Como a psicologia comparativa surgiu

A revolução ontológica na psicologia em decorrência da teoria da evolução.

Gustavo Gauer

Princípios evolucionários e a nascente psicologia. Primeiras teorias da evolução, as idéias de Lamarck, Spencer, Francis Galton e Darwin. Psicologia comparativa (Romanes e Morgan). Bases funcionais da psicologia: organismo, ambiente, adaptação.

O estabelecimento da psicologia científica, identificada com o experimentalismo epitomado em Wundt, esteve ligado à formulação de leis da associação que permitissem explicar os fenômenos mentais enquanto conjuntos de elementos mecanicamente associados. Paralelamente a esse desenvolvimento, as “ciências da vida” (1), conheceram uma verdadeira revolução com a sistematização das idéias evolutivas, concluída por Charles Darwin. De certa forma, essas transformações, tanto em psicologia quanto em biologia, foram ensejadas pelos mesmos fatores históricos, políticos e filosóficos. No âmbito científico, ambas as ciências (biologia e psicologia) respondiam à exigência cada vez maior de demonstração empírica, nos moldes da Física. Por outro lado, em virtude das revoluções industriais, a sociedade ocidental passava por mudanças rápidas e substantivas. Essa visão estendeu-se para além da vida social, alcançando o mundo natural. Assim, o conhecimento deveria dar conta não apenas do mundo, mas de um mundo em constante mudança.

Está claro que as idéias psicológicas e o pensamento evolutivo preexistiram respectivamente a Wundt e a Darwin. A psicologia, ligada à filosofia, correu paralela às primeiras teorias evolutivas, desenvolvidas por botânicos e historiadores naturais. Entretanto, a revolução ocasionada pela obra de Darwin transformaria essa relação entre biologia e psicologia, de paralela para interativa. De um lado, a psicologia, enquanto estudo dos fenômenos mentais, interessará aos primeiros biólogos evolucionistas. Eles entenderam a vida mental em termos de suas funções adaptativas, equiparando-a com outras características dos seres vivos, como órgãos vitais. A influência da biologia sobre a psicologia, por outro lado, será visivelmente mais intensa, tanto em termos de prática científica (epistemologia e lógica), quanto nas definições ontoaxiológicas.

No campo metodológico, a posição biológica sobre as funções mentais, descrita acima, foi assumida por muitos psicólogos. Tal noção implicava que a mente não era uma dádiva de Deus, mas uma característica presente, com diferentes graus de complexidade, na linhagem evolutiva desde as espécies ancestrais. O estudo das funções psicológicas ganharia assim uma nova área e um novo método. Na área da psicologia comparativa, através do método genético, manifestações mentais serão procuradas nos animais ditos inferiores e estes mesmos animais começarão a ser sujeitos de pesquisas psicológicas.  Como resultado da divulgação da teoria da evolução, a funcionalidade adaptativa ocupou a primazia que desde Descartes cabia à causalidade mecânica na lógica das explicações psicológicas. Além da prática da psicologia animal, as funções psicológicas de adultos normais serão comparadas com as mesmas funções em crianças e em doentes e deficientes mentais. O trabalho com estes últimos ocorrerá em combinação com a psicopatologia da medicina psiquiátrica (ver capítulo 16). Já a comparação de funções plenamente desenvolvidas em adultos com as funções ausentes ou incipientes nas crianças dará origem à importante área que conhecemos hoje como psicologia do desenvolvimento.

Além da análise genética (2), o método psicométrico e a correlação estatística utilizados inicialmente por Galton ocasionarão a consolidação de uma abordagem matemática da psicologia. Não é à toa que a psicologia estatística desenvolveu-se atrelada à biologia evolutiva. A biologia teve que lidar com as acusações da física. Os métodos estatísticos resolveram o problema da crença na causalidade colocado por Hume. Trabalhando com probabilidades ao invés de funções matemáticas, biologia e psicologia puderam contornar essas dificuldades.

Além dos adventos epistemológicos, como a comparação e a psicometria, a biologia, cada vez mais unificada em torno da teoria da evolução, marcará a psicologia de forma indelével, ao introduzir um conjunto de noções importantíssimas, diante das quais nenhuma definição ontoaxiológica de psicologia poderá permanecer indiferente. Essas noções são as de organismo, ambiente e adaptação (ou função adaptativa). Esses conceitos pautarão praticamente todo o desenvolvimento histórico da psicologia desde o final do século XIX. Diferentes estudiosos da psicologia construirão “edifícios teóricos” com base em posições tomadas em relação a tais fatores, priorizando ora uns, ora outros deles (3).

Um debate suscitado pelo evolucionismo afetará a psicologia em especial, colocando em uma nova perspectiva a questão do inatismo vs. experiência. Trata-se da discussão sobre a determinação das características psicológicas individuais, travada em torno da prevalência da hereditariedade ou do ambiente na determinação de funções psicológicas. Os fenômenos passarão a ser entendidos como características do organismo com função de adaptação ao meio, e os estudos de laboratório, em condições ambientais estritamente controladas, serão questionados quanto à sua validade. Métodos observacionais e “instrumentos de papel” como questionários e testes mentais serão introduzidos como técnicas de coleta de dados. A crescente sistematização das idéias evolutivas terá ainda conseqüências éticas, na forma de uma nova preocupação com a finalidade e com a motivação da ação e dos fenômenos psicológicos. A motivação, com o evolucionismo, passa a ser subsidiária da função adaptativa do organismo.

            Este capítulo focaliza os principais indicadores do impacto inicial das idéias evolutivas na ciência psicológica. As conseqüências ontológicas, epistemológicas, lógicas e éticas da teoria da evolução para o conhecimento psicológico são apreciadas a partir das obras de evolucionistas centrais como Charles Darwin, Herbert Spencer e Sir Francis Galton. Os campos de estudo criados pela influência biológica, são considerados, com especial atenção à psicologia comparativa de Morgan e Romanes e à psicologia do desenvolvimento de Baldwin. Teorias psicológicas específicas, tributárias da biologia evolutiva, como Psicanálise, Epistemologia Genética, Etologia e Comportamentalismo serão contempladas em capítulos subseqüentes deste volume.

História das idéias evolutivas

Inúmeros autores, desde os gregos antigos, teorizaram sobre a origem dos seres vivos. Perguntas sobre a criação e sobre as mudanças por que passam tanto os objetos  inanimados quanto dos seres vivos estavam imbricadas nas obras filosóficas.

Contudo, foi na sociedade industrial que a concepção de evolução biológica foi sistematizada. As doutrinas criacionistas, segundo as quais a vida foi criada por um ser divino, de uma só vez, e já com as suas muitas espécies definidas, perdiam força na sociedade industrial. A estrutura social, cada vez mais complexa e dinâmica, era crescentemente incompatível com visões de mundo que não dessem conta das mudanças em todos os âmbitos do mundo natural, seres vivos e não-vivos, inclusive o próprio planeta Terra, e em todas as escalas de tempo, do nível dos segundos até o das eras. As explicações evolutivas ganhavam espaço, tanto no âmbito dos seres vivos (nas obras de Buffon, Erasmus Darwin e Lamarck), quanto no do mundo inorgânico (como em Laplace e Lyell). Nesse contexto foram se estabelecendo os conceitos cruciais de organismo, de ambiente e do processo de relação interativa entre eles, a adaptação.

Em virtude das descobertas de inúmeras espécies novas de animais e plantas no novo mundo, as classificações dos seres vivos, os botanários e bestiários, tiveram que assumir uma abordagem mais factual (Henry, 1998). Até então, as descrições das características físicas das espécies vivas eram acompanhadas das lendas, simbolismos religiosos e significados atribuídos pelos povos antigos aos animais em questão.

A biologia como ciência unificada, e mais precisamente a biologia evolutiva, sofreu influências intelectuais semelhantes às experimentadas pela psicologia. Após o renascimento, por exemplo, os “naturalistas”, ocupados em empreender uma filosofia natural, estudavam espécies animais e vegetais, elaborando sistemas de classificação cada vez mais sofisticados para dar conta da complexidade da vida. As perguntas sobre a origem e as causas de tal complexidade, aliadas às exigências de cientificidade empírica decorrentes da revolução científica, demandavam uma teoria composta de leis consistentes e elegantes como as da física newtoniana.

O corolário das concepções evolutivas da vida, a teoria da seleção natural de Charles Darwin, seguiu-se a uma série de debates anteriores, e esteve calcada em idéias que estavam “pairando” sobre o mundo ocidental em virtude daqueles grandes volumes de dados sobre espécies de seres vivos. Ademais, como ocorreu com a psicologia, a biologia evolutiva sofreu o impacto de obras como as de Descartes, Locke, Hume, etc., até que um naturalista como Darwin pudesse estabelecer uma teoria que dá conta das leis pelas quais os organismos e as espécies interagem com a natureza, modificando-se ao longo do tempo.

História da psicologia paralela à unificação da Biologia em torno do Evolucionismo.

Biologia e Psicologia enfrentaram, em suas trajetórias como disciplinas científicas, situações análogas. Ambas as áreas se constituíram como ciências no final do século XIX, sob influência das disciplinas existentes, inclusive tendo algumas delas em comum. Enquanto a Psicologia teve como principais influências a filosofia, a fisiologia, e o evolucionismo, entre outras (Wertheimer, 1991), a Biologia é herdeira da história natural, da geologia, do evolucionismo, da genética, da ecologia etc. (Smocovitis, 1996). Contudo, em Biologia, o advento da moderna síntese nos anos 1930 transformou-a em ciência unificadora das disciplinas anteriores, que vieram a ser suas subsidiárias. A unificação em torno da biologia evolutiva foi resultado de um processo intencional e articulado em que cooperaram diversos estudiosos das chamadas “ciências da vida”. Em psicologia, por outro lado, verificamos que, à mesma época em que se unificou a biologia, existia uma espécie de disputa, em que diferentes teóricos pretendiam organizar a psicologia em torno dos seus pressupostos ontológicos (definição do objeto de estudo), dispositivos epistemológicos (metodologia adequada à produção do conhecimento) e resultados axiológicos (valores veiculados pela teoria). Essa fase de disputa ontoaxiológica em Psicologia ficou conhecida como “era das escolas” (Wertheimer, 1991). Ao contrário do caso da Biologia, a matéria psicológica manteve-se refratária à unificação em torno de uma teoria única. O que se viu ao final da era das escolas foi uma tendência, talvez em resposta ao período anterior, a se dissipar a importância de uma teoria “forte” em psicologia, privilegiando-se o acúmulo de dados empíricos, sobretudo observacionais, e a construção de modelos explicativos particulares.

No âmbito da filosofia da ciência, a Biologia foi acusada, por parte dos positivistas lógicos, de teleologia (a evolução seria uma espécie de causa final), de tautologia (a evolução não poderia ser a explicação de si mesma) e até mesmo de ser uma pseudo-ciência. Na luta pela consistência explicativa, ferramentas estatísticas tiveram de ser desenvolvidas para a explicação tanto em Psicologia quanto em Biologia. A estatística exerceu papel importante na operacionalização de ambas as disciplinas. Um conhecido instrumento estatístico muito usado em Psicologia, o coeficiente de correlação de Pearson, foi inicialmente desenvolvido por Galton para evidenciar relações causais em genética (Schultz & Schultz, 1992). A Análise de Variância é outro teste estatístico desenvolvido inicialmente na biologia evolutiva por Fischer, mas que veio a ser adotado pela psicologia.

Ressaltamos novamente que o pensamento evolutivo é prévio a Charles Darwin. Idéias evolucionárias para o mundo e os seres vivos encontram-se na história do pensamento desde a antiguidade. A idéia de que seres mudam ao longo do tempo, bem como as espécies às quais eles pertencem, precede o autor inglês. O criacionismo, doutrina cristã para explicar a origem das espécies, dá conta de que cada uma das espécies de seres vivos foi criada por Deus quando da criação do mundo, da exata forma como elas se nos apresentam hoje em dia. Assim, as disciplinas que nos séculos XIX e XX dariam origem à grande área da Biologia, tais como botânica, zoologia e história natural, eram fundamentalmente sistemáticas, ou seja, descreviam o estado atual das espécies através de taxonomias. Contudo, os dados dessas ciências acumulados após as revoluções científicas começavam a desafiar as noções criacionistas, que refreavam progressos mais velozes.

Antecedentes de Charles Darwin

            Inúmeros autores naturalistas trataram da evolução, tanto a dos seres vivos quanto a dos não-vivos, antes de Darwin. Na verdade, o pensamento evolutivo, com diferentes graus de sofisticação, vinha sendo enunciado desde o tempo da Grécia antiga (Di Mare, 2002). Como a divisão das atuais disciplinas científicas é relativamente recente, muitos dos pensadores que marcaram a história da psicologia e da filosofia dedicavam-se também à história e à filosofia natural, bem como a outras áreas como Física e Medicina. Nesta seção abordaremos alguns autores que, mais próximos da época de Charles Darwin, tiveram uma influência mais clara na sistematização da teoria da evolução. Nomes como os do Conde de Buffon, de Maupertius, e de Lineu serão saltados.

O avô de Charles Darwin, Erasmus, foi um pensador inglês progressista. Erasmus Darwin (1731-1802) antecipou idéias como a da evolução a partir de um ancestral comum, da evolução como processo de mudança estrutural em resposta a transformações do ambiente, e da seleção sexual.

Outro naturalista, o francês Lamarck, é costumeiramente citado como um adversário de Darwin, que defendia a herança de caracteres adquiridos. Na verdade, Jean-Baptiste-Pierre-Antoine de Monet Lamarck (1744-1829) viveu em época anterior a Darwin, tendo sido botânico de Luís XVI, e responsável pelo herbário dos Jardins Reais. Os Jardins foram transformados em Museu de História Natural após a revolução francesa, e Lamarck continuou lá, como professor de zoologia. Membro da Academia de Ciências, ele morreu cego e miserável. Influenciado por Maupertuis (4) e Buffon (5), Lamarck continuou o trabalho de Lineu (6), classificando as coleções de espécimes do Museu (Di Mare, 2002). Ali ele desenvolveu a classificação dos animais invertebrados, para abarcar as classes de insetos e vermes (Simmons, 1969/2002). Suas principais obras foram a Philosophie Zoologique de 1809, e a Histoire naturelle des animaux sans vertèbres, de 1822.

A importância de Lamarck, muitas vezes eclipsada pela “controvérsia” com Darwin, reside na sua tentativa, de fato a primeira, de sistematizar a idéia de evolução biológica e formular as suas leis. Nesse ponto ele rompia definitivamente com a noção de espécies fixas e imutáveis desde a criação. O contato constante com as enormes coleções do Museu foi a fonte dos dados que Lamarck usou para propor sua teoria. Ele insistia na diferença crucial entre os níveis orgânico e inorgânico, e entendia que as mudanças orgânicas respeitam a leis, e não são devidas a intervenções milagrosas. Suas duas leis para a evolução dos seres vivos eram as seguintes: pela primeira lei, as alterações comportamentais ocasionadas por mudanças ambientais obrigam o indivíduo a utilizar alguns órgãos com maior ou menor intensidade, modificando aqueles órgãos ou extinguindo-os. Pela segunda lei, tais mudanças nos órgãos são herdadas pela prole dos indivíduos modificados. Esta segunda lei é a responsável pela controvérsia em torno de Lamarck, pois ela implica que mudanças adquiridas por uso e desuso podem ser herdadas.

A obra de Lamarck colaborou ao pensamento biológico ao introduzir as noções de organismo, função e adaptação ao meio. A teoria foi defendida, quase hegemonicamente, por seus partidários durante muitos anos, até sofrer as críticas ferozes decorrentes do darwinismo. Ressalte-se, contudo, que desenvolvimentos posteriores (como o do psicólogo James M. Baldwin) tiveram que aprimorar a teoria da evolução para dar conta de certos fenômenos evolutivos que, pela velocidade com que as mudanças adaptativas eram repassadas a descendentes, desafiavam a teoria da seleção natural e pareciam concordar com o lamarckismo.

Charles Robert Darwin (1809-1882)

Alguns trabalhos evolutivos prévios inspiraram Darwin na sua formulação da teoria da seleção natural. Os achados geológicos de Charles Lyell (1797-1875) davam conta de que a forma da Terra nem sempre foi como se conhece hoje, tendo passado por uma evolução geológica que contava, no mínimo, centenas de milhares de anos(7). No seu Essay on the principle of population, as it affects the future improvement of society, de 1798, Thomas Malthus (1766-1834) enunciava a hoje famosa relação segundo a qual a população cresce em progressão geométrica, enquanto a disponibilidade de alimentos cresce em progressão aritmética. Portanto, mais indivíduos e menos alimentos criam uma situação de disputa pela sobrevivência. Afora essas teorias, Darwin observava uma prática muito difundida na Europa, a seleção artificial de animais e plantas. Os criadores avançados selecionam, por reprodução direcionada, características de cães e gatos como a pelagem e o temperamento, bem como as cores e formas das orquídeas e outras plantas. Essas evidências enviaram Darwin no rumo da herança de características sem atribuir as mudanças a uso e desuso, como fizera Lamarck.

As evidências empíricas nas quais Darwin se apoiou surgiram da observação naturalística durante suas viagens no navio HMS Beagle às costas da América do Sul, Oceania, etc, de 1831 a 1836. A partir dessas observações, Darwin fez as principais perguntas que guiaram a formulação de sua teoria, tais como “por que alguns indivíduos morrem e outros sobrevivem nas mesmas condições ambientais?”, ou “por que a população de animais de uma espécie em uma determinada ilha tem características diferentes (bicos maiores ou menores, cores de plumagem) das populações de outras ilhas próximas?”. Consta que a principal diferença entre a teoria de Darwin e as de outros naturalistas contemporâneos partidários do evolucionismo foi o enorme montante de dados que Darwin acumulou antes de propor sua teoria (Schultz & Schultz, 1992). Embora Darwin tenha concluído a escrita de seu trabalho em 1839, três anos após a viagem no Beagle, a publicação da Origem das Espécies somente ocorreria em 1858, quase 20 anos depois. Darwin receava publicar a obra pelas suas possíveis repercussões. O fator que determinou a publicação efetiva foi uma consulta feita por Alfred Russell Wallace a Darwin. Wallace mostrou o seu próprio trabalho (8) sobre a origem das espécies a Darwin, então um renomado naturalista, em busca de conselhos. Embora nunca tivessem trocado idéias, e o texto de Darwin permanecesse inédito, a teoria de Wallace era notavelmente semelhante à do seu consultor. Diante disso, e encorajado pelo seu correspondente Charles Lyell e por outro colega, Thomas Henry Huxley(9), Darwin obrigou-se a tornar público seu trabalho, que foi editado, conjuntamente com o de Wallace, num número da Revista da Sociedade Lineana (Di Mare, 2002; Murphy, 1962).

Na obra “A origem das espécies”, Darwin enunciou os princípios da sua teoria da seleção natural. De acordo com essa teoria, há na natureza uma competição pela sobrevivência que premia os indivíduos melhor adaptados ao ambiente em que vivem. Caracteres corporais e comportamentais adquiridos por mutações aleatórias, e que podem ser adaptativamente vantajosos ou desvantajosos para seus portadores, são repassados por herança à prole dos indivíduos que conseguirem crescer e procriar(10). Além da seleção pela sobrevivência, há uma seleção sexual, pela qual indivíduos com certas características têm maior probabilidade de ser escolhidos por potenciais parceiros sexuais para procriar (11). Darwin ainda discerniu os instintos dos hábitos. O instinto é uma ação que é realizada por qualquer animal, mesmo muito jovem sem qualquer experiência, ou que é realizada por um grande número de indivíduos de uma espécie da mesma maneira. Os instintos, com sua importância adaptativa, são herdados, enquanto os hábitos teriam importância secundária para a seleção. Assim, a ação de construir um ninho é um instinto das aves (Herrnstein & Boring, 1971).

Em sua primeira obra, Darwin não abordou o tema da evolução da espécie humana, o que ele somente viria a fazer, em parte por influência de seu primo Francis Galton, em “A descendência do homem”, de 1871. Desta obra surgiu a controvérsia sobre um ancestral comum do homem e dos macacos, idéia que costuma ser erroneamente interpretada como sendo os seres humanos descendentes dos macacos. Neste mesmo trabalho Darwin acrescentou ao conjunto de características sujeitas a herança os traços morais e espirituais, e comparou os instintos sociais com os individuais, concluindo que os primeiros, por serem mais duradouros, persistem sobre os segundos. Em resposta ao hedonismo, que entende a motivação pelo prazer ou desprazer que uma ação causa, Darwin considerava que a força dos instintos que movem a ação é, na verdade, anterior ao julgamento de prazer vs. desprazer, e à reflexão sobre as conseqüências da ação.

Em 1872, Darwin publicou um trabalho de grande interesse para a psicologia, e que possivelmente motivou a criação do campo da psicologia comparativa; trata-se de “A expressão emocional no homem e nos animais”. Segundo Darwin, a contração de músculos faciais e a emissão de sons, ambas relacionadas a estados emocionais do organismo, são ações comuns aos humanos e a aos animais. Algumas das expressões surgiram muito antigamente, como riso enquanto expressão do prazer e os tremores que demonstram o medo. Outras formas de expressão somente apareceram na espécie humana após o surgimento de certas estruturas corporais: embora a contorção do corpo seja uma expressão muito primitiva do sofrimento, o choro precisou de certas características dos músculos faciais e do aparelho respiratório que apareceram recentemente na evolução da espécie.

Em “A descendência do homem”, Darwin afirmou que “a diferença mental entre o homem e os animais superiores, por maior que seja, certamente é de grau, e não de tipo”, e que as mais altas emoções e faculdades humanas podem ser encontradas em forma incipiente em animais inferiores. A partir desse princípio de continuidade psicológica defendida por Darwin, a mente passou a ser encarada como uma função adaptativa que se distribui num contínuo, que vai do supostamente menos complexo nos animais ao supostamente mais complexo nos humanos. Segundo Darwin (1872/2002), até os insetos expressam raiva, terror, amor e ciúmes. Assim, não há porque considerar que qualquer espécie tenha sido escolhida para ocupar o topo da “escada evolutiva”. Lembremos que prevalecia até então a noção de Descartes, segundo a qual os animais eram “autômatos” que comportavam-se exclusivamente em função dos processos mecânicos, estando a vida mental reservada para os humanos, espécie escolhida por Deus.

Herbert Spencer (1820-1903)

O sociólogo e filósofo inglês Herbert Spencer, influenciado por Comte e Darwin, defendeu noções otimistas e liberais de individualismo e progresso, com prevalência do indivíduo sobre a sociedade e da ciência sobre a religião. Em sua audaciosa “Filosofia Sintética”, de 1896, Spencer procurava integrar as ciências especiais (biologia, psicologia, sociologia, moralidade) sob a égide da Filosofia, entendida não como conhecimento reflexivo e racional, mas sim como uma ciência geral, ou uma summa das ciências especiais.

Spencer foi possivelmente o primeiro pensador a aplicar critérios evolutivos a áreas humanas como Sociologia e Psicologia. Ele entendia que, assim como os organismos, a sociedade e a mente evoluem e progridem no intuito de adaptar-se. Nos seus “Princípios de Biologia”, de 1864, já influenciado por Darwin, Spencer cunhou a conhecida expressão “sobrevivência do mais apto” (survival of the fittest, no original inglês). Essa noção, repetida inúmeras vezes em diversos âmbitos do conhecimento, inclusive em políticas nacionais e internacionais, fomentou visões de progresso mundo afora.

Spencer ressaltou a noção de função adaptativa, princípio pelo qual os órgãos dos seres vivos se diferenciam. O progresso consistiria numa crescente capacidade de adaptação dos organismos, por meio do acúmulo de variações funcionais diversificadas, entre as quais são selecionadas as que melhor respondem às exigências ambientais. O aumento do número, da abrangência, da especialização e da complexidade das adaptações. Em consonância com o pensamento liberal dominante na Inglaterra, ele privilegiava a diversidade e a diferença como características positivas para o progresso, tanto dos indivíduos quanto da sociedade. Segundo Spencer, uma sociedade diversificada e dinâmica é preferível a uma monótona e estática. De fato, Spencer notabilizou-se por sua noção otimista de progresso pela variedade. No entanto, devemos ressaltar que evolução e progresso não são sinônimos, e que, pela teoria da seleção natural, conquanto as variações ocorrem por acaso, e as transformações ambientais idem, não há um sentido final que oriente a evolução em algum sentido, afora as motivações individuais para sobrevivência e reprodução, e tampouco há espécies menos evoluídas que outras.

Spencer chegou a publicar seus “Princípios de Psicologia” em 1855. Ali ele empregava definia a “vida como um ajustamento contínuo”. Essa visão era condizente com a sua noção de progresso dos seres mais rudimentares até os mais complexos como a contínua melhoria da relação da adaptação entre os processos internos do organismo e as mudanças no meio que o cerca. Nesses sentido, a mente é assemelhada a outros processos fisiológicos da vida corpórea (Sahakian, 1968).

Embora como evolucionista reconhecesse a influência das mudanças ambientais nos organismos, Spencer privilegiava a hereditariedade (assim como Galton) na explicação das aptidões humanas. Para ele, as capacidades individuais eram inatas. Outrossim, esse inatismo diverge daquele de filósofos anteriores, para quem as idéias inatas eram dons divinos (Descartes), ou categorias a priori (Kant). Pelo inatismo de Spencer, os indivíduos herdam as capacidades adaptativas desenvolvidas pelos seus antepassados ao longo da evolução (Rosenfeld, 1993).

Sir Francis Galton (1822-1911)

Francis Galton era primo de Charles Darwin, com quem teve uma relação de mútua influência. Galton iniciou, mas não terminou estudos de Medicina, transferindo-se para a área de Matemática. Após herdar uma fortuna com a morte do pai, ele pôde dedicar-se a expedições pela África, bem como a suas outras áreas de interesse, como meteorologia, aritmética, etc. Em psicologia, sua relevância deve-se aos estudos pioneiros nos quais aplicou princípios evolutivos darwinianos e métodos estatísticos aos fenômenos mentais.

De acordo com a primeira divulgação da teoria da evolução, certas características físicas fazem com que alguns indivíduos de uma espécie tenham vantagens adaptativas em relação a outros; essas vantagens os ajudam a sobreviver e permitem que eles reproduzam, repassando à prole aquelas características vantajosas. O ponto de partida de Galton foi perguntar se o mesmo princípio se aplicava a capacidades psicológicas como a inteligência.

Em seu livro de 1865, “O gênio hereditário”, Galton analisou as árvores genealógicas de 977 eminentes cidadãos ingleses, como cientistas, juristas e escritores de sucesso, e concluiu que eles em geral eram filhos de homens também ilustres. Galton defendia que, assim como as características físicas, a inteligência e o temperamento eram herdados dos progenitores (Murphy, 1962). A dicotomia “natureza versus nutrição” (nature x nurture) foi introduzida por Galton em uma obra de 1874 sobre os cientistas ingleses, com o intuito de comprovar a sua tese da prevalência da hereditariedade.

Ao pesquisar diferenças individuais, Galton contribuiu substantivamente para o desenvolvimento da psicologia mundial, criando as áreas de pesquisa (desenvolvimento humano e psicologia diferencial, ou da personalidade); instrumentos psicológicos (questionários e testes) métodos científicos (estatísticas correlacionais, psicologia comparada, estudos com gêmeos); e controvérsias científicas (nature x nurture, conceito de normalidade).

Em 1884 Galton instalou um laboratório de antropometria na Exposição Internacional de Saúde. Com este laboratório, Galton coletou dados de medições de cerca de quase dez mil pessoas. Galton avaliou a altura, peso, percepção auditiva e visual, entre outras medidas individuais. Com essa massa de dados, ele pretendia estabelecer as médias de tais variáveis na população inglesa, enriquecendo cada vez mais o estudo das diferenças individuais (Schultz & Schultz, 1992).

Galton tendia à quantificação em todas as áreas de estudo a que se dedicou. As variáveis antropométricas eram um exemplo. Galton desenvolveu a avaliação de tempo de reação, e chegou a medir o tédio causado por palestras e outros eventos culturais pela contagem dos bocejos dos membros da audiência. Ele ainda estudou experimentalmente associações de palavras, prefigurando os trabalhos de Carl Jung, e teve seu método adotado e aprimorado por Wundt. Introduziu o uso de questionários como método de coleta de dados em estudo sobre a imaginação, publicado na obra Inquiries into human faculty and its development, de 1883. Neste mesmo estudo, Galton utilizou a curva de Gauss (12), verificando que, na formação de imagens mentais, a maioria dos respondentes tendia a apresentar um tipo misto de construção imagética, e que menos indivíduos apresentavam escores próximos dos extremos da escala (Garrett, 1941).

            Ao analisar estatisticamente diferenças individuais, em detrimento da análise de fenômenos mentais elementares, típicos da psicologia experimental de então, Galton deu início a uma nova tradição de pesquisa científica em psicologia (Fraisse, 1970; Rosenfeld, 1993). A psicologia diferencial criaria o ramo da psicologia aplicada, que nos Estados Unidos daria início à profissão de psicólogo.

Eugenia: progresso da espécie por controle genético. Galton preocupava-se com a degenerescência da espécie humana: se, em termos de “gênio”, os filhos tendem a aproximar-se da média em relação aos pais, então a sociedade ocidental apenas regredia desde a Grécia antiga. Galton procurou explicar por que alguns indivíduos diferem dos outros em suas capacidades, e idealizou um método de melhorar artificialmente as linhagens humanas através da paternidade seletiva. Este último método, chamado Eugenia, é claramente controverso do ponto de vista ético. Galton acreditava que os povos europeus eram superiores aos não-europeus, e suas idéias podem ter sido a base de políticas discriminatórias de esterilizações em massa e extermínio de grupos étnicos.

Psicologia comparativa

            Resultado da ascensão do evolucionismo, e mais especificamente do livro de Charles Darwin sobre a expressão das emoções, a psicologia comparada incluiu os animais na lista de potenciais sujeitos da pesquisa psicológica. O princípio evolutivo darwiniano da continuidade de espécie dá conta... A análise genética, no nível da ontogênese (desenvolvimento indivudual), visava explicar a evolução de funções psicológicas estudando o seu aparecimento nas crianças, tem um paralelo filogenético (evolução da espécie) na análise comparativa, que procura a inserção de funções mentais incipientes em animais “inferiores” ao homem. Estudos com animais possibilitarão contornar problemas éticos, e serão extensamente desenvolvidos nos Estados Unidos.

O problema da evidência (animais geralmente não expressam em palavras seus estados mentais) será enfrentado por uma tendência materialista semelhante àquela proposta por La Mettrie (ver capítulo 10), atendo-se o pesquisador ao comportamento observável do indivíduo. Posteriormente, as teorias comportamentalistas (notadamente a reflexologia russa e o behaviorismo norte-americano) ampliarão esta noção ao postular que a psicologia deve abandonar conceitos mentalistas e ater-se à evidência do comportamento estritamente observável.

Conwy Lloyd Morgan (1852-1936)

Psicólogo inglês, discípulo de Thomas Henry Huxley (1825-1895). Aprimorou a distinção de Romanes entre hábito (aprendizagem) e instinto, reconhecendo a interação entre os dois no desenvolvimento individual (Hilgard, 1987).

Um dos fomentadores da psicologia comparativa, Morgan entendia que o objeto da psicologia é o comportamento corporal observável. O conhecido “Cânone de Lloyd Morgan”, enunciado em seu livro de 1894, An introduction to comparative psychology, é um princípio de parcimônia (13) aplicado à realidade psicológica: nunca devemos interpretar uma ação como resultado do exercício de uma faculdade mental mais elevada, se pudermos explicá-la como resultado do exercício de uma faculdade inferior na hierarquia psicológica (Herrnstein & Boring, 1971). Influenciou Thorndike por palestras proferidas nos EUA em 1896.

George John Romanes (1848-1894)

Amigo de Darwin, o naturalista inglês Romanes aplicou o darwinismo ao comportamento. Suas principais obras são Animal intelligence (1882) e Mental evolution in man (1889).

Segundo Romanes, a psicologia é o estudo da mente, e a mente do homem está no mesmo contínuo da do animal. Assim, os animais são sujeitos úteis aos psicólogos. Contudo, Romanes acreditava que o conhecimento da mente só pode ser realizado subjetivamente, ou seja, uma pessoa somente pode conhecer a sua própria mente, nunca a de outros. O estado mental de um  animal, no entanto, pode ser inferido pelo seu comportamento observável, e o mesmo será verdade para o conhecimento de outras mentes.

Funcionalismo: Organismo, ambiente, adaptação

Nos Estados Unidos, a idéia de evolução biológica será maciçamente reconhecida e interpretada por um conjunto de estudiosos de Chicago (Dewey, Mead, etc), Harvard (James, Angell, etc.), que farão do funcionalismo e do pragmatismo as principais tendências filosóficas dos Estados Unidos por décadas a fio. O funcionalismo iniciado por James, e desenvolvido em inúmeros avanços da ciência psicológica norte-americana e européia, encontra-se apreciado no capítulo 20 deste volume.

Dos princípios da biologia evolutiva, o mais importante para a vida individual é aquele segundo o qual o organismo adapta-se ao ambiente, visando à homeostase. Neste princípio estão implicados os três conceitos fundamentais que a psicologia funcionalista herdará da biologia: organismo, ambiente e adaptação.

O termo “organismo” remonta a Aristóteles, e refere-se à constituição de um órgão, por partes desiguais combinadas de forma a que ele exerça uma função, no que a noção poderia ser aplicada tanto a animais quanto a máquinas (Ferrater Mora, 2001). Desde o século XVIII, contudo, o termo “orgânico” passou a caracterizar o grupo dos seres vivos. O organismo vivo caracteriza-se por ser organizado em estruturas hierárquicas (por exemplo, célula, tecido, órgão, sistema, organismo). Formas de vida mais complexas apresentam ainda capacidades de auto-regulação (14) e plasticidade do comportamento. Isso significa que tais organismos podem aprender ao longo da sua existência individual, e que podem regular o seu próprio comportamento com base em condições do meio interno (fome, sono, etc.). Essas características aumentam a eficácia do organismo rumo à sua finalidade de preservação da espécie. A preservação da espécie é realizada através da consecução de finalidades individuais, que incluem o seu desenvolvimento até a idade reprodutiva, a sua auto-conservação e a sua reprodução.

O ambiente é o meio externo ao organismo, composto tanto de fatores vivos quanto não-vivos. O ambiente é o conjunto de recursos naturais necessários à sobrevivência, mas que oferece também desafios de proteção. A inserção no ambiente implica na interação com outros membros da mesma espécie na disputa pelos recursos ambientais e pela reprodução, e na interação com outras espécies na cadeia trófica, onde um indivíduo é predador ou presa.

O processo de inserção do organismo no ambiente é chamado adaptação. O organismo interage com o ambiente orgânico e inorgânico emitindo respostas às pressões que lhe são impostas. As capacidades de auto-regulação e aprendizagem permitem que as respostas de um organismo sejam cada vez mais adequadas às condições ambientais. A aprendizagem aumenta a diferenciação, tanto originando organismos individuais que crescem e se desenvolvem individualmente podendo até gerar novas espécies, quanto ensejando o surgimento de novas características que cumprirão diferentes funções. Chamamos de função biológica o papel que uma característica (física ou comportamental) desempenha em prol da adaptação ao meio.

Funcionalistas norte-americanos:

James Rowland Angell (1869-1949), que formou-se e lecionou em Harvard, foi um funcionalista influenciado por William James. Num artigo sobre “A província da psicologia funcional” (1907/2000), Angell definia o funcionalismo como a psicologia do “como” e do “por que” das operações mentais serem como são, estudando-as nas condições em que ocorrem corriqueiramente na vida. A concepção fundamental do evolucionismo implica que as funções psicológicas, têm as suas características atuais em virtude da eficiência com que elas concorrem para a adaptação do organismo, sendo que as ações adaptativas são uma soma das atividades orgânicas (ver Thorndike), não sendo possível analisá-las isoladamente. Essas tendências contrastavam com o estruturalismo wundtiano, entendido como a psicologia preocupada com o “o que”, na descrição dos elementos mentais. A psicologia funcionalista, segundo Angell, concebe a mente como mediador entre o ambiente e as necessidades do organismo. Angell contrastou ainda a descrição de funções, persistentes ao longo do tempo, com a identificação de elementos anatômicos. Por fim, Angell identificava no funcionalismo um sistema em que as várias divisões da filosofia, como lógica e ética (e possivelmente epistemologia e ontologia), encontravam-se intimamente conectadas, visto que estavam imbricadas na natureza.

Nos Estados Unidos, a influência da biologia atingiu a corrente dominante da filosofia, originando o funcionalismo. Representado por William James e por alguns dos principais filósofos e psicólogos norte-americanos da virada do século XX, o funcionalismo constituiu uma abordagem amplamente assumida pelas ciências naquele país. O funcionalismo, fez psicologia norte-americana voltar-se às bases biológicas de quaisquer fenômenos que se estudasse. Aliado ao pragmatismo, outra importante corrente de pensamento, o funcionalismo ainda deu margem à profissionalização da psicologia. Os temas relativos ao funcionalismo norte-americano, suas origens e conseqüências, serão tratados com maior ênfase no capítulo 20. A maior parte dos autores representativos desta orientação, Stanley Hall, Thorndike e o próprio William James também serão contemplados no referido capítulo. Contudo, outros dois funcionalistas serão abordados nesta seção. James McKeen Cattell é o responsável pela orientação “galtoniana” da psicologia norte-americana, e James Mark Baldwin foi um psicólogo que contribuiu para a consolidação da biologia evolutiva.

James McKeen Cattel (1860-1944)

Cattell trabalhou na Columbia University de 1891 até 1904. Em 1895, ele foi o quarto presidente da American Psychological Association. Na segunda metade da sua vida, dedicou-se a outras atividades importantes como a divulgação científica, e a psicologia aplicada.

Durante a sua formação, ele estudou na Alemanha com Lotze em 1880 e com Wundt de 1883 a 1886; e na Inglaterra, e com Galton em 1887. Sua tese de doutorado, a primeira de um americano a ser orientada por Wundt, era intitulada The time taken up by cerebral operations. Embora tenha sido o primeiro assistente de Wundt no Instituto de Psicologia Experimental, Cattell foi muito mais influenciado por Galton. Tal inclinação, dada a sua importância na psicologia norte-americana, é responsável pela orientação para diferenças individuais, estatística, grandes grupos (Schultz & Schultz, 1992). Desenvolveu o método comum às várias aplicações da psicologia, e que substituía o aparato de laboratório: testes mentais. Testes psicológicos – 16 PF.

Apesar de ter colaborado na criação das baterias de testes para seleção de soldados, Cattell foi expurgado da vida acadêmica em 1917 por causa de uma carta em que solicitava que os soldados norte-americanos não fossem mandados à frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, na Europa.

Tempo de reação: interalo entre a aplicação do estímulo sensorial e o início da contração muscular

Cunhou o termo “testes mentais”

Bateria de testes (Sahakian, 1970, p. 229):

  1. Pressão por dinamômetro
  2. Taxa de movimento
  3. Áreas de sensação
  4. Pressão que causa dor
  5. Menor diferença perceptível de peso
  6. Tempo de reação para som
  7. Tempo para nomear cores
  8. Bissecção de uma linha de 50 centímetros
  9. Julgamento de um período de 10 segundos
  10. Número de letras lembradas após ouvidas uma vez

James Mark Baldwin (1861-1934)

James Mark Baldwin atuou substantivamente tanto na Psicologia quanto na Biologia, sendo responsável por pelo menos uma grande contribuição em cada uma dessas ciências. Em biologia, postulou o chamado “efeito Baldwin” para explicar a emergência de certas características que afetam a velocidade da evolução das espécies. Na psicologia, inaugurou laboratórios em universidades da América do Norte (Toronto em 1890 e Princeton em 1893) e encetou o campo da psicologia do desenvolvimento, aplicando critérios explicativos evolucionários, originários da filogênese, para explicar o desenvolvimento individual, ou ontogênese (Bonin, 1991; Hilgard, 1987).

Baldwin postulou o princípio da reprodução, na ontogênese, de cada uma das etapas da filogênese. Segundo esse princípio, o desenvolvimento individual da criança repete, na mesma seqüência, cada uma das etapas da evolução de toda a espécie humana. Essa repetição inclui tanto as características anatomo-fisiológicas quanto psicológicas. Anatomicamente, o feto repetiria os estágios da evolução, partindo de um estado unicelular, passando seqüencialmente à forma multicelular, ganhando um sistema nervoso rudimentar que vai se complicando, e assim por diante. Partidários dessa perspectiva identificaram no estudo do desenvolvimento intrauterino uma ferramenta para compreender as mudanças por que passou a espécie humana em fases remotas da evolução. O princípio de repetição aplica-se também ao escopo psicológico. As crianças repetiriam, na sua trajetória individual, o desenvolvimento filogenético da espécie, especialmente nas questões relacionadas à atividade intelectiva.

Enquanto para Darwin as características variam aleatoriamente de modo que o ambiente as seleciona por adaptação, visto que indivíduos com aquelas características mais vantajosas as legarão para sua prole, segundo Lamarck as características adquiridas na existência individual poderiam ser herdadas, como o desenvolvimento de certos órgãos, ensejado pelo uso e desuso. Na natureza, há características que desafiam a teoria darwiniana, sobretudo pela velocidade com que foram estabelecidas em certas espécies, e à primeira vista parecem ser somente explicáveis por uso e desuso. A postulação do “novo fator na evolução” (Baldwin, 1896) veio a permitir que a teoria darwiniana da seleção natural pudesse dar conta da evolução daquelas características que, aparentemente, somente poderiam ser explicadas pelo critério lamarckiano, incompatível com a teoria da seleção natural por mutações casuais.

Conclusão

A posição genética, a favor da prevalência da herança, de Galton e Spencer revela uma tendência de renovação do inatismo. Em Descartes as idéias inatas eram dons divinos, em Spinoza elas estavam ligadas a um Deus-natureza, e em Kant, as categorias a priori eram os fatores inatos. Para os evolucionistas ingleses, as capacidades mentais individuais eram determinadas pela herança genética. O evolucionismo possibilitou explicações psicológicas ligadas à aprendizagem e à cultura, e direcionou o interesse dos elementos comuns à experiência de todos (Wundt) para as diferenças individuais e entre grupos étnicos, etários, culturais (Galton).

Ramos e teorias da psicologia tributários e decorrentes do evolucionismo: psicologia do desenvolvimento, psicologia da personalidade – diferenças individuais, abordagens funcionalistas, psicologia comparativa, comportamentalismo, etologia, psicologia fisiológica (evolução da psicofísica), etc.

            Radicalizações e reducionismos da psicobiologia:

·        ambientalismos, nativismos, interacionismos;

·        Lógica correlacional, diferencial, comparativa e genética em resposta à experimentação;

·        Entendimento mecanicista das estruturas mentais foi substituído e/ou adicionado pela noção de função adaptativa do organismo;

·        Associação: a correlação passa a ser o parâmetro para identificar associações entre variáveis, de acordo com a concordância das medições;

·        Estatística: novo rumo para a tendência matemática da psicologia; ao invés de leis, probabilidades (resolve o problema da causalidade após Hume); após Galton, a psicologia passa a estudar populações.

Psicologia aplicada:

  • O exame das faculdades foi substituído pelo das funções;
  • A prevalência do estudo da função, implicada pela influência biológica, terá conseqüências nos Estados Unidos e Rússia (reflexologia e comportamentalismo), na Europa (epistemologia genética e psicanálise) e na Alemanha (etologia).

A Biologia unificou-se (Smocovitis, 1996). E a psicologia???????


Notas


Referências

Angell, James Rowland (1907). The province of functional psychology. Retirado de www.yorku.edu.ca/psychlassics... em 15/12/2002.

Baldwin, James Mark (1896). A New Factor in Evolution. American Naturalist, 30, 441-451. Retirado de http://spartan.ac.brocku.ca/~lward/baldwin/Baldwin_1896_h.html em 15/12/2002.

Darwin, Charles R. (2002). The expression of the emotions in man and animals. Retirado de www.ipl.org em 10/12/2002. (Original publicado em 1872).

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