A concepção que o ser humano é formado por

Determinar quando tem início a vida é uma das questões mais espinhosas e escorregadias da atualidade. Ao redor desse enigma, gravitam grandes dilemas éticos, como a questão do aborto e a pesquisa com células-tronco. Se embriões são seres humanos, é aceitável sacrificar embriões para descobrir a cura de algumas doenças? A interrupção da gravidez deve ser um crime ou um direito universal? Diante dessas perguntas, a maior parte das pessoas corre para campos opostos – fé ou ciência.

O curioso é que muitos religiosos usam argumentos científicos para defender suas posições, enquanto alguns cientistas duvidam que, sozinha, a razão possa elucidar essa charada. “O feto é obviamente humano”, afirma o biólogo José Roberto Goldim, professor de bioética da UFRGS. “A questão é decidir quando ele se torna uma pessoa com direitos, e isso não pode nem deve ser estabelecido pela ciência”. A opinião de Goldim faz sentido, até porque a ciência não tem apenas uma resposta, mas várias. No processo de desenvolvimento embrionário, há cerca de 20 etapas que, segundo os cientistas, podem ser apontadas como o momento em que o feto se torna um indivíduo.

O primeiro desses momentos é a fecundação, quando espermatozoide e óvulo se combinam para gerar um novo código genético. Essa, por sinal, é a posição da Igreja Católica. “É na concepção que se forma um novo indivíduo, diferente de seu pai e de sua mãe, e que vai se desenvolver num contínuo até a morte”, afirma o padre Berardo Graz, coordenador da Comissão Regional em Defesa da Vida, em São Paulo.

Há quem defenda, no entanto, que a vida só começa na 3ª semana de gravidez – porque, até ali, o embrião ainda pode se dividir, dando origem a dois ou mais gêmeos. Existe ainda a corrente dos que afirmam que o feto só se transforma numa pessoa quando começa a produzir ondas cerebrais semelhantes às de um ser humano “pronto” – 8ª semana para uns, 20ª para outros. E, por fim, há os que apontam para a 24ª semana de gestação, quando os pulmões do feto já estão formados. Para quem acredita nessa tese, é só nesse momento que o futuro bebê adquire condições de sobreviver fora do útero.

Diante de tantas possibilidades, alguns pensadores preferem abordar a questão por outro ângulo: o essencial não seria descobrir quando a vida começa, mas determinar se todos os estágios da existência humana devem ser igualmente valorizados. “Ao nascer, a criança não fala, não anda e carece de diversas características que só vai ganhar mais tarde. Mas nem por isso negamos a ela a mesma dignidade de um adulto”, diz Dalton Luiz de Paula Ramos, professor titular de bioética da Unifesp. “Portanto, temos de reconhecer que a vida intrauterina tem o mesmo valor, embora faltem ao feto vários traços que ele irá adquirir depois”.

Posição radicalmente oposta – e obviamente polêmica – é a do filósofo americano Peter Singer. Para ele, o que dá valor intrínseco à vida é a autoconsciência do indivíduo. Nesse sentido, seria moralmente aceitável não só o aborto, mas também o sacrifício de bebês que nasçam debilitados ou com poucas chances de sobreviver. “O fato de ser um humano não significa que seja errado tirar sua vida”, escreve Singer no livro Rethinking Life and Death (“Repensando Vida e Morte”, inédito no Brasil). “Matar um recém-nascido não é, sob hipótese alguma, equivalente a matar um adulto – que quer conscientemente continuar vivendo”.

As ciências experimentais demonstraram, nos últimos anos, que a existência de um ser humano começa no momento da fecundação, quando o zigoto forma sua própria identidade genética, a partir da herança recebida dos seus pais, e seu material genético está em condições de começar seu desenvolvimento.

A biologia mostra que, com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, começa a existir um novo ser vivo.

A biologia molecular, a embriologia médica e a genética oferecem muita luz para responder à antiga pergunta sobre o início de cada vida humana. A ciência garante hoje que a vida começa com a fusão do espermatozoide e o óvulo, chamada de “fecundação” (do latim “fecundare”, fertilizar).

O clássico manual de Langman sobre embriologia, utilizado nas faculdades de medicina para a aprendizagem do desenvolvimento humano inicial, explica, de maneira simples, o processo da fecundação: “Uma vez que o espermatozoide ingressa no gameta feminino, os núcleos masculino e feminino entram em contato íntimo e replicam o seu DNA”. Esta união gera uma nova célula, chamada zigoto.

Esta nova célula possui uma identidade genética própria, diferente da que pertence aos que lhe transmitiram a vida, e a capacidade de regular o seu próprio desenvolvimento, o qual, se não for interrompido, passará por cada um dos estágios evolutivos do ser vivo, até a sua morte natural.

Durante as horas em que dura a fecundação, o DNA de ambos os progenitores se funde para alcançar a estrutura e padrão próprios do novo indivíduo e, ao mesmo tempo, com a fecundação, coloca-se em funcionamento o motor de desenvolvimento embrionário com o qual se inicia uma nova vida.

Este novo ser vivo, já um embrião, se divide depois em duas células, cada uma delas com uma finalidade biológica definida; depois, em quatro células e assim por diante, até formar um organismo completo e estruturado.

No século passado, o professor de Genética Fundamental da Universidade de Sorbone que descobriu a anomalia cromossômica que causa a Síndrome de Down, Jérome Lejeune, já disse que todos os códigos de vida estão inscritos neste primeira célula chamada zigoto.

Este pequeno ser vivo já pertence à espécie humana. Não é simplesmente uma célula que contém toda a informação genética que o identificará sempre e o programa de vida de que precisa para se desenvolver até a etapa adulta; é muito mais: é um corpo em desenvolvimento.

O zigoto é um vivente da espécie dos seus progenitores, com toda a dignidade que corresponde a cada uma das pessoas.

Nos últimos anos, a ciência permitiu detalhar a complexidade da vida nascente. Ela explica detalhadamente os mecanismos pelos quais já a primeira célula está dotada de uma organização celular que a constitui em uma realidade própria e diferente da realidade dos gametas. Este zigoto já é um corpo, um organismo com um programa de vida individual. Possui polaridade e assimetria (o que o diferencia de qualquer outra célula) de tal maneira, que tem traçados, em função do ponto pelo qual o espermatozoide penetrou no óvulo, os eixos que estabelecerão a estrutura corporal.

A catedrática de Bioquímica da Universidade de Navarra, Natalia López Moratalla, explica assim: “A fecundação é um longo processo, de cerca de 12 horas, que começa com o reconhecimento específico e a ativação mútua dos gametas paterno e materno, maduros, e no meio adequado. A partir da região em que o espermatozoide alcança o ovulo, produz-se uma liberação de íons de cálcio que se difundem como uma onda, até a área oposta. Esta região do óvulo em fecundação será o dorso do embrião e o eixo dorso-ventral seguirá a direção da onda de cálcio. Perpendicular a ele, estabelece-se o eixo cabeça-extremidade. A concentração de íons de cálcio no espaço celular do óvulo que está sendo fecundado regula os processos que ocorrem ao longo do tempo da fecundação. O processo essencial que se regula por estes sinais moleculares é a estrutura do DNA, que, além de ser mais que a soma dos DNA do seu pai e da sua mãe, tem os cromossomos alinhados segundo os eixos corporais para dar lugar, sem solução de continuidade, ao embrião de duas células”.

Não se trata somente de genética: o desenvolvimento do indivíduo requer uma série de interações entre as suas células, sobretudo entre os seus genes com componentes do meio interno e externo ao organismo. Realiza-se, assim, a regulação perfeita e coordenada da informação genética. Já na primeira divisão celular, cada uma das duas células do embrião tem um destino diferente e bem definido. A rica em cálcio ficará imatura, com capacidade de um dando espaço a todos os tipos celulares: é o embrião. A outra, pobre em cálcio, dirigirá seu desenvolvimento à formação dos tecidos extraembrionários e à placenta.

Em perfeita continuidade com o processo de fecundação, o zigoto inicia seu desenvolvimento, segundo a forma corporal dada pelos eixos, com a construção das diversas partes do corpo. No terceiro dia, o embrião é formado por 8 células. Auto-organizando-se sempre de maneira assimétrica, seguindo uma trajetória unitária, programada de forma temporal e espacial, as células vão gerando os órgãos e tecidos. Antes de implantar-se no útero, ni início da segunda semana, e desde o primeiro dia, o embrião foi mandando sinais moleculares à mãe, para que ambos se coordenem como vidas diferentes, em perfeita simbiose durante toda a gestação.

A embriologia molecular atual oferece uma imagem do embrião incompatível com a antiquada noção do embrião “amorfo”, homogêneo, feito de elementos iguais, cindíveis, do qual inclusive poderiam se separar grupos casuais de células, capazes de estabelecer em qualquer momento dois sistemas novos. O rigor científico de hoje impede a confusão de um embrião com um conglomerado de células sem organização.

Desde o seu início na fecundação, este ser é uma pessoa, com um dinamismo vital aberto, próprio da espécie humana.

Atualmente, um catálogo completo das diferenças genéticas entre o homem e o chimpanzé mostra que cada ser humano tem mais criatividade – uma identidade sua e diferente da dos outros – que qualquer animal, com menos biologia, menos genes. López Moratalla explica que houve uma “perda” de genes que supõem redução de capacidade de adaptação ao meio, mas que são vantajosos na possibilidade de manifestação do caráter pessoal. Por exemplo, uma mutação no gene da miosina, MYH16, se traduz m uma fibra muscular mais fina, que permite ao homem o gesto tipicamente humano do sorriso, em troca de uma diminuição da musculatura da mastigação.

Os gestos humanos naturais, como a união corporal na transmissão da vida, as tendências, têm caráter pessoal, já que estão livres do automatismo do biológico. Não existe uma “propriedade biológica” que explique a abertura livre, intelectual e amorosa dos seres humanos a outros seres: a biologia humana, como ciência, reconhece a presença, nos indivíduos da espécie “Homo sapiens”, de um dinamismo vital aberto, desprogramado e próprio de cada indivíduo humano. Este “plus de realidade” é inerente a cada um e torna possível afrouxar as ataduras que limitam os genes.

O zigoto é pessoa porque é um corpo humano. E a dimensão corporal é um elemento constitutivo da pessoa humana, segundo destaca López Moratalla. Ou seja, um ser humano não somente tem um corpo, mas é o titular do seu corpo. Cada um se identifica com a estrutura biológica e ao mesmo tempo o corpo é sinal da presença da pessoa. Cada vida humana é a vida de um sujeito ao longo da trajetória temporal de crescer, amadurecer, envelhecer e morrer.

Em cada sujeito humano, há uma fusão de sua vida autobiográfica e sua vida biológica que é inerente e originária, ainda que as manifestações genuínas e próprias do seu ser pessoal só possam tornar-se explícitas em um determinado e gradual nível de desenvolvimento e amadurecimento corporal.

Fonte: Aletéia 

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