Ao descrever nos versos as diversas ações que deixou de realizar, o que o eu lírico deseja revelar

Autopsicografia

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda

Que se chama coração.


 

Fernando Pessoa

O poema que você leu agora é de autoria daquele que é considerado o maior poeta da língua portuguesa: Fernando Pessoa. Pessoa provou, com seus vários heterônimos, que o poeta não cabe no poema; sua genialidade fez nascer outros tipos, diferentes abordagens e estilos. Talvez Fernando Pessoa seja a maior prova de que o poeta entrega seus versos para o verdadeiro dono do poema: o eu lírico.

Você sabe o que é eu lírico? Existem outras denominações, como eu poético e sujeito lírico, mas o termo mais conhecido e divulgado é este: eu lírico. Esse termo designa uma espécie de narrador do poema, e assim seria chamado se não estivéssemos falando dos textos literários, sobretudo do gênero lírico. Quando você lê um poema e percebe a manifestação de um “eu literário”, aquela voz, aquela personagem presente nos versos, não é necessariamente o autor real do poema.

É preciso compreender a diferença entre o poeta e o eu lírico. Não devemos confundir a pessoa real com a entidade fictícia. Claro que o poema não está isento da subjetividade de seu criador, mas no momento da escrita uma nova entidade nasce, desprendida da lógica e da compreensão de si mesmo, fatores que nunca abandonam quem escreve os versos (autor/poeta). Observe a construção do eu lírico na canção de Chico Buarque:

“Se acaso me quiseres  Sou dessas mulheres que só dizem sim Por uma coisa à toa  Uma noitada boa  Um cinema, um botequim  E se tiveres renda  Aceito uma prenda  Qualquer coisa assim  Como uma pedra falsa  Um sonho de valsa  Ou um corte de cetim  E eu te farei as vontades  Direi meias verdades  Sempre à meia luz  E te farei, vaidoso, supor  Que és o maior e que me possuis  Mas na manhã seguinte  Não conta até vinte, te afasta de mim  Pois já não vales nada  És página virada 

Descartada do meu folhetim”.


 

(Folhetim – Chico Buarque)

Temos, em algumas canções de Chico Buarque (vide Com açúcar, com afeto; Atrás da porta, Iolanda, Anos Dourados, Teresinha, Palavra de mulher e tantas outras), um exemplo claro de manifestação do eu lírico. No caso das canções citadas, o eu lírico fica ainda mais evidente, pois a despeito do poeta, nos versos temos a presença de um eu lírico feminino, que retrata diversos temas sob o ponto de vista das mulheres. Não fica claro, então, que o poeta e o eu lírico são elementos diferentes no gênero lírico?

Podemos concluir que o eu lírico é a voz que fala no poema e nem sempre essa voz equivale à voz do autor, que pode vivenciar outras experiências, que não as do poeta (como fica claro na canção Folhetim, de Chico Buarque). O eu lírico é o recurso que possibilita a criatividade do autor. Já pensou se ele não existisse? Estaria eliminada a criatividade dos sentimentos poéticos. Graças a esse importante e interessante elemento, os sentidos são pluralizados, o que torna os textos poéticos tão peculiares e belos.

O eu lírico é um elemento fundamental da poesia. Quando lemos um poema, estamos diante de uma obra literária do gênero lírico, isto é, uma composição escrita que evidencia sobretudo a subjetividade – as sensações, emoções, a interioridade de um sujeito. Mas quem é esse sujeito? Será esse sujeito o próprio autor do poema? Seriam, então, todos os poemas uma parte biográfica da vida dos poetas?

Na verdade, não são os poetas que se enunciam nos versos. A poesia fala por meio do eu lírico.

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O que é eu lírico?

Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico são nomenclaturas utilizadas para indicar a voz que enuncia o poema. O gênero lírico é aquele destinado a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu em seu encontro com o mundo. Mas esse eu lírico, essa voz do poema, não é necessariamente o autor, mas sim um eu fictício, que pode ou não ter características do eu autoral.

Ao descrever nos versos as diversas ações que deixou de realizar, o que o eu lírico deseja revelar
O eu lírico é parte essencial do poema.

Em um famoso poema intitulado “Autopsicografia”, Fernando Pessoa nos diz: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.” Veja: aquilo que é sentido pelo poeta, ou seja, pelo autor, não corresponde exatamente àquilo que foi escrito. Isso porque a arte poética modela, por meio da linguagem, essas experiências e impressões causadas no autor. E é por meio da voz do eu lírico que o poema enuncia-se.

Devemos lembrar que a potência da poesia não reside em um desabafo autoral, mas em uma enunciação de sentimentos que ultrapassam a vivência individual do poeta. Quando lemos um poema, nos conectamos com aquela emoção ou sensação, pois ela é universal.

Veja alguns exemplos:

Oração do Milho

Senhor, nada valho.

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das

lavouras pobres.

Meu grão, perdido por acaso,

nasce e cresce na terra descuidada.

Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,

mesmo planta de acaso, solitária,

dou espigas e devolvo em muitos grãos

o grão perdido inicial, salvo por milagre,

que a terra fecundou.

Sou a planta primária da lavoura.

Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo

E de mim não se faz o pão alvo universal. [...]

(Cora Coralina)

O poema “Oração ao milho” é escrito em primeira pessoa e enunciado pela própria voz do milho. Não é a autora que se diz a planta primária da lavoura. É o próprio milho que “fala” no poema.

Lamento da noiva do soldado

Como posso ficar nesta casa perdida, neste mundo da noite,

sem ti?

Ontem falava a tua boca à minha boca... E agora que farei,

sem saber mais de ti?

Pensavam que eu vivesse por meu corpo e minh’alma! Todos os olhos são de cegos... Eu vivia

unicamente de ti!

Teus olhos, que me viram, como podem ser fechados? Aonde foste, que não me chamas, não me pedes,

como serei agora, sem ti?

Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu coração... Longe e solitário... Neve, neve...

E eu fervo em lágrimas, aqui!

(Cecília Meireles)

A voz desse poema de Cecília Meireles é a noiva do soldado, aquela que fica viúva antes mesmo de casar-se – é a que fica sabendo que o noivo morreu em combate. É a partir dessa voz que a poeta vai enunciar os sentimentos da ausência, do desespero, da tristeza, de se estar perpetuamente apartada de quem se ama.

Anos dourados

Parece que dizes Te amo, Maria Na fotografia Estamos felizes Te ligo afobada E deixo confissões No gravador Vai ser engraçado

Se tens um novo amor [...]

(Chico Buarque)

Chico Buarque é famoso por suas composições cuja voz é um eu lírico feminino. É o caso de “Anos dourados”: o eu lírico, Maria, é quem enuncia a letra da canção; é quem liga afobada para o ex-amor.

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Como identificar o eu lírico?

Como a composição poética envolve a criação artística por meio da linguagem, sempre que um eu enuncia-se no poema, uma nova entidade é criada. Não se trata do poeta que existe no mundo, que possui uma aparência, postura determinada diante dos fatos etc., mas de uma voz não material que modela e versifica as impressões vivenciadas pelo autor, transformando-as em versos. Leia o poema “Canção final”, de Carlos Drummond de Andrade.

Canção final

Oh! se te amei, e quanto! Mas não foi tanto assim. Até os deuses claudicam em nugas de aritmética. Meço o passado com régua de exagerar as distâncias. Tudo tão triste, e o mais triste é não ter tristeza alguma. É não venerar os códigos de acasalar e sofrer. É viver tempo de sobra sem que me sobre miragem. Agora vou-me. Ou me vão? Ou é vão ir ou não ir? Oh! se te amei, e quanto,

quer dizer, nem tanto assim.

(Carlos Drummond de Andrade)

Em primeira pessoa, o eu lírico não enuncia uma particularidade de sua vida, mas a dissolução de uma relação amorosa – que não necessariamente precisa partir de um dado biográfico. O eu lírico dá voz a um sentimento universal e não é necessário que o autor pessoalmente tenha vivido o que esse eu enuncia.

Por vezes, entretanto, o eu lírico está muito próximo da voz autoral, isto é, enuncia características que são, de fato, parte da vida do autor. Leia o poema “Confidência do Itabirano”, também de Drummond:

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

(Carlos Drummond de Andrade)

Nesse caso, Drummond explicita um dado biográfico: o eu lírico desse poema corresponde ao sujeito autor, nascido em Itabira, Minas Gerais, funcionário público, que contempla sua cidade natal a partir de um retrato e das características que dela herdou. Esse eu lírico itabirano é, portanto, uma voz autoral, em que a primeira pessoa corresponde de fato à vivência do autor. Sabemos disso porque ela revela uma relação muito particular com determinada localidade e situação.

Diferença entre eu lírico e narrador

Chamamos de narrador a entidade que conta uma história. De maneira semelhante ao eu lírico, ele também não deve ser confundido com o autor, isto é, a pessoa que assina a obra. Entretanto, os dois termos não são equivalentes: o eu lírico não conta uma história, mas dá voz a uma sensação, a um sentimento – a lírica é o gênero das emoções, por excelência.

Assim, ele é necessariamente um “eu”, uma primeira pessoa envolvida naquilo que é enunciado pelo poema. O narrador, por sua vez, não precisa necessariamente participar da história que conta – pode ser um narrador observador, por exemplo, que enuncia uma história que não lhe pertence, ou ainda um narrador onisciente, capaz de mergulhar nos mais íntimos pensamentos das personagens.

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Exercícios resolvidos

Questão 1 - (ENEM 2018)

o que será que ela quer essa mulher de vermelho alguma coisa ela quer pra ter posto esse vestido não pode ser apenas uma escolha casual podia ser um amarelo verde ou talvez azul mas ela escolheu vermelho ela sabe o que ela quer e ela escolheu vestido e ela é uma mulher então com base nesses fatos eu já posso afirmar que conheço o seu desejo caro watson, elementar: o que ela quer sou euzinho sou euzinho o que ela quer só pode ser euzinho

o que mais podia ser

FREITAS, A. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

No processo de elaboração do poema, a autora confere ao eu lírico uma identidade que aqui representa a

A) hipocrisia do discurso alicerçado sobre o senso comum.

B) mudança de paradigmas de imagem atribuídos à mulher.

C) tentativa de estabelecer preceitos da psicologia feminina.

D) importância da correlação entre ações e efeitos causados.

E) valorização da sensibilidade como característica de gênero.

Resolução

Alternativa C. O eu lírico do poema de Angélica Freitas acredita elencar normas do funcionamento psicológico feminino: se escolheu uma roupa vermelha, não foi por acaso, mas porque queria chamar atenção dele, esse “euzinho”, esse homem que enuncia o poema.

Questão 2 - (ENEM 2019)

Isto

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

PESSOA, F. Poemas escolhidos. São Paulo: Globo, 1997.

Fernando Pessoa é um dos poetas mais extraordinários do século XX. Sua obsessão pelo fazer poético não encontrou limites. Pessoa viveu mais no plano criativo do que no plano concreto, e criar foi a grande finalidade de sua vida. Poeta da “Geração Orfeu”, assumiu uma atitude irreverente. Com base no texto e na temática do poema “Isto”, conclui-se que o autor

A) revela seu conflito emotivo em relação ao processo de escritura do texto.

B) considera fundamental para a poesia a influência dos fatos sociais.

C) associa o modo de composição do poema ao estado de alma do poeta.

D) apresenta a concepção do Romantismo quanto à expressão da voz do poeta.

E) separa os sentimentos do poeta da voz que fala no texto, ou seja, do eu lírico.

Resolução

Alternativa E. O poema versa justamente sobre a separação entre o que sente o autor e aquilo que é enunciado pelo eu lírico. Não é o sujeito que escreve que necessariamente sente aquilo que está escrito: ele inventa, sente “com a imaginação”, não faz de suas palavras um espelho biográfico.

Por Luiza Brandino
Professora de Literatura