A participação popular face a elaboração da constituição de 1988

Resumo: O presente artigo objetiva analisar a utilização do instituto da Iniciativa popular durante a atual ordem constitucional. Para tal intento, versa-se sobre a própria Constituição Federal de 1988, a Lei 9.709/1998 e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em comento, analisando-se os requisitos impostos por essas legislações e comparando com outros países que também utilizam mecanismos de participação direto do povo. Trabalha-se também com a conceituação do instituto da iniciativa popular, seus pressupostos e critérios de aplicação tanto em âmbito nacional, como estadual e municipal. Por fim, faz-se a analise de todos os projetos de leis apresentados por iniciativa popular no Brasil nos 24 anos da atual Constituição, concluindo com as considerações sobre as possíveis melhoras para uma maior utilização do mecanismo em nosso país.

Palavras-chave: Democracia participativa, Constituição Federal, cidadãos e Iniciativa popular.

Abstract: This study aims to analyze the use of the institute's Initiative popular during the current constitutional order. For this purpose, versa-up on the 1988 Federal Constitution, Law 9.709/1998 and the Internal Rules of the House of Representatives, under discussion by analyzing the requirements imposed by these laws and comparing with other countries that also use mechanisms direct participation of the people. Work is also in the conceptualization of the institute of popular initiative, its assumptions and criteria applied at both the national and state and municipal. Finally, it is the analysis of all bills presented by popular initiative in Brazil in the 24 years of the current Constitution, concluding with considerations on the possible improvements for greater use of the mechanism in our country.

Keywords: participatory democracy, Constitution, citizens and popular initiative

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução: da democracia a democracia participativa. 2.1. A democracia grega. 2.2. O ideal iluminista. 2.3. Nos dias atuais. 2.4. O constitucionalismo e a afirmação dos princípios democráticos. 2.4.1 O constitucionalismo. 2.4.2 Constitucionalismo no Brasil. 2.4.3 Os princípios democráticos. 2.5. Democracias representativas e os instrumentos de participação popular. 2.5.1 Plebiscito. 2.5.2 Referendo. 2.5.3 Iniciativa popular. 2.6. Os mecanismos de participação popular no Brasil e em outros países. 2.6.1 O Estado brasileiro. 2.6.2 Outros países. 2.6.3 Bolívia e Uruguai. 2.6.4 Venezuela. 2.6.5 Espanha. 2.6.6 Portugal e Itália. 2.6.7 Suíça. 2.7 Breves comparações.  3 Iniciativa popular. 3.1 Considerações gerais. 3.2 Conceito. 3.3 análise histórico – constitucional brasileira: iniciativa popular. 3.3.1 Fase constituinte. 3.4. Análise das normas pátrias. 3.4.1 Iniciativa popular na Constituição Federal. 3.4.2 Iniciativa popular no âmbito estadual. 3.4.3 Iniciativa popular no âmbito municipal. 3.4.4 Iniciativa popular legislativa lei 9.709/1998. 3.4.5 iniciativa popular no regimento interno da câmara dos deputados. 4. Práxis da iniciativa popular no Brasil. 4.1. Projeto de lei 2710/1992: criação do fundo nacional de habitação de interesse social (fnhis). 4.2. Projeto de lei 4146/1993 e 7053/2006: alterações na legislação penal. 4.3. Projeto de lei 1517/1999: combatendo a corrupção eleitoral. 4.4. Projeto de lei complementar 518/2009: “ficha limpa”. 5 Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro é marcado por revoluções e golpes de Estado (1930 e 1964). A cada novo regime governamental, ocorrido em nosso país, a democracia sofria um duro golpe, sendo atingida no ponto mais fundamental que é o respeito ao Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual se pode afirmar que estamos em consolidação do que é um regime democrático.

A Constituição Federal de 1988 resguarda um dos mecanismos principais para a consolidação efetiva do regime democrático, a participação popular na escolha dos seus representantes através do voto direto, secreto e periódico, sendo previsto no art. 60, § 4º, II, ainda mais assegurado por ser esse artigo parte das chamadas cláusulas pétreas, as que não podem ser alteradas, salvo com a elaboração de outra Constituição.

No texto Constitucional brasileiro foi adotada a chamada democracia representativa, sendo exercida através de mecanismos populares, sendo a democracia exercida conjuntamente pelo povo e por seus representantes, eleitos por esses, mas principalmente diretamente pelo povo, pois o próprio texto da Constituição Federal prever o povo como detentor do poder, do qual emana (art. 1º, parágrafo único). No entanto, o cenário político mundial é marcado pela democracia representativa, mas não pela participação direta do povo e sim pela representatividade de políticos, o que não é diferente no Brasil.

A maior arma para a democracia representativa seguir o caminho que consolide o Estado como democrático é o voto, mas infelizmente o povo brasileiro não tem essa consciência da função social e de transformação que tem esse ato. É através dele que se constrói uma sociedade livre, solidária e justa, tornando a eleição vital para concretização de um regime democrático, pois, é com ela que o povo legitima o político para atuar em seu nome.

Adentrando no tema do presente estudo verificamos que a evolução do direito constitucional permitiu que os cidadãos pudessem fazer parte, mais concretamente, dessa democracia participativa, não apenas escolhendo seus governantes, mas principalmente podendo atuar diretamente para que tenham seus anseios respondidos. Para tal os mecanismos de participação popular ensejam ao povo a oportunidade de participar mais diretamente no cotidiano das decisões estatais. São institutos que, quando bem estruturados, dão força de voz à soberania popular.

Em nosso ordenamento Constitucional optou por três mecanismos de participação direta do povo, como consagra o disposto no art. 14, § 4º, II da CF/88, “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.

De forma sucinta, o plebiscito consiste em uma consulta à opinião pública para decidir questão política ou institucional, não necessariamente de caráter normativo. A consulta é realizada previamente à sua formulação legislativa, autorizando ou não a concretização da medida em questão.

O referendo é uma consulta à opinião pública para a aprovação de normas legais ou constitucionais relacionadas a um interesse público relevante. A consulta é feita após a aprovação do projeto normativo e, como consequência, pode aprová-lo ou rejeitá-lo.

A iniciativa popular, objeto do atual estudo, enseja ao povo a oportunidade de apresentar ao Poder Legislativo um projeto normativo de interesse coletivo, o qual, após discussão parlamentar e respeitados os requisitos do processo legislativo, pode se transformar em lei.

A previsão no texto constitucional dos mecanismos de participação popular, não é o bastante para que sejam garantidos a esses o dinamismo necessário para a sua aplicação no âmbito social, se fazia necessário à edição de uma norma infraconstitucional para reger as formas de aplicação desses mecanismos.

Essa norma apenas foi editada em 1998, a Lei nº. 9.709 com o escopo de regulamentar o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, que somente dez anos depois foi promulgada, deixando esse direito de suma importância para obtenção de um regime democrático mais efetivo.

Apesar da edição da Lei n°. 9.709/98, demasiada aguardada pelos doutrinadores, pois seria essa a norma que viabilizaria de fato o exercício da soberania popular de forma mais frequente em nosso país. Mas sua edição não correspondeu às expectativas dos doutrinadores, que a criticam fortemente, uma vez que a referida norma não trouxe em seu bojo alteração robusta que pudesse ampliar o exercício da soberania popular, deixando de regulamentar também assuntos relacionados à viabilidade da aplicação da democracia semidireta em nosso Estado, apenas, praticamente, elencando o que já mencionava o texto constitucional.

Mesmo com os mecanismos de participação, ainda que mal regulamentados, a disposição do povo, imprimi a esse uma posição ativa ao colocar suas demandas nos centros decisórios do Estado e apesar de parecer para muitos apenas uma figura decorativa, a iniciativa popular, em pouco mais de duas décadas da nova ordem constitucional tem demonstrado o inverso. Já foram apresentados até então quatro Projetos de Lei de Iniciativa Popular que se transformaram em leis no Brasil.

É um número considerável se formos comparar com outras realidades constitucionais, nas quais a propositura do instituto encontra circunstâncias mais favoráveis. Assim, demonstra que a iniciativa popular apresenta um futuro promissor em nosso ordenamento, pois o amadurecimento da sociedade civil vai concretizar o princípio da democracia participativa construindo verdadeiramente o chamado Estado Democrático de Direito.

2 EVOLUÇÃO: DA DEMOCRACIA A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

2.1 A DEMOCRACIA GREGA

A antiguidade greco-latina é uma fonte importante do constitucionalismo e para o direito público. Na Grécia antiga vigorou uma forma de organização política chamada de “polis”. As cidades podem ser visualizadas como importantes formas de reconhecimento dos cidadãos, sobretudo nas cidades-Estado que seguiam o modelo de Atenas de democracia direta[1]. Com isso vemos a afirmação da cidadania e dos direitos dos cidadãos. Marcado pela supremacia do Estado sobre a sociedade.

Sócrates colocou o homem com a medida de todas as coisas, valorizou um governo limitado pela lei, e morreu porque observou a lei[2]. Platão e Aristóteles (obra política) criaram uma teoria de governo, nas formas puras e impuras, até hoje seguidas por nós. Se essas formas puras de governo (seguir o interesse comum) se degenerassem, haveria uma transição de uma forma de governo para outra que também contribuíram para a afirmação do constitucionalismo. Em Roma também pode ser observada sementes do constitucionalismo. Embora não houvesse Constituições escritas nem controle de constitucionalidade, havia uma valorização do parlamento e algumas sementes que limitavam o poder dos governantes.

Atenas não é considerada apenas o berço da civilização, mas também da democracia, pois, é lá com o governo de Clístenes, por volta de 510 a.C., que a democracia foi implantada como regime de governo, tendo alcançado seu ponto máximo no governo de Péricles, entre 461 a 429 a. C.

Etimologicamente a palavra “democracia”, significa demo = povo e cracia = poder. Para os atenienses significava a convocação dos cidadãos para deliberarem sobre os assuntos políticos de forma direta, todos reunidos, como uma assembleia. Como se sabe a pratica da política em Atenas era apenas para os homens genuinamente de famílias gregas, excluíam-se mulheres, crianças e escravos, ou seja, grande parte da população, somente sendo, segundo a doutrina política, possível devido o tamanho reduzido da cidade, com um número pequeno de participantes, e pela proximidade dos locais de discussão, bem como pela própria organização social da época, a qual considerava a política como a única atividade que trazia status ao cidadão.

Mesmo com essa restrição, imposta pela linhagem familiar, a importância dos conceitos, democráticos, criados pelos governos atenienses, influenciaram a doutrina ocidental sobre a forma de governo democrático, tal qual, pregado por Atenas, muitos anos antes. O que mais chama a atenção na forma democrática da pratica da política em Atenas é a participação dos cidadãos, salvo as restrições supracitadas, participavam diretamente das decisões colocadas em pauta nas assembleias, uma vez que essas eram votadas por todos, não tendo que eleger alguém para deliberar sobre as decisões, pois, essas eram discutidas por todos.

2.2 O IDEAL ILUMINISTA

Diferindo da prática da política ateniense, os iluministas levaram ao extremo a crença na razão, que refletiu nas relações políticas através das exigências de uma racionalização do poder.

O Iluminismo doou para o mundo um legado de bem-aventurança, separando poderes e mostrando que era preciso mudar, e que houvesse no seio da sociedade um sentimento de igualdade, liberdade e fraternidade, que levaria o homem a acreditar que era capaz de batalhar pelo correto.

Com isso foi efetivado o homem enquanto tal. Ele passa a ser visto como indivíduo, não apenas como membro de um corpo social ou político. Nesse sentido, ele passa agora a ter uma existência pré-social e pré-política.

Nesse período, Rousseau já pregava o fim da vontade civil e o início da vontade social e defendia a forma direta de participação política como forma de democracia ideal. Mas segundo o autor essa participação direta encontraria problemas em Estados muito grande, populoso, ocasionando, para Rousseau, a implantação da prática da democracia representativa, aquela em que os cidadãos escolheriam representantes, tendo esses, como função específica o exercício da política[3].

Mesmo com os ideais iluministas, alcançados pela crença extrema na razão[4], a retomada da democracia, através de lutas, que derrubaram o poder absolutista dos monarcas, a conquista das liberdades individuais em face do Estado, que possibilitaram o alcance da política por pessoas civis, existiam restrições que limitavam a participação política de todos os cidadãos.

O direito de eleger e ser eleito manteve-se restrito aos homens adultos. O voto censitário impunha padrões de renda e de escolaridade. Com isso, excluía grande parte da população do direito de ser eleito e de eleger representantes políticos.

Esses impedimentos perduraram por décadas. As mulheres adultas e os analfabetos conquistaram direitos políticos muito tardiamente, somente no século 20.

2.3 NOS DIAS ATUAIS

Nos dias atuais se vive a ideia de um Estado Democrático de Direito, que tem seu conceito na noção de governo do povo. É certo que as raízes de um Estado Democrático estão no século XVIII[5], que implicou valores fundamentais da pessoa humana.

Através da democracia participativa, o Estado Democrático de Direito se concretiza, mas para uma efetiva consolidação desse processo democrático, é impensável não mencionar que cada cidadão deve compreender o contexto social em que vive, mas para isso o investimento em educação desses cidadãos tem que ser imprescindível, para que seja por ele garantida sua liberdade de escolha.

Além do mais é necessário um contexto igualitário de oportunidades[6], caso contrário, o processo de escolha e de deliberação estará viciado, pois alguns cidadãos terão mais poder para convencer e para impor seus interesses do que outros. O que desequilibra por completo a balança que deve reger o processo democrático.

Contudo chega-se a conclusão de que a democracia representativa[7] está desacreditada e, principalmente, deformada de sua verdadeira concepção. Em nosso país o interesse dos representantes políticos prevalece em detrimento do interesse coletivo[8].

Qual seria então a melhor forma de se alcançar um regime democrático que atenderia todos os anseios sociais? Não podemos dizer que o uso da democracia direta fosse a saída mais correta, até porque seria praticamente impossível em um país como o nosso, com mais de 190 milhões de habitantes, mesmo com toda tecnologia disponível, pois as discussões dos assuntos políticos teriam que ser diariamente debatidas e acabaria fadando os cidadãos, pondo fim também ao sistema de democracia direta.

O que nos leva a pensar na possibilidade de, concomitantemente ao sistema representativo, se faz necessário à criação de mecanismos para a participação direta do povo nas decisões políticas do país, podendo então se refletir sobre uma correção na crise atual em que se encontra o sistema democrático de representação. Mas como afirma Bobbio, não existem estruturas perfeitas e a atitude do bom democrata é a de não se iludir sobre o melhor sistema político e a de não se conformar com o pior[9].

2.4 O CONSTITUCIONALISMO E A AFIRMAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS

2.4.1 O constitucionalismo

Com o surgimento do Estado Democrático surgiu o Estado Constitucional, sendo esses uma criação moderna sob influência dos mesmos princípios. Não se sabe ao certo a origem do Estado Constitucional Moderno, mas alguns estudiosos da origem das constituições apontam manifestações semelhantes e esparsas, em alguns aspectos, nos povos da Antiguidade.

Alguns estudiosos sustentam que os hebreus foram os primeiros a praticar o constitucionalismo, enquanto outros defendem que o Direito Constitucional tem origem na Grécia[10], havendo ainda os que dão primazia ao Egito. Todavia, o próprio Hauriou fala no "caráter ocidental do Direito Constitucional", explicando, como todos os que admitem o constitucionalismo na Antiguidade, que, após a queda do império romano, houve um vácuo constitucional, acabando apenas com o Estado Moderno[11].

São três os grandes objetivos, que juntos resultam no constitucionalismo: a afirmação da supremacia do individuo. Que ocorreu quando os barões da Inglaterra obrigaram o Rei João Sem Terra a assinar a Magna Carta, em 1.215, a qual o fez jurar obedecê-la e aceitar suas limitações, momento esse que se pode dizer deu inicio ao constitucionalismo. Foi na própria Inglaterra, após alguns séculos, que houve avanços substancias, quando a Revolução Inglesa consagra a supremacia do Parlamento como órgão legislativo, chegando bem próximo da ideia de que o Estado deve ter “um governo de leis, não de homens”.

No século XVIII, sob a influência do jusnaturalismo, consagra-se o segundo grande objetivo formador do constitucionalismo, pois se afirma a superioridade do individuo, dotado de direitos naturais inalienáveis que deveriam receber a proteção do Estado. Ponto de partida para a luta contra o absolutismo dos monarcas, ganhando força os movimentos que preconizavam a limitação dos poderes dos governantes.

Por ultimo e não menos importante, tem-se o terceiro grande objetivo, com marcante influencia do Iluminismo, que levou ao extremo a crença na razão, que refletiu nas relações políticas através das exigências de uma racionalização do poder.

Pelos próprios objetivos fundamentais propostos é fácil perceber que o constitucionalismo teve, em sua maioria, um caráter revolucionário[12]. E, como é evidente, as próprias forças que conseguiram impor restrições aos monarcas não iriam perder a oportunidade para afirmar seus direitos e assegurar a permanência da situação de poder a que haviam chegado. Daí a preferência pelas Constituições escritas, que definiam melhor as novas condições políticas conquistadas e tornavam mais difícil qualquer retrocesso.

Da noção de Constituição, resultante da conjugação dos sentidos material e formal, resulta que o titular do poder constituinte é sempre o povo[13]. Sendo, ilegítima a Constituição que reflete os valores e as aspirações de um indivíduo ou de um grupo e não do povo a que a Constituição se vincula. A Constituição autêntica será sempre uma conjugação de valores individuais e valores sociais, que o próprio povo selecionou através da experiência.

2.4.2 Constitucionalismo no Brasil

A Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, quando promulgada trouxe consigo uma gigante carga de expectativas para a sociedade brasileira, essa expectativa se deu pela divisão entre um período ditatorial e um recém-nascido Estado democrático, ou ainda, por ter consolidado em sua essência o que der melhor espelhava um Estado social moderno, que após de anos de obscura liberdade social, política e jurídica do povo brasileiro face aos pequenos grupos dominantes.

Mas como é fato, um Estado Democrático não nasce pronto, mesmo tendo um texto constitucional bem definido é necessário que diuturnamente seja construído, não apenas pelo povo, como também pelos seus representantes, instituições e pelo direito posto, e este talvez seja o cerne do que busca o neoconstitucionalismo, fazer valer a essência e força normativa da Constituição Federal de forma absoluta.

A construção do Constitucionalismo brasileiro vem sendo feito há vários anos, tendo como fases marcantes a monarquia e a república. Nessas duas fazes foram produzidas oito constituições, incluindo a constituição atual.

Em cada novo período histórico vivido em nosso país foi sendo promulgada uma nova constituição e em cada uma delas o Constitucionalismo brasileiro teve uma contribuição, mas como já mencionado, essa construção é gradativa e permanente devendo atender aos anseios sociais da época em questão.

2.4.3 Os princípios democráticos

Para falar dos princípios democráticos é necessário nos remetermos para p período áureo dos inícios da democracia ateniense, o século V a.C., também conhecido por “século de Péricles”, criador do regime democrático em Atenas. Mas será, sobretudo ao longo do século V que a democracia se aperfeiçoará, estabelecendo as bases daquilo que irá caracterizar também as democracias modernas: as tais ‘normas’ e ‘princípios’ que regem esta forma de organização política.

Pode – se dizer que entre todos os princípios fundadores, há três que resumem a essência do sistema democrático: isonomia, isocracia e isegoria. São todos eles palavras compostas, que têm em comum o primeiro elemento isos que comporta a noção de ‘igualdade’, pelo que se torna evidente, desde logo, que a busca da igualdade entre os cidadãos é a característica mais distintiva da soberania popular.

Começarei por aquele mais importante, a isonomia, pois acaba por englobar os restantes e, por isso, ocorre nas fontes antigas como sinônimo do tipo de constituição que coloca o poder no povo.

Isonomia significa, à letra, ‘igualdade perante a lei’[14]. Sendo assim, todas as pessoas que detêm o status de cidadão devem poder gozar dos mesmos direitos previstos na lei, entendida como expressão da vida em comunidade e que representa, por isso, a garantia de estabilidade no interior dessa mesma comunidade.

Isocracia significa ‘igualdade no acesso ao poder’, sagrando a todos os cidadãos o direito e obrigação ao voto passivo e ativo, ou seja, de eleger seus chefes e também de eles próprios serem eleitos para desempenhar funções nos diferentes órgãos existentes na polis[15].

A estes dois princípios se junta, finalmente, a isegoria, que poderemos traduzir pela famosa, ‘liberdade de expressão’. Tratava-se de uma prerrogativa fundamental para o exercício ativo da cidadania na assembleia, no conselho e nos tribunais ou então, numa equivalência mais direta do termo, naquele que era o espaço por excelência da intervenção pública: a ágora.

Esses três princípios democráticos são o cerne de todos os outros que ao longo dos séculos foram sendo criados e apresentados, desde a soberania popular, do pluralismo político, da separação de poderes, do estado democrático de direitos, todos eles apresentam avanços significativos no processo de afirmação dos princípios democráticos.

Na terminologia de Canotilho, são chamados de princípios políticos constitucionalmente conformadores, que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflete a ideologia inspiradora da constituição. Expressando as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembleia constituinte, os princípios políticos-constitucionais são o cerne político de uma constituição política[16].

Sem exceção de nenhum, todos são advindos do fortalecimento do constitucionalismo, admitindo que os regimes políticos possam ser identificados com as Constituições, visto serem sua exteriorização ou representação normativa, inconteste que suas ideias básicas encontram-se moldadas em princípios, veículos de suas ideias fundamentais[17].

2.5 DEMOCRACIAS REPRESENTATIVAS E OS INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR

Dentre os dispositivos da democracia semi-direta estão o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular[18].

Esses dispositivos no sistema de democracia representativa, não substituem a figura do representante, pelo contrario, eles servem de complemento para o papel dos representantes, que recebem com esses dispositivos as opiniões e sentimentos de seus representados. Sendo também instrumentos usados, pelos representados, para questionar ou interferir nas ações dos representantes[19].

É necessário fazer uma abordagem para apresentar as definições de cada um desses dispositivos.

2.5.1 Plebiscito

O plebiscito[20] consiste numa consulta prévia à opinião popular, perante a qual, dependendo de seus resultados, adotar-se-ão providências legislativas ficando reservadas dificuldades para sua diferenciação de referendos.

Diferentemente do Brasil, onde referendo e plebiscito encontram-se em fases processuais distintas e inversas[21] de consulta, aquele convalidando ou não decisões implementadas pelo Congresso e este criando espaço para a aferição do sentimento popular, nos países onde surgiram se confundem e não têm aplicação definida entre as diferentes classificações[22].

2.5.2 Referendo

O referendo[23] representa a forma clássica e tradicional de exercício direto de poder. O referendo “é o que mais aproxima o Governo da democracia pura, mas também é o mais complexo, tanto por sua intimidade com outros instrumentos, como o plebiscito e o veto popular, como pelas diferentes classificações que abriga”[24].

É geralmente definido como uma consulta à opinião pública para a aprovação de normas legais ou constitucionais relacionadas a um interesse público relevante. A consulta é feita após a aprovação do projeto normativo e, como consequência, pode aprová-lo ou rejeitá-lo.

No entanto, há registros do uso de plebiscitos para ratificar decisões do governo, como por exemplo, o plebiscito que referendou a constituição Francesa em 1799, e de referendos não precedidos por ações do estado, a exemplo do referendo italiano de 1946 que definiu o regime de governo (Monarquia ou República).

2.5.3 Iniciativa popular

A iniciativa legislativa popular é a possibilidade do povo de manifestar suas exigências no Parlamento, livre da influência dos partidos e dos grupos de pressão, segundo um procedimento de formação do ato apresentação da proposta legislativa e coleta de assinaturas[25].

Configura-se, assim, num direito do eleitorado de propor ao Poder Legislativo, projetos de lei, iniciando, ao lado de outros agentes políticos[26], o processo legislativo.

Através desses instrumentos, a sociedade civil pode interferir nas decisões do parlamento ou do governo sem a mediação de partidos ou representantes políticos. Esses instrumentos são o meio de tirar o controle total do poder hegemônico, pois uma vez concentrado o poder se torna meio de manipulação e dominação, a exemplo dos movimentos nazistas e fascistas[27].

No caso específico brasileiro, há também a ideia de que a criação e implantação de mecanismos horizontais de participação política e controle sobre os representantes levariam práticas e inovações democráticas da sociedade civil para a sociedade política, fortalecendo a própria democracia e enfraquecendo a continuidade da cultura política tradicional, ligado ao clientelismo e autoritarismo.

2.6 OS MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL E EM OUTROS PAÍSES

2.6.1 O Estado brasileiro

O Estado brasileiro é marcado por revoluções e golpes de Estado (1930 e 1964). A cada novo regime governamental, ocorrido em nosso país, à democracia sofria um duro golpe, sendo atingida no ponto mais fundamental que é o respeito ao Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual se pode afirmar que estamos em consolidação do que é um regime democrático.

Na história política do Brasil Independente, há pouquíssimos registros de instrumentos de participação popular antes da Constituição de 88. Ocorreu o recall (revogação de mandatos públicos) do Conselho de Procuradores do Estado no período do Império, mas dentro de um período curto, de junho de 1822 a 7 de abril de 1823. Logo depois, houve possibilidade de referendo da constituição de 1891 para confirmar o regime republicano, mas acabou não acontecendo.

Na constituição do estado de São Paulo de 1891, não só constava a revogação de mandatos legislativos como também o veto popular: anulação de deliberações das autoridades municipais mediante 2/3 dos eleitores reunidos em assembleia. Mas essas inovações duraram pouco, sendo removidas em 1905[28].

Portanto, o processo constituinte de 1986-1988 foi o primeiro momento na história brasileira em que se permitiu a iniciativa legislativa popular, e a constituição de 1988 foi à primeira em que constaram os mecanismos de plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei.

2.6.2 Outros países

Faz-se agora uma comparação simples e clara, optando-se por comparar apenas os mecanismos que necessitam de participação popular disponível em cada país e a comparação somente será feita por países latinos americanos, países europeus com afinidades culturais com o Brasil[29] (Portugal, Espanha e Itália) e também a suíça por ser um modelo de democracia semi direta no mundo.

2.6.3 Bolívia e Uruguai

Na Bolívia e no Uruguai existem dois mecanismos distintos de participação popular, o primeiro é aquele onde os cidadãos apresentam um projeto legislativo e a proposta é confirmada através de um referendo. O segundo mecanismo é a iniciativa dos cidadãos de solicitar referendos relativos a decisões do legislativo, tendo como intenção corrigir decisões do parlamento.

Para propositura do primeiro mecanismo, acima citado, na Bolívia é necessário 6% do eleitorado com restrições para assuntos fiscais, segurança interna e externa e divisão política do país, podendo também com a porcentagem de 20% do eleitorado para modificar a constituição. No segundo mecanismo, são necessários 5% do eleitorado para ratificação ou cancelamento de tratados internacionais.[30].

No Uruguai, onde também ocorrem os mesmo dois mecanismos, para apresentação de projeto legislativo são necessários 10% do eleitorado para modificações na constituição, no caso de referendo para confirmar ou cancelar decisões do legislativo, é necessário 25% do eleitorado, com restrições para assuntos orçamentários e leis de iniciativa do presidente[31].

2.6.4 Venezuela

Na Venezuela existem os três mecanismos de participação popular descritos acima, são eles, a apresentação de projetos de lei que para ser apresentado necessita de 0,1% do eleitorado, sem restrições de assuntos.

A apresentação de um projeto de lei e a confirmação desse por meio de referendo sendo necessário para tal 15 % do eleitorado para emendas ou reformas constitucionais ou convocação de nova assembleia constitucional.

Por ultimo a solicitação de referendo pelos cidadãos para corrigir decisões do parlamento com uma porcentagem de 10% do eleitorado, com restrições para assuntos referentes a direitos humanos e leis financeiras, existindo também a possibilidade de que com 10% do eleitorado podem promover uma consulta popular, com caráter não vinculativo, para matérias especiais de transcendência nacional[32].

2.6.5 Espanha

Na Espanha, assim como no Brasil, o mecanismo de participação popular existente é a iniciativa popular de lei. Para apresentação do projeto são necessárias 500 mil assinaturas, não podendo ser apresentados projetos de leis populares sobre relações internacionais, perdão judicial, taxas e assuntos econômicos ou orçamentários[33].

2.6.6 Portugal e Itália

Em Portugal e na Itália os mecanismos existentes, são dois, a iniciativa popular de lei que necessita, em Portugal, de 35 mil eleitores, 0,3% do eleitorado nacional, e na Itália, 50 mil eleitores, 0,1% do eleitorado nacional, não podendo a iniciativa versar sobre emendas constitucionais, atos referentes a conteúdo orçamentário, tributário e financeiro, em ambos os países.

O segundo mecanismo existente é a possibilidade de por iniciativa popular se pedir referendo para confirmação das decisões do legislativo, em Portugal para que isso ocorra são necessários 75 mil eleitores, 0,7% do eleitorado nacional, com as mesmas restrições já mencionadas.

Na Itália para o mesmo mecanismo são necessários 500 mil eleitores, 1% do eleitorado nacional, não sendo permitido para leis orçamentárias, anistia, perdão judicial e ratificação de tratados internacionais[34].

2.6.7 Suíça

Por último temos a Suíça que possui dois mecanismos de iniciativa popular, sendo necessários 100 mil eleitores para apresentar a iniciativa dos cidadãos de solicitar referendos relativos a decisões do legislativo, tendo como intenção corrigir decisões do parlamento, mas apenas para assuntos constitucionais.

O segundo é aquele onde os cidadãos apresentam um projeto legislativo e a proposta é confirmada através de um referendo, mas para tal são necessários 50 mil eleitores, 0,85% do eleitorado nacional[35].

2.7 BREVES COMPARAÇÕES

Com base na comparação supra, chega-se as seguintes conclusões:

Como o Brasil não possui mecanismos em que a iniciativa legislativa submeta a proposta ao referendo, a base de comparação estabelecida é somente o instrumento de iniciativa popular de lei. A partir disso, verifica-se que o Brasil coloca exigências maiores que vários países como Portugal (0,3%), Itália (0,1%) e Venezuela (0,1%).

Dessa comparação, o único país que tem uma porcentagem semelhante à do Brasil para a apresentação de proposta legislativa por iniciativa popular é a Espanha, que exige 500 mil assinaturas, aproximadamente 1,4% de seu eleitorado[36].

No Brasil a acessibilidade e a eficácia da propositura de leis de iniciativa popular, sofrem interferência por três critérios, à exigência de um número mínimo de assinaturas; os tipos de propostas legislativas permitidas para esse instrumento e, por fim, a influência na tramitação da proposta.

Para que os grupos sociais demonstrem a importância de seu projeto perante a sociedade se estabeleceu um número mínimo de assinaturas. É óbvio que a quantidade e a dispersão de assinaturas exigidas são fatores fundamentais para determinar a acessibilidade da iniciativa popular à sociedade civil[37].

O segundo critério se refere à disponibilidade de todos ou alguns dos instrumentos legislativos (emenda à constituição, lei ordinária, convocação de referendo ou plebiscitos, etc) para a iniciativa popular determina a “igualdade de condições” entre grupos da sociedade civil representantes políticos. Isto é, se todas as propostas legislativas, ou a maioria, são permitidas à iniciativa popular, temos uma situação em que cidadãos comuns se igualam a representantes políticos na capacidade de proposição legislativa[38].

Caso contrário, quando há restrições aos tipos de proposição à iniciativa popular, os representantes políticos continuam com mais recursos de proposições legislativas em comparação aos cidadãos comuns.

O terceiro e ultimo critério, refere-se à capacidade da sociedade civil de influir no processo de tramitação de seus próprios projetos legislativos. A legislação brasileira é omissa quanto a esse aspecto. A “ameaça eleitoral”, ou a “pressão moral” através de manifestações, são as únicas formas existentes dos grupos sociais de exercerem alguma influência no ritmo da tramitação.

3 INICIATIVA POPULAR

3.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS

A iniciativa popular de lei não é uma invenção da atual Constituição Federal, resta saber quando foi sua primeira utilização e sua evolução histórica no direito constitucional moderno, para tanto se segue a seguinte ordem.

Montesquieu, no Espírito das Leis, influenciou as Constituições Francesas de 1791, 1793 e 1795, que previam a iniciativa das leis com exclusividade para o Poder Legislativo.

No século XIX, não mais só o Legislativo tinha a atribuição da iniciativa de leis, sendo também, desde esse momento, uma prerrogativa também do Poder Executivo[39]. Ao poder judiciário, a iniciativa de lei só foi consagrada no início do século XX, tendo como exemplos as constituições latinas americanas como El Salvador, Guatemala, Honduras e as Constituições brasileiras a partir de 1934. Por fim, algumas constituições do século XX estenderam o poder de iniciativa aos cidadãos.

Em relação à iniciativa popular, a primeira experiência é datada do ano de 1896 a primeira vez em que se acolheu a iniciativa popular nos Estados Unidos da América, foi no Estado de Dakota do Sul[40]. A novidade vinda da Suíça, no fim do século XIX, país que já adotava a participação popular nas decisões de assuntos de Estados.

Na Suíça para iniciativa de revisão da constituição é atribuída à iniciativa de 100 mil eleitores[41], Uma vez apresentada comporta consulta popular. Na Alemanha foi a Constituição Weimar em 1919 que adotou a iniciativa popular de lei[42], sendo que a mesma previa que para apresentar o projeto esse deveria ser subscrito por 10% (dez por cento) do eleitorado.

Atualmente, o instituto da iniciativa popular é comumente utilizado tanto nos Estados Unidos como em alguns cantões da Suíça, sendo que na Suíça os cidadãos além de apresentar os projetos de leis ainda têm o privilegio de discutir os referidos projetos, no chamado Conselho Cantonal.

No Brasil não foi a Constituição de 1988 que inaugurou os instrumentos de democracia semidireta, haja vista em nossa história constitucional, por exemplo, o recall previsto no decreto imperial para os representantes das províncias; a ação popular prevista na Constituição de 1824 e; o plebiscito de 1963[43]; o veto popular e o recall nas Constituições de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Santa Catarina, no início da República.

Apesar da previsão do instituto da iniciativa popular na Constituição do Estado de Minas Gerais de 1947[44], foi a nossa Constituição Cidadã de 1988 que deu origem, no ordenamento jurídico nacional, a iniciativa popular no processo constituinte.

3.2 CONCEITO

O instituto da iniciativa popular é tido como atribuição, direito, faculdade, poder ou ato de iniciar o processo legislativo, sendo que para tal é concedido legitimidade de representação a determinado número de cidadãos, de acordo com as regras constitucionais.

José Meirelles Horácio Teixeira conceitua iniciativa popular como “atribuição a uma certa parte ou porcentagem do eleitorado o direito de iniciar ou propor a legislação, que deverá ser elaborada pelo Legislativo”[45].

Seguindo o mesmo entendimento, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, conceitua a iniciativa como “o direito político de participação que se atribui aos cidadãos, em quórum especialmente definido, mas que pode ser estendido a certos tipos de pessoas jurídicas representativas de categorias de interesses, para propor uma medida legislativa ou uma decisão administrativa”.[46].

Para Pontes de Miranda “a iniciativa popular constitui direito político subjetivo, exercício da democracia imediata, que, por isso mesmo, só aos eleitores pode tocar” [47].

Assim, de acordo com os conceitos apresentados, defini-se o instituto da iniciativa popular, como o meio pelo qual foi dado a um número de cidadãos subjetivamente o direito político de iniciar um processo de elaboração legislativa. Percebesse com isso a intenção do constituinte de aproximar o povo do exercício da vida pública.

O mecanismo da iniciativa popular possui o escopo de sanar possíveis imperfeições praticas do sistema representativo, devolvendo a titularidade do poder soberano a parcela da população interessada em influenciar no processo legislativo. A retirada de qualquer intermediário entre a vontade popular e o conjunto de atividade desenvolvido pelo Estado aperfeiçoando o desenvolvimento de suas atividades no plano institucionais.

3.3 ANÁLISE HISTÓRICO – CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: INICIATIVA POPULAR

Como já foi demonstrado anteriormente as Constituições que antecederam a de 1988, foram omissas quanto ao mecanismo da iniciativa popular de lei, sequer insinuando a respeito.

Muito diferente, a atual Constituição prevê o instituto inserindo o mesmo em um contexto normativo até hoje não experimentada nas constituições anteriores, o de que todo o poder emana e se fundamenta no povo, atribuindo não somente aos representantes do seu titular, mas igualmente ao povo, que não mais será apenas espectador das questões de Estado, ou ratificador, será sim a partir desse momento o próprio agente das propostas.

3.3.1 Fase constituinte

Foi durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987 que a participação popular no Brasil atingiu seu apogeu[48].

Mais precisamente em março de 1987 a emenda popular passou a constar do Regimento Interno da Constituinte isso depois de muitas manifestações populares que buscavam a participação na elaboração do texto constitucional. A campanha das emendas populares havia contado com o envolvimento de vários juristas[49] e com o engajamento incisivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Conseguido o feito, acontece então a primeira mudança efetiva no quadro político-institucional obtida pelos movimentos pró-participação popular na ANC, pois agora os cidadãos poderiam apresentar propostas de emenda ao projeto de Constituição.

Durante o processo de elaboração da nossa atual Constituição, mais de treze milhões de cidadãos subscreveram as propostas de emendas populares a Assembleia Nacional Constituinte. Para que tivessem validade, cada proposta de emenda popular deveria contar com 30 mil assinaturas de eleitores e ser subscrita por no mínimo três entidades. Cada eleitor podia subscrever até três emendas populares.

Mesmo após a conquista dos cidadãos brasileiros, de poderem apresentar propostas de emenda ao projeto de Constituição, a mobilização continuava, pois tal conquista apenas seria completa se o maior número de aprovações fosse garantido, para tanto o processo de mobilização para as aprovações foi empreendido maciçamente.

Essas mobilizações tinham como objetivo conseguir mudança na posição dos constituintes no decorrer do processo, conseguindo assim o maior número de adeptos que defendessem as emendas populares[50].

Dentre todas as 122 emendas populares apresentadas à Comissão de Sistematização da ANC[51], que somaram 12,2 milhões de assinaturas, três delas buscavam instituir permanentemente, no texto Constitucional, os instrumentos e formas de participação popular semidireta na vida política: o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. 

Essas três emendas populares que versavam sobre a participação popular semidireta na vida política[52], obtiveram, somadas, 401.266 assinaturas, sendo uma delas, com mais de 300 mil assinaturas, a nona em número de subscrições do conjunto de emendas entregues à Comissão de Sistematização da Constituinte.

3.4 ANÁLISE DAS NORMAS PÁTRIAS

3.4.1 Iniciativa popular na Constituição Federal

Não é novidade que o texto Constitucional de 1988 trouxe inúmeras transformações no sistema político nacional, consagrando a Soberania Popular de forma expressa em seu art. 1º, parágrafo único [53], ampliando a participação do povo através de mecanismos que pretendem construir um Estado ainda mais democrático.

Para que não haja limitação do sistema representativo a soberania popular, o constituinte originário previu nos incisos do art. 14 da Constituição Federal 1988[54], o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, institutos que permitem uma maior participação da população.

O art. 61§ 2º da Constituição Federal[55] elenca os requisitos para apresentação do projeto de lei de iniciativa popular, sendo eles, no mínimo, 1% do leitorado nacional, sendo que estes devem estar distribuídos pelo menos cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles.

3.4.2 Iniciativa popular no âmbito estadual

Para o âmbito estadual a Constituição Federal não foi omissa, previu no § 4º do art. 27[56], autonomia desses entes, deixando sob a competência desses a tarefa de decidir pelo instituto.

Analisando o instituto entre os estados membros da federação, chega-se a conclusão de que eles não apenas regulou de forma diligente o instituto, como também deram maior estabilidade ao instituto uma vez que foi o mesmo previsto em suas Constituições.

Devido o mérito do trabalho não está na iniciativa popular no âmbito estadual, apenas será feito algumas anotações no que for peculiar.

Primeiramente foi constatado que em alguns dos Estados[57], a iniciativa popular pode ser feita não apenas para as leis estaduais, como também para propor emenda a Constituição.

A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul inovou ainda mais, pois prevê em seu texto (art. 68,§ 3º) a possibilidade de convocar referendo sobre projeto de lei de iniciativa popular que tenha sido rejeitado pela Assembleia Legislativa, sendo que para tanto se devem cumprir os seguintes requistos convocação popular efetivada no prazo de cento e vinte dias, com subscrição de dez por cento dos eleitores que votaram na ultima eleição do Estado.

Existe ainda a possibilidade, no Estado de Sergipe e São Paulo, que permitem que um representante dos subscritos venha perante as Comissões defender o projeto (art. 24, § 3º, alínea 1).

Todas essas inovações, e outras não apresentadas, nada mais são que desdobramentos das normas da Constituição Federal, podendo ser encontrada não apenas expressamente previstas, mas em seu espírito. Muitas dessas inovações também são retiradas da Lei 9.709/1998 ou ainda, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

3.4.3 Iniciativa popular no âmbito municipal

Os Municípios também ganham a possibilidade de seus cidadãos deflagrarem o processo legislativo por meio de iniciativa popular. A atual Constituição Federal alçou os municípios como importantes entes federativos, não os deixando de fora desse importante instituto de democracia direta, a iniciativa popular de os cidadãos deflagrarem o processo legislativo, sagrando para esses entes a possibilidade em seu artigo 29, inciso XIII.

A possibilidade de os cidadãos municipais utilizarem o instituto da iniciativa popular previsto no texto constitucional também vislumbra alguns requisitos, como preconiza o já mencionado artigo 29, inciso XIII da Constituição Federal[58], deve ser matéria de interesse específico dos Municípios e de seus bairros e a adesão de cinco por cento do eleitorado municipal.

Assim, ao prever a iniciativa popular na esfera municipal, o legislador abriu um enorme leque de possibilidades para que os assuntos mais corriqueiros pudessem ser superados. Tem-se também com essa previsão um primeiro passo na educação política, no aprendizado do instituto da iniciativa popular e no implemento da vontade de participação.

É no Município que os cidadãos estão mais próximos do poder estatal, podendo nesse âmbito, com essa proximidade, aprender para se alçar nas altas esferas da legislação federal. A lei orgânica do Município de Santarém, em seu artigo 32 assegura a possibilidade de os cidadãos santarenos deflagrarem o processo legislativo [59].

3.4.4 Iniciativa popular legislativa lei 9.709/1998

A Lei 9.709/98[60] regulamentou os institutos do plebiscito, referendo e da iniciativa popular, dez anos após a promulgação da Constituição de 1988. Sendo que de acordo com ela o plebiscito e o referendo são consultas formuladas à população para que esta decida sobre matérias relevantes de cunho constitucional, legislativo ou administrativo, sendo que a diferença entre eles reside no fato de que o primeiro é convocado anteriormente ao ato legislativo ou administrativo e o referendo é convocado posteriormente, cabendo à população ratificá-lo ou rejeitá-lo.

No Art. 3° a lei[61] estabelece que, nas questões de relevância nacional, as consultas são convocadas mediante decreto legislativo, por proposta de no mínimo um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado. Não há previsão de convocação de consulta por meio da população, de forma que o uso do referendo e do plebiscito fica circunscrito à iniciativa do Legislativo.

Quanto à iniciativa popular, a lei estabelece, no Art. 13[62], que está consiste em apresentação de projeto de lei (PL) à Câmara dos Deputados, subscritos por, no mínimo, 1% do leitorado nacional, sendo que estes devem estar distribuídos por ao menos cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles.

A novidade trazida pela lei infraconstitucional foi que os projetos de leis de iniciativa popular devem estar circunscritos a um único assunto e não podem ser rejeitados pela Câmara por vício de forma, ou seja, por eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação, cabendo aos parlamentares providenciar a adequação.

De resto, a regulamentação e a tramitação do projeto devem seguir as normas do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

3.4.5 Iniciativa popular no regimento interno da câmara dos deputados

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados tratou da matéria em um único artigo, o art. 252, dividido em dez incisos.

Segundo o regimento interno[63] para ter validade, as assinaturas dos eleitores devem vir acompanhadas do número do título de eleitor, zona, seção, município e estado, além de nome completo e endereço[64].

As rubricas serão lançadas em formulários próprios padronizados pela Mesa da Câmara, organizadas por Estado. As rubricas de cada Estado também devem estar acompanhadas de documento da Justiça Eleitoral, no qual deve conter a informação do contingente de eleitores, podendo, se não houver dados mais recentes, serem apresentados os dados do ano anterior.

Os requisitos do parágrafo anterior são técnicas tidas como indispensáveis para se auferir a legitimidade e autenticidade das assinaturas, impedindo a desvirtuação em fraude do instrumento.

A colheita das assinaturas, também, pode ser feita através de entidades da sociedade civil autorizadas pelo regimento há patrocinarem o projeto. Nesse caso especificamente cabe o alerta de que o instrumento ora estudado é um meio pelo qual o povo no exercício de sua soberania possa intervir nos assuntos do Estado.

Dessa forma, a vontade popular deve ser lídima, e não distorcida por pressões de qualquer natureza. Existem casos na realidade Americana do uso da iniciativa popular por grandes empresas e por minorias da sociedade, que organizadas em associações e entidades, faziam-se valer de seu poderio econômico para manipular a opinião pública e fazer valer seus próprios interesses, não o da sociedade como um todo.

A permissão dada pelo inciso III do art. 252 do regimento interno pode trazer situações como a já ocorridas nos Estados Unidos[65], distorcendo a vontade popular em detrimento de interesses próprios devido a um poder econômico de certa entidade, ficando o interesse público prejudica e a função do instituto invertida, merece esse tópico um melhor tratamento por parte dos parlamentares.

Se o projeto apresentado tratar de mais de um assunto, ao ser entregue à Comissão de Constituição e Justiça o desdobrará em proposições autônomas e suas tramitações ocorreram em apartado.

O projeto de lei de iniciativa popular apresentado a Secretaria Geral da Câmara dos Deputados, que apresentar todos os requisitos legais, ganha tramitação normal, como se fosse projeto de outro legitimado, recebe uma numeração, ao lado de outras proposições.

Uma das poucas diferenças dada ao projeto de lei de iniciativa popular, em sua tramitação, é a de que pessoa externa à Câmara poderá no Plenário da Câmara ou nas Comissões discutir sobre o projeto, essa pessoa externa é sempre do primeiro subscritor do projeto ou quem esse indicar.

Outra diferença que pode ser mencionada é a de que tem o subscritor, que vai discutir o projeto em Plenário, a preferência da palavra, na ordem do dia, em detrimento de outros deputados[66].

A Mesa designará deputado que terá em relação ao projeto de iniciativa popular os mesmos poderes que o regimento confere ao autor de outras proposições[67]. A escolha poderá recair sobre parlamentar que tenha aquiescido com indicação feita pelo primeiro subscritor do projeto de lei de iniciativa popular.

A designação desse deputado incumbe a ele não apenas a prerrogativa de suscitar questões de ordem regimentais no âmbito da Câmara dos Deputados, mas aceitando a tarefa o parlamentar também teria legitimidade para defendê-lo na esfera judicial, caso houvesse alguma violação, durante o seu trâmite, do devido processo legislativo [68].

A legitimidade desse mandado de segurança ainda é tema não pacificado na doutrina, alguns defendem que a legitimidade se estende além do parlamentar para todos os subscritores da proposta e os demais cidadãos por se tratar de um direito difuso[69], outros defendem ainda a utilização do mandado de segurança coletivo para todos os cidadãos, por se tratar de um direito metaindividual[70].

Para finalização do capítulo, é de bom parecer que, como já demonstrado em outros tópicos do trabalho, a conjunção do instrumento da iniciativa popular com o referendo. Já se vê em outras legislações esse último instrumento sendo empregada como solução para inércia do legislador, e até mesmo como forma de validação das propostas rejeitadas, como ocorre na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul [71].

4 PRÁXIS DA INICIATIVA POPULAR NO BRASIL[72]

Embora a participação política da sociedade não dependa necessariamente de canais institucionais para que ocorra, pode-se dizer que a existência deles facilita e cria maiores oportunidades para a participação dos cidadãos.

O nosso ordenamento jurídico previu um meio pelo o povo tem a oportunidade de apresentar ao Poder Legislativo um projeto de lei de interesse da coletividade. Uma vez apresentado, ocorrido às devidas discussões parlamentar e o respeito ao devido processo legal, o projeto de lei de iniciativa popular transforma-se em Lei. É um instituto que, quando bem estruturado, dá força de voz à soberania popular.

Embora haja certa dificuldade e burocratização nesse processo, quatro Projetos de Lei de Iniciativa Popular já foram aprovados e se transformaram em leis no Brasil. A primeira foi a Lei 8.930, de 07 de setembro de 1994, tipificando novos crimes hediondos. O caso mais recente foi o projeto “Ficha Limpa”, ocorrido em 2010.

4.1 PROJETO DE LEI 2710/1992: CRIAÇÃO DO FUNDO NACIONAL DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL (FNHIS)

O projeto de lei 2710/1992 foi apresentado pelos movimentos sociais ligados à questão da moradia urbana: UMM-SP (União dos Movimentos de Moradia de São Paulo), UNMP (União Nacional pela Moradia Popular) e a MNLM (Movimento Nacional de Luta pela Moradia). Também teve o importante apoio institucional da CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil).

O objetivo desse projeto de lei era reduzir o déficit habitacional do país, de 15 milhões de moradias na época da formulação do projeto, e colocar a habitação como prioridade de governo, tornando-o um direito social, assim como é a educação e a saúde.

O projeto conseguiu aproximadamente 800 mil assinaturas, número correspondente a 1% do eleitorado nacional na época. Mas como o Tribunal Regional Eleitoral (TRE), solicitado pela Câmara, alegou impossibilidade de conferir as assinaturas, mesmo que por amostragem, em razão da falta de cadastro unificado de eleitores, o projeto foi então assinado pelo parlamentar Nilmário Miranda (PT-MG).

Mais de uma década depois o projeto de lei 2710/92 resultou na Lei 11.124, de 16 de junho de 2005, aprovada após a ajuda do governo da época que durante sua campanha prometeu, em um discurso, que o projeto seria finalmente apreciado no Congresso Nacional. Cumprindo o que havia sido prometido, lideranças parlamentares do governo fizeram o pedido de tramitação em regime de urgência deste projeto de lei em maio de 2004. E finalmente, em junho de 2005, o projeto foi aprovado.

4.2 PROJETO DE LEI 4146/1993 E 7053/2006: ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO PENAL

Os dois projetos de leis tem alguns pontos em comum, o primeiro que ambos tinham o objetivo de alterar a legislação penal, o segundo ponto em comum é a articulação e auxilio de agentes do poder judiciário para elaboração dos projetos, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, José Muiños Pinheiro Filho e Antonio Carlos Biscaia, na época, Procurador Geral de Justiça, atualmente Deputado Federal (PT-RJ).

O terceiro fator em comum dos projetos foi sua motivação, o de 93 foi apresentado após a ocasião do assassinato da atriz Daniela Perez e das chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em que a escritora Glória Perez[73], realizou uma grande campanha para coleta de assinaturas, apresentando então o projeto para incluir o homicídio qualificado no rol de crimes hediondos.

O projeto de 2006 foi proposto pelo Movimento “Gabriela Sou da Paz”, criada após a morte de uma adolescente por uma bala perdida no metrô na cidade do Rio de Janeiro. O projeto, entregue em março de 2006 e subscrito por 1,4 milhão de pessoas, tem como objetivo tornar mais rigorosa a pena do condenado por crimes hediondos. Foi protocolado por meio do Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia e outros parlamentares, desde então o projeto segue tramitando na câmara, agora apensado ao projeto de lei 4911/05.

A Lei 8930/1994 foi sancionada em 09 de setembro de 1994 pelo então presidente, Itamar Franco, incluindo o crime de homicídio qualificado como crime hediondo[74]. Não houve, portanto, nenhuma alteração no conteúdo original do projeto por iniciativa popular.

Em ambos os projetos, de 93 e 2006, as assinaturas não vieram acompanhadas pelo título de eleitor dos signatários, como determina o artigo 13 da Lei 9.709/98, tradando-se apenas de uma petição[75].

4.3 PROJETO DE LEI 1517/1999: COMBATENDO A CORRUPÇÃO ELEITORAL

O terceiro projeto de lei 1517/199 tratava de crimes eleitores. Foi entregue ao Congresso em 18 agosto de 1999, resultando na Lei nº 9840, de 28 de setembro de 1999. A lei tinha como objetivo punir com cassação a compra de votos e o uso da máquina administrativa para fins eleitorais. A mobilização, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), alcançou um milhão de assinaturas.

Entretanto, mais uma vez, foi protocolado na Câmara por um grupo de parlamentares, encabeçado pelo Deputado Albérico Cordeiro (PTB-AL). Apesar da existência dos dois projetos anteriores, este foi considerado pelo Congresso Nacional efetivamente o primeiro projeto de lei de iniciativa popular, provavelmente devido ao fato de ser o primeiro a conter as informações que comprovavam a condição de eleitores dos signatários[76].

Durante sua tramitação, também foi pedido urgência, os discursos de lideres de bancada na Câmara e no Senado pediam a outros parlamentares que não fizessem emendas e nem pedido de vistas em plenário, para não alongar a tramitação do projeto. O objetivo foi alcançado e por unanimidade o projeto passou na Câmara e no mesmo dia no Congresso Nacional, sendo lei sancionada não alterando em nada o projeto.

4.4 PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 518/2009: “FICHA LIMPA”

Em 2009, o mesmo grupo que havia encabeçado a apresentação da lei contra a corrupção eleitoral em 1999, agora já organizado na forma do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, apresentou mais um projeto de lei de iniciativa popular ao Congresso Nacional, o projeto de lei complementar 518/2009, conhecido como “Ficha Limpa”.

O Movimento de Combate a Corrupção Eleitoral iniciou então, campanha de coleta de assinaturas, com mais de 1,6 milhões, para apresentar o projeto com o objetivo de alterar a lei 64/1990, a respeito de inelegibilidades. Dentre as propostas estava a de proibir candidaturas de indivíduos com condenação por crimes graves em 1ª instância e daqueles que renunciassem seus cargos políticos para evitar o processo de cassação. Também aumentava o prazo de inelegibilidade de 3 para 8 anos[77].

Assim como aconteceu com todos os projetos anteriores, o projeto foi apresentado a Câmara dos Deputados, um ano e meio após o inicio da coleta das assinaturas, pelo Deputado Antonio Carlos Biscaia juntamente com mais 32 parlamentares em 29 de setembro de 2009.

Durante sua tramitação na Câmara dos Deputados o projeto foi apensado ao projeto de lei complementar 163/1993, apesar de mais demorado foi concluída a votação a tempo para que a lei valesse nas eleições de 2010. Ressalta-se que o projeto recebeu 28 emendas e sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 04 de junho de 2010.

Também há casos de tentativas que não chegaram a alcançar o Congresso[78]. Uma delas ocorreu ainda em 1990, dois anos após a promulgação da Constituição de 1988, quando alunos da matéria de Direito Constitucional da FMU propuseram um projeto de lei de iniciativa popular para fixar um teto à remuneração dos parlamentares. A campanha teria reunido alguns milhares de assinaturas e contou com o apoio do Jornal da Tarde. O projeto, entretanto, não chegou a ser entregue a Câmara. O então senador Nelson Carneiro (PMDB-RJ) antecipou-se e apresentou a proposta de emenda constitucional (PEC) nº 61, de 1990, que estabelecia um teto para a remuneração de deputados estaduais e vereadores, resultando na Emenda Constitucional nº 1, de 31 de março de 1992. A iniciativa popular foi então esvaziada.

5 CONCLUSÕES

Existem alguns pontos a serem analisados.

Fica claro que a iniciativa popular constitui uma oportunidade de ação política de iniciativa da sociedade, sem depender da aprovação da Comissão de Legislação Participativa para ter sua tramitação iniciada.

O Estado de Direito trouxe com ele a posição privilegiada da lei como fonte do Direito, nesse caso, se é dada a lei poder de criar direitos e obrigações, como preconiza o art. 5º, II, da CF/88, nada mais salutar que a previsão de mecanismos que possibilitem que os direitos e obrigações criados estejam em consonância com a vontade do povo, que é o soberano do poder, sendo realizado não mais apenas o Estado de Direito, mas o Estado Democrático de Direito imposto pela nossa Constituição Cidadã.

Por outro lado a Constituição apresenta uma exigência de número de assinaturas considerada extremamente rigorosa (1% do eleitorado nacional). De acordo com Whitaker (2003, p. 188), “com esses números e condições se evitou que o uso do instrumento pudesse ser banalizado. Mas eles praticamente inviabilizaram a apresentação de projetos de lei de iniciativa popular e reduziram a utilização desses instrumentos”. Assim, a coleta de assinaturas para uma iniciativa popular de lei requer enorme persistência.

Além do mais, a tramitação do projeto pode levar muitos anos, como foi o caso da iniciativa popular do Movimento de Moradia Popular que levou treze anos, já que não há regras que garantam à propositura uma tramitação rápida.

Cabe ressaltar, ainda, que, dentre os projetos que chegaram a tramitar, todos perderam formalmente o título de projeto de iniciativa popular, já que tiveram que ser “adotados” por parlamentares ou pelo Executivo. Formalmente, portanto, poder-se-ia dizer que até agora não houve nenhum projeto de lei de iniciativa popular no Brasil.

A “adoção” por parlamentares ou pelo executivo, infelizmente, se fizeram necessárias para que os projetos, até hoje, apresentados pudessem ser aprovados. O que deixa isso bem claro é o projeto de lei do FNHIS, que teve sua tramitação dificultada em um governo e depois facilitada em outro.

Sem dúvida, o fato dos projetos terem sido “adotados” seja por parlamentares ou pelo executivo, não trouxeram desvantagens aos autores das iniciativas, pois os mesmos foram transformados em norma jurídica sem contrariar muito as propostas originais.

No entanto, cabe também destacar que essa “adoção” não é isenta de benefícios aos parlamentares. A demonstração de apoio beneficia os políticos na medida em que não têm sua imagem associada como contrária aos clamores populares e à opinião pública. E mais: dependendo do papel do parlamentar na tramitação do projeto por iniciativa popular, é possível o uso político-eleitoral das iniciativas populares para autopromoção.

Muitas propostas têm surgido no Congresso para aperfeiçoar o instrumento. Em 18 de junho de 2010, havia mais de 20 propostas tramitando na Câmara (JUSBRASIL NOTÍCIAS, 2010). Uma delas é a PEC 2/99, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que propõe a redução da exigência de assinaturas para 0,5% do eleitorado nacional ou sua apresentação por associação que represente esse número.

A utilização de urnas eletrônicas para a coleta de assinaturas e a mudança do regime de tramitação da lei, garantindo-se à iniciativa popular uma tramitação especial e urgente e, além disso, a abertura de ―um espaço excepcional para sua defesa, em plenário e nas comissões, por representantes dos subscritores, já que atualmente estes só podem assistir às sessões que tratam do projeto de iniciativa popular por especial condescendência por parte de deputados apoiadores do projeto.

Mesmo com todas essas considerações podemos dizer que estamos muito a frente de países que se quer permitem tal participação por meio do povo. Dentre todos os mecanismos de participação direta do povo, a iniciativa popular, como um direito político dos cidadãos de deflagrarem o processo legislativo, está à frente, pois concede aos cidadãos uma posição ativa de apresentar suas demandas nos centros decisórios do Estado, enquanto os demais institutos, apenas faz com que os cidadãos sejam meros espectadores e chanceladores do que for decidido pelos seus representantes eleitos.

AMARAL, Maria Lúcia. A forma da República: Uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra editora, 2005.

AMORIM, Maria Joseane Lopes de et al. Iniciativa Popular no Brasil a partir do século XX. Monografia apresentada para conclusão do curso de pós-graduação em Gestão Pública e Legislativa. Recife 2008. Disponível em <http://www.alepe.pe.gov.br>. Acesso em: 25 jul. 2012.

ANASTASIA, Fátima; NUNES, Felipe. A reforma da representação. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Orgs.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 39. ed. Rio de Janeiro : Globo, 1988.

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia – uma defesa das regras em jogo. São Paulo. Paz e Terra, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editoras, 2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

LIN, Nelson Shih Yien. Participação popular no legislativo federal – um estudo de seus mecanismos institucionais: emendas populares no processo constituinte, iniciativa popular de lei e Comissão de Legislação Participativa (CLP). 2010. Dissertação apresentada no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas para obtenção de título de mestre em Ciência Política. São Paulo: 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-20062011-101339/pt-br.php>. Acesso em: 25 jul. 2012.

MELCHIORI, Cíntia Ebner. Participação e Representação Política: a iniciativa popular de lei e o caso do movimento de combate à corrupção eleitoral. Dissertação apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Gestão e Políticas Públicas. São Paulo 2011. Disponível em <http://www.bibliotecadigital.fgv.br/dspace/hadle/10438/8664>. Acesso em 10 ago. 2012.

MICHILES, Carlos et al. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

NETO, José Duarte. A Iniciativa popular na constituição federal. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2005.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo, Nova Cultura, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

WHITAKER, Francisco. Iniciativa popular de lei: limites e alternativas. In: BENEVIDES, Maria Victoria; KERCHE, Fábio; VANNUCHI, Paulo (Orgs.). Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

Advogada formada pelo Centro Universitário Luterano de Santarém – CEULS/ULBRA