação de regência.

Os padrões legais como instrumentos de realização da igualdade e da segurança jurídica

A liberdade do contribuinte de estruturar seus negócios do modo que melhor lhe convier, ainda que com o objetivo colimado de obter uma economia de tributos, desde que exercida por meio de instrumentos lícitos, é garantia constitucionalmente assegurada, que, além de estar radicada nas próprias garantias e direitos fundamentais, é decorrência da Ordem Econômica preconizada pela Constituição Federal, que consagra a liberdade de iniciativa, assegurando a todos o direito ao livre exercício da atividade econômica 20.

Isso não quer dizer que essa liberdade seja absoluta. Conjugando-se a legalidade tributária com a livre iniciativa, tem-se que a medida de liberdade a ser exercida pelo contribuinte, nos quadrantes de um Estado de Direito no qual vige a legalidade estrita em matéria tributária, é exatamente aquela definida em lei. A lei, ao fixar os elementos essenciais das normas tributárias, traça os contornos do âmbito de liberdade do contribuinte, dentro do qual ele certamente poderá exercer de maneira protegida os seus direitos fundamentais. Caso contrário, a legalidade não se revestirá de garantia capaz de limitar o poder de tributar, como pretendeu estabelecer a Carta Magna 21.

É por isso que a liberdade do contribuinte de estruturar determinado planejamento tributário só pode ser restringida por meio da lei, jamais pelo órgão aplicador do Direito. Inexistindo lei que limite a liberdade de planejar, não pode esta ser limitada por meio de atividade exegética do aplicador do Direito. Nos contornos da Constituição Federal, a segurança jurídica impõe o texto da lei como única fonte do Direito, como determinante das hipóteses de imposição tributária, e não a vontade ou a exegese dos aplicadores do Direito ou dos órgãos de julgamento, visando determinar que outra regra de tributação, não prevista para determinada situação, deva ser aplicada ao caso concreto 22.

Aliás, em vista da própria ideia de igualdade, para que se trate de maneira diversa duas situações equivalentes, é preciso que haja razão, prevista em lei, que justifique o tratamento diferenciado, o mesmo valendo para que aplique tratamento idêntico a situações, a princípio, díspares. O art. 5º, caput, da Constituição Federal assegura que todos são iguais perante a lei e garante a todos o direito à igualdade 23. Na seara tributária, o art. 150, inciso II, veda o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibindo qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos 24.

A igualdade consagrada pela Constituição Federal não se confunde com a identidade, pois, diferentemente desta última, a igualdade é sempre relativa. Klaus Tipke bem ensina que o princípio de que o igual deve ser tratado igualmente não quer dizer idêntico, mas relativamente igual. Por isso, a aplicação da igualdade requer que se tenha em vista sempre um determinado critério de comparação (“igual em relação a quê?”). Nesses termos, o autor alemão entende que a igualdade deve ser vista como critério de comparação ou de justiça estabelecido compulsoriamente pelo legislador para assuntos legalmente disciplinados 25. Daí a essencial unidade entre igualdade e legalidade, redutível à perspicaz expressão cunhada por José Souto Maior Borges: legalidade isonômica 26.

De fato, a legalidade consubstanciada nos arts. 5º, caput, e 150, II, da CF/1988 está atrelada à noção de legalidade isonômica, que garante que apenas será realizada a igualdade tributária, afastando-se arbitrariedades, se o aplicador do Direito, ao concretizar a norma tributária geral e abstrata, circunscrever-se aos padrões legais veiculados pela legislação ordinária e complementar 27.

Nessa perspectiva, a legalidade constitui instrumento de aplicação da isonomia e, ao padronizar o tratamento dos contribuintes, acaba lhes assegurando uma esfera reservada de autonomia privada. O padrão legal seleciona propriedades a serem avaliadas pelo aplicador do Direito e, nessa medida, reserva um campo de ação para a liberdade individual do contribuinte, que pode, ao exercitar sua autonomia privada, dele se afastar. Por tal razão, não cabe à fiscalização ignorar a eficácia do padrão legal como selecionador de propriedades relevantes para, desbordando dos limites da lei, tributar contribuintes que, dentro dos padrões legais, ou seja, sem simulação ou dissimulação, estruturam seus planejamentos tributários 28.

Impende destacar, aqui, que os padrões legais se apresentam como instrumentos de concretização não apenas da igualdade, mas também da segurança jurídica. Seguindo as lições de José Souto Maior Borges, recorda-se que a segurança jurídica interessa enquanto valor imanente ao ordenamento jurídico, na medida em que é matéria de direito posto e, dessa maneira, carrega em si um valor contemplado e consignado em normas de direito positivo 29. Por isso, a segurança jurídica apenas entra em cena quando se ultrapassa a dimensão psicológica individual para adentrar na dimensão axiológica social, representando fenômeno valorativo intersubjetivável vinculado ao Direito de uma determinada sociedade, que, portanto, há de ter sempre o jurídico como seu objeto ou como seu instrumento 30.

Como ensina Humberto Ávila, a segurança jurídica, na qualidade de norma-princípio, deve ser entendida como prescrição, direcionada aos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, “que determina a busca de um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico com base na sua cognoscibilidade” 31. Cumpre frisar, aqui, que aplicação do princípio da segurança jurídica demanda a sua relação com uma realidade jurídica, ou seja, pressupõe o cotejo de uma norma (princípio da segurança jurídica) com outra norma, legal, administrativa ou judicial 32. Como assinala César Garcia Novoa, o direito à segurança jurídica é o direito a um Direito seguro, tendo por objeto, portanto, a própria normatividade 33.

Sob esse prisma, vê-se que o objeto do princípio da segurança jurídica não é, diretamente, a configuração da realidade, mas sim a configuração do Direito ou de um direito como ferramenta instrumental para se configurar a realidade. Não é de estranhar, então, que o princípio da segurança jurídica tenha em seu conteúdo outros princípios que sejam tidos como meios adequados para que, por meio deles, se realize e se alcance a segurança jurídica 34.

Nesse diapasão, fica nítido que os padrões legais operam como ferramenta fundamental na concretização da segurança jurídica. Se o legislador determina os critérios com base nos quais os contribuintes serão discriminados, prevendo situações em que deverão ou não pagar determinados tributos, não pode o aplicador do Direito eleger qualquer outro critério de discriminação que não esteja presente na legislação, pois, neste caso, estará agindo de maneira arbitrária.

Héctor B. Villegas chama a atenção para a possibilidade de haver distorções na interpretação da norma quando da sua aplicação, o que o autor denomina de interpretação arbitrária dos preceitos legais. O jurista argentino adverte para a necessidade de evitar possíveis arbitrariedades de órgãos administrativos e judiciais na aplicação dos preceitos normativos, vedando-se, com isso, interpretações distorcidas guiadas pelo propósito exclusivo de melhorar a arrecadação tributária, bem como a adoção de critérios que vão se modificando ao longo do tempo, notadamente porque a interpretação arbitrária de preceitos legais é resultado de uma aplicação do Direito Tributário completamente desbordada dos limites legais 35.

Nesse sentido, recorda Diva Malerbi que, na cobrança de um tributo, não pode intervir a vontade do órgão aplicador da lei, pois não só o legislador vem jungido a uma série de limitações ao poder de tributar, como o Executivo e o próprio Judiciário estão proibidos de intervir com a sua própria vontade, extrapolando os limites legais. Ou seja, não pode o órgão aplicador coordenar fatos e dizer: “embora o legislador aqui não tenha colocado todos seus aspectos, podemos antever que ele pretendeu criar o tributo” 36.

A arbitrariedade, sem dúvidas, interfere na promoção de um estado ideal de calculabilidade e, por consequência, restringe indevidamente o princípio da segurança jurídica. Daí a perspicaz observação de Theophilo Cavalcanti Filho no sentido de que a arbitrariedade é repudiada pela ordem jurídica, pois traz consigo o germe da insegurança e da desordem 37.

Autuações arbitrárias realizadas pelo Fisco, que desconsideram atos e negócios jurídicos lícitos praticados pelo contribuinte, ferem frontalmente os ideais de calculabilidade e de confiabilidade que integram a segurança jurídica, notadamente porque, no contexto dos planejamentos tributários, a identificação dos efetivos limites à estruturação de operações, com o escopo de eliminar ou reduzir o pagamento de tributos, tem como ponto de partida a confiança legítima do contribuinte de que sua operação, realizada dentro dos padrões legais, não será desconsiderada para fins de tributação.

Faz-se imprescindível que haja “segurança de orientação” e “segurança de conteúdo” para que os particulares possam planejar suas atividades e atos ou negócios jurídicos patrimoniais cientes das repercussões fiscais das suas condutas. Apenas assim o contribuinte pode, por meio da observância dos padrões legais, prevenir-se de riscos, sanções e conflitos, bem como sentir-se seguro quanto às expectativas do porvir, da organização do futuro 38.

Fixados os limites à interdisciplinaridade e à intertextualidade sistêmica e visto os padrões legais como verdadeiros instrumentos de concretização da igualdade e da segurança jurídica, passemos então a analisar as polêmicas em torno do aproveitamento fiscal do “ágio interno”.

É cediço que, especialmente na jurisprudência administrativa, o aproveitamento do ágio fundamentado em rentabilidade futura tem rendido, nos últimos tempos, debates acalorados. A esse respeito, diversas são as discussões atuais, aprofundadas substancialmente em razão da recente publicação da Lei n. 12.973/2014, fruto da conversão da Medida Provisória n. 627/2013, a qual trouxe verdadeira transformação do regime jurídico-tributário do ágio, ao buscar aproximá-lo do regime contábil que lhe é próprio.

Por ora, tratemos apenas do “ágio interno” à luz do Direito vigente anteriormente ao advento da Lei n. 12.973/2014, para, no tópico seguinte, salientarmos alguns aspectos acerca da segurança jurídica na interpretação do diploma legal incorporado ao ordenamento jurídico-tributário no ano de 2014. O primeiro ponto que deve ser avaliado, nesse contexto, é a forma como interagem as regras fiscais e contábeis sobre o mesmo suporte fático (conceito de ágio) 39.

Retomando as considerações tecidas anteriormente, lembramos que um mesmo suporte fático pode ser aproveitado na elaboração de normas pertencentes a distintos sistemas do conhecimento humano, razão pela qual não há dúvidas de que a disciplina contábil do ágio não se confunde, salvo se expressamente assim determinado pela legislação tributária, com o seu regramento constante do sistema jurídico-tributário. Dito de outra forma, o conceito contábil do ágio somente terá repercussão para fins jurídico-tributários na hipótese de ser expressamente incorporado pela legislação de regência.

Analisando as normas que regulamentam o tratamento do ágio no cenário anterior à vigência da Lei n. 12.973/2014, vê-se que o art. 20 do Decreto-lei n. 1.598/1977 40 e os arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997 41 estabeleceram normas de natureza eminentemente tributária, disciplinando por completo a matéria do ágio para fins fiscais, o que já demonstra, de antemão, o equívoco em aplicar normativas contábeis acerca do ágio, para fins de atribuição dos efeitos fiscais que lhe são próprios.

Deflui dos referidos comandos normativos a permissão legal para a amortização do ágio baseado na expectativa de rentabilidade futura, não constando qualquer vedação ao aproveitamento do ágio gerado em operação realizada entre partes relacionadas, desde que observados os padrões legais. Noutras palavras, a realização da operação de aquisição de participações societárias entre partes relacionadas não era pertinente para aferir se o ágio gerado pode ou não ser aproveitado para fins fiscais. A permissão ou vedação contábil para a amortização do “ágio interno” pouco importa para a avaliação dos seus efeitos fiscais, sobretudo porque o Direito Tributário, ao se utilizar de determinado instituto do Direito Privado, pode prescindir de certas características que, exclusivamente do ponto de vista deste último, são essenciais a tal instituto 42.

Tanto é verdade que o ágio a todo tempo teve um regime jurídico-tributário próprio e particular que, embora a Teoria Contábil tenha sempre adotado o conceito de ágio como a diferença entre o preço dos ativos da empresa, isoladamente considerados, e o valor de mercado da companhia, como entendida única em operação 43, o conceito jurídico de ágio, até o advento da Lei n. 12.973/2014, se consolidou como a diferença entre o preço de aquisição e o valor patrimonial líquido do investimento (e não o valor de mercado) 44.

Como bem constataram Karem Jureidini Dias e Raphael Assef Lavez, da análise do direito positivo vigente até 2014 (ou até 2017, de acordo com as regras intertemporais da Lei n. 12.973/2014), o ágio amortizável para fins fiscais na apuração do imposto de renda das pessoas jurídicas, à proporção de 1/60 mensal, é aquele decorrente de operações que preencham cumulativamente os seguintes requisitos:

i) o ágio deve resultar da aquisição de participação societária;

ii) o ágio deve estar fundamentado na expectativa de rentabilidade futura, correspondendo à diferença entre o custo de aquisição e o valor patrimonial (ágio enquanto desdobramento do custo de aquisição), comprovando-se tal fundamento por meio de demonstrativo específico;

iii) deverá haver a absorção do patrimônio, por meio de incorporação, cisão ou fusão, da controlada pela controladora ou o inverso 45.

Daí a afirmação dos autores no sentido de que, levando em consideração os critérios supra, eleitos pelo legislador para estabelecer o padrão legal com base no qual os contribuintes serão discriminados, cabe à fiscalização, ao analisar a legitimidade do ágio gerado em operações entre parte relacionadas, cingir-se à formulação de quatro questionamentos essenciais:

  1. houve efetiva aquisição de participação societária?
  2. há efetivo custo (sacrifício) de aquisição?
  3. resta demonstrado que o ágio corresponde à diferença entre o custo de aquisição e o valor patrimonial do investimento está fundamentado na expectativa de rentabilidade futura?
  4. houve absorção do patrimônio da investida ou da investidora por meio de incorporação, fusão ou cisão 46?

Caso a resposta seja positiva para todas as questões acima, qualquer glosa da despesa correspondente à amortização do ágio em questão, desde que limitada a 1/60 mensal, carecerá de fundamento jurídico. Veja que a mera dependência entre as partes não consta dentre os requisitos para o aproveitamento fiscal do ágio; dessa maneira, desconsiderações de negócios jurídicos estruturados dentro dos requisitos acima elencados certamente desbordam dos padrões legais, violando, por consequência, a legalidade tributária, a igualdade tributária e o princípio da segurança jurídica (cognoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade do ordenamento), já que pautadas em critérios arbitrários.

Assim, a manutenção de glosas de despesas correspondentes à amortização do ágio em julgamentos realizados no âmbito do CARF, tendo por fundamento exclusivamente o fato de que as operações se deram entre sociedades vinculadas, revela uma agressão ao princípio da segurança jurídica, uma vez que, sem qualquer sombra de dúvida, restringe a promoção dos ideais de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade que o compõem. Como precisamente apontam Luís Eduardo Schoueri e Ricardo André Galendi Júnior, “a legalidade, exteriorização da segurança jurídica, não convive com fórmulas criadas por julgadores, ao arrepio de qualquer texto legal”.

Na prática das reorganizações societárias, evidentemente, existem “ágios internos” reais e aparentes, com causa e sem causa 47. Portanto, com relação à temática do “ágio interno”, é preciso que os aplicadores do Direito e os órgãos de julgamento “separem o joio do trigo” 48, ou seja, diferenciem operações societárias realizadas à margem dos padrões legais e, dessa forma, ilegítimas, daquelas em que o contribuinte, legitimamente, dentro dos padrões legais, fez uso de sua liberdade constitucionalmente garantida e, como resultado de seus negócios, legalmente se aproveitou do ágio gerado, ainda que em operações entre partes relacionadas.

O art. 22 da Lei n. 12.973/2014 e a restrição ao aproveitamento do “ágio interno”: enunciado inovador ou meramente interpretativo?

Após o advento da Lei n. 12.973/2014, além de o tratamento fiscal do ágio ter se aproximado do regime contábil, foi vedado, no art. 22 do mencionado diploma legal, o aproveitamento do ágio gerado em decorrência da aquisição de participação societária entre partes dependentes para fins fiscais. Dessa alteração legislativa surgiram posições na doutrina e na jurisprudência administrativa que sustentam que a dedutibilidade do ágio oriundo de operação entre empresas do mesmo grupo sempre foi vedada pelo ordenamento jurídico-tributário, e, portanto, devem ser atribuídos efeitos retroativos ao referido dispositivo, já que, particularmente quanto a tal aspecto, a Lei n. 12.973/2014 é meramente interpretativa.

No âmbito da jurisprudência recente do CARF, vale reproduzir, abaixo, trechos de acórdãos, retirados dos votos vencedores, se posicionando no sentido de que o art. 22 da Lei n. 12.973/2014 em nada inovou no ordenamento jurídico-tributário:

“Ainda sobre o ágio interno, cumpre ressaltar que as orientações emanadas da CVM e do CFC, bem como os pronunciamentos técnicos do CPC que cuidam da matéria não conferiram ao ágio interno uma natureza que antes ele já não tivesse. A falta de substância econômica e todas as características desse tipo de ágio antecedem a tais orientações, bem como à própria legislação que instituiu as regras de convergência internacional. Nessa linha de raciocínio, é possível concluir que a vedação à dedutibilidade do ágio interno, presente no caput do art. 22 da Lei nº 12.973/2014, vem apenas reforçar o entendimento de que esse ágio carece, e sempre careceu, de substância econômica.” 49

“8.4. Diferentemente do alegado pela contribuinte, o ágio interno não deixou de ser dedutível somente a partir da MP 627/2013, posteriormente convertida na Lei nº 12.973/2014, pois esta norma materializou posição já consolidada na ciência contábil e na jurisprudência administrativa. O princípio contábil de registro dos componentes do patrimônio pelo valor original ou histórico já existia bem antes de 2005, época dos fatos em questão.” 50

“Esses mesmos argumentos servem também para afastar a alegação de que não havia, até a edição da MP nº 627/2013 (convertida na Lei 12.973/204), base legal que autorizasse a glosa da exclusão dos valores referentes a ágio gerado em operação entre empresas de um mesmo grupo.

O texto legal apenas explicitou com mais clareza o entendimento que há muito tempo já vinha sendo manifestado em relação ao ágio interno.

O fato é que as próprias Ciências Contábeis tinham (e têm) restrições em relação à existência do ágio gerado internamente, por meio de operações societárias realizadas no interior de um grupo econômico e sem o lastro de efetiva circulação de riquezas. Com base nisso e na inexistência de lei que estabeleça tratamento tributário diferenciado para este instituto, forçoso se faz concluir pela inutilidade do denominado ‘ágio interno’ para os fins tributários pretendidos pela recorrente.” 51

O último trecho acima citado é paradigmático por três motivos. Primeiro, porque o argumento em referência prevaleceu em acórdão prolatado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”), responsável por uniformizar a jurisprudência do CARF. Segundo, porque se percebe claramente que o julgamento está estabelecendo um critério de discriminação não previsto na lei tributária, mas sim nas Ciências Contábeis, para fundamentar uma suposta inutilidade do “ágio interno” para fins fiscais, o que vai na contramão de tudo o quanto exposto até aqui. Terceiro, porque afirma categoricamente que a Lei n. 12.973/2014 teria apenas explicitado com mais clareza o entendimento que já vinha sendo manifestado acerca do “ágio interno”, demonstrando que o entendimento da 1ª Turma da CSRF atualmente prevalecente é no sentido de que o art. 22 da Lei n. 12.973/2014 carrega enunciado meramente interpretativo.

Na doutrina, Sergio André Rocha, a despeito de entender que a Lei n. 12.973/2014 trouxe uma disciplina integralmente nova, absolutamente diferente da anterior, acerca da amortização fiscal do ágio, pauta-se nas lições de Vicente Ráo para chegar à seguinte conclusão:

“Tendo em vista a conclusão apresentada no item 2 acima e possível expor a posição aqui defendida, no sentido de que a restrição ao aproveitamento fiscal da mais-valia e do ‘goodwill’ na Lei nº 12.973 não tem qualquer impacto direto sobre a interpretação das regras até então vigentes a respeito da amortização fiscal do ágio, sendo um elemento hermenêutico de limitada valia na determinação da existência ou não de similar restrição na legislação anterior. Assim sendo, as novas regras não confirmam o argumento dos contribuintes de que o dito ‘ágio interno’ era permitido no regime da Lei nº 9.532, da mesma maneira que não se trata de uma mera declaração de algo que já se encontrava vedado (como a Fazenda talvez venha a defender).

Com efeito, uma vez que a Lei nº 12.973 trouxe, como dito, uma disciplina integralmente nova, as alterações decorrentes do novo modelo têm limitado peso na interpretação da legislação anterior, de modo que a legitimidade ou não do ágio em operações intragrupo deve ser analisada com base nos fatos e na interpretação anterior a Lei nº 12.973.” 52

Levando em consideração tais posicionamentos em torno de tal questão, cabe aqui rechaçarmos, tendo em vista os ideais que o princípio da segurança jurídica resguarda, essa pretensão de atribuir efeitos retroativos ao aludido dispositivo, em razão de ele supostamente ser meramente interpretativo, bem como a ideia de que o art. 22 não tem qualquer peso na interpretação da legislação anterior. Para tanto, é preciso traçar, ainda que brevemente, alguns contornos acerca do conceito de lei meramente interpretativa, sem que, para isso, tenhamos de adentrar na discussão sobre o enunciado ser mero dispositivo legal (texto) e não uma norma interpretada, pois sujeito a nova interpretação por parte do exegeta 53.

Conforme ensina Riccardo Guastini, é denominada interpretativa toda lei ou disposição legislativa cujo conteúdo consista na determinação do significado de uma ou mais disposições normativas anteriores. E essa lei, como qualquer outra, vincula a todos os sujeitos do ordenamento jurídico 54. Na sua essência, conteria, a princípio, um conteúdo apenas declarativo, que excluiria qualquer tipo de inovação do direito positivo, sendo sua única finalidade, portanto, a de aclarar o significado de uma norma anterior, razão pela qual teria efeito retroativo 55. No ordenamento jurídico-tributário brasileiro, esse efeito retroativo da lei que expressamente se apresenta como interpretativa encontra guarida no art. 106, I, do Código Tributário Nacional 56.

Riccardo Guastini questiona, no entanto, se algumas dessas leis, a pretexto de serem meramente de natureza declarativa, não possuem, na verdade, natureza decisória e inovadora, isto é, criadora de direito novo 57. Nessas últimas circunstâncias, para o autor, não há qualquer fundamento plausível para sustentar que a lei é meramente interpretativa e, por consequência, a ela deva ser atribuído efeito retroativo 58.

César Garcia Novoa, por seu turno, apenas admite a retroatividade da norma interpretativa quando há plena convicção de que esta sobreveio para esclarecer o conteúdo de um comando normativo confuso, suscetível às mais diversas interpretações, que não gera confiança legítima protegida pelo ordenamento jurídico. E tal retroatividade somente poderia ser levada a efeito se a norma interpretativa se limitasse exclusivamente a aclarar os pontos obscuros, e não a reordenar o conceito supostamente interpretado em um sentido desfavorável aos contribuintes 59. Assim, a pretensão legislativa de eliminar incertezas por meio de uma lei interpretativa não pode servir de ferramenta para atentar contra outras certezas que, legitimamente, decorreram de interpretações possíveis do contribuinte acerca da lei aclarada, pois, nesse caso, se estaria restringindo a segurança jurídica protegida 60.

Feitas essas considerações, por certo que, especificamente no que concerne à vedação do aproveitamento do ágio oriundo de operações entre sociedades relacionadas para fins fiscais, após o advento da Lei n. 12.973/2014, a norma construída a partir de tal base normativa deve ter apenas efeitos prospectivos (de acordo com as regras intertemporais da Lei n. 12.973/2014), já que, a toda evidência, não se trata de lei meramente interpretativa, mas sim inovadora.

Com efeito, diante das premissas acima traçadas, viu-se que a legislação de regência do tema muito bem delimitou os requisitos que deveriam ser cumpridos para que o contribuinte pudesse, licitamente, aproveitar o ágio para fins fiscais. Dentre os inúmeros parâmetros legais traçados, a realização da operação de aquisição de participações societárias entre partes relacionadas, até o surgimento da Lei n. 12.973/2014, nunca foi pertinente para aferir se o ágio gerado poderia ou não ser aproveitado para fins fiscais.

Portanto, atribuir efeito retroativo ao art. 22 da Lei n. 12.973/2014, justificando, para tanto, que aludido dispositivo é meramente interpretativo, significa, em verdade, ignorar os ideais de cognoscibilidade, de calculabilidade e, notadamente, de confiabilidade do ordenamento jurídico, para querer tributar, à margem dos limites legais, situações jurídicas legitimamente firmadas pelos contribuintes no passado. Igualmente, não se compagina com a segurança jurídica atribuir caráter inovador ao comando prescritivo estatuído citado art. 22, sem, contudo, lhe imprimir qualquer efeito ou peso interpretativo em relação à legislação anterior.

Conclusões

O sistema jurídico é fechado operacionalmente, porquanto trabalha apenas com o binômio lícito/ilícito, que o diferencia dos demais sistemas que operam sobre a realidade social. A despeito disso, possui abertura cognitiva, na medida em que se debruça sobre diversos eventos ocorridos no mundo fenomênico. Acontece que, se cada sistema social possui estrutura, funções e efeitos que lhe são próprios, não há o ingresso automático dos fatos objeto de outros sistemas sociais no ordenamento jurídico. O fato precisa ser tomado como suporte fático para o Direito, para que então possa produzir efeitos jurídicos. E a porta de entrada do sistema jurídico é a hipótese normativa, que juridiciza o fato da realidade e o torna fato jurídico.

Assim, o fato contábil revela-se importante na construção da norma tributária apenas quando ingressar no sistema do direito positivo pela porta de entrada competente, ou seja, quando for juridicizado no antecedente de determinada prescrição legal. No caso do ágio, trata-se de instituto que foi importado pelo Direito Tributário, que lhe traçou e deu feição própria e distinta daquela que possui no âmbito da Contabilidade. Isso porque o legislador tributário é livre para, dentro dos contornos constitucionais, estabelecer os efeitos fiscais que julgar mais prudente para o suporte fático que colheu da realidade factual.

Anteriormente ao advento da Lei n. 12.973/2014, o art. 20 do Decreto-lei n. 1.598/1977 e os arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, por meio de normas tributárias, disciplinaram por completo a matéria do ágio para fins fiscais. Por isso, revela-se equivocada qualquer tentativa de aplicar normativas contábeis acerca do ágio, para fins de atribuição dos efeitos fiscais que lhe são próprios. O padrão legal do ágio, no cenário legislativo em questão, circunscreveu a permissão legal para a amortização do ágio baseado na expectativa de rentabilidade futura, não constando qualquer vedação ao aproveitamento do ágio gerado em operação realizada entre partes relacionadas. Nesse contexto, portanto, a realização da operação de aquisição de participações societárias entre partes relacionadas não traduzia critério pertinente para aferir se o ágio gerado poderia ou não ser aproveitado para fins fiscais.

Deve se ter em mente que o legislador, por meio de padrões eleitos, discrimina os contribuintes e as situações em que tributos serão devidos ou não. A lei, portanto, é o critério de aplicação da isonomia. E esses padrões legais acabam operando também como uma verdadeira bússola do exercício juridicamente orientado da liberdade e da autonomia privada. Assim, se apresentam como instrumentos de concretização não apenas da igualdade, mas também da segurança jurídica.

No caso do aproveitamento do ágio para fins fiscais, se no período anterior à Lei n. 12.973/2014 o legislador não previu a realização da operação de aquisição de participações societárias entre partes relacionadas como critério competente para vedar tal aproveitamento, não pode o aplicador do Direito sustentar, com base em argumentos contábeis, que o “ágio interno” não gera consequências tributárias, pois, ao assim proceder, estará estabelecendo critério de discriminação não presente na legislação e atuando de maneira arbitrária, em total afronta aos ideais de cognoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade que compõem o princípio segurança jurídica.

A Lei n. 12.973/2014 trouxe regramento novo em relação ao aproveitamento fiscal do ágio, aproximando os conceitos jurídico e contábil deste instituto. Vedou, no seu art. 22, o uso, para fins tributários, do ágio gerado em operações entre partes independentes. Referido dispositivo, inequivocamente, carrega um enunciado inovador em relação à matéria, razão pela qual, em respeito ao princípio da segurança jurídica, deve produzir apenas prospectivos, jamais retroativos.

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